O voto de qualidade não é problema do Carf

Por Carlos Augusto Daniel Neto e Diego Diniz Ribeiro

A despeito do escopo original desta coluna, de trazer uma análise técnica e objetiva da jurisprudência do Carf, sobre temas atuais e controversos, existem certos momentos e circunstâncias extraordinárias que exigem que não nos furtemos de expressar nossas opiniões.

Recentemente foi aprovada uma emenda aglutinativa na Medida Provisória nº 899/2019, que incluiu o seu artigo 29, que acrescenta o artigo 19-E à lei nº 10.522/02, verbis:

“Em caso de empate no julgamento do processo administrativo de determinação e exigência do crédito tributário, não se aplica o voto de qualidade a que se refere o § 9º do art. 25 do Decreto nº 70.235, de 6 de março de 1972, resolvendo-se favoravelmente ao contribuinte.”

O referido dispositivo, em suma, extingue o voto de qualidade no âmbito do Carf, estabelecendo que, em caso de empate no julgamento colegiado, deve-se favorecer o pleito do Contribuinte. Em razão da relevância e do impacto que essa emenda pode ter sobre toda a estrutura do processo administrativo fiscal federal (PAF), na coluna desta semana, decidimos tecer alguns comentários sobre o tema que tem tomado a atenção dos tributaristas tanto quanto a Covid-19 tem ocupado espaço em nossos noticiários: o voto de qualidade no Carf.

O artigo 25 do Decreto nº 70.235/72[1] – recepcionado pela CF/88 com força de lei – determina que o julgamento em segunda instância no âmbito do PAF será realizado pelo Carf, órgão colegiado e paritário, integrante do Ministério da Economia, responsável pelo julgamento de recursos de ofício e voluntários de decisão de primeira instância (no âmbito de suas três Seções), bem como recursos de natureza especial (no âmbito da Câmara Superior de Recursos Fiscais – CSRF).

Em que pese seu caráter paritário, o parágrafo 9º desse artigo estabelece que os cargos de Presidente das Turmas Julgadoras serão ocupados por conselheiros representantes da Fazenda Nacional. Determina ainda esse dispositivo que os presidentes, em caso de empate, terão o voto de qualidade.

Dado esse atributo de órgão paritário, metade dos membros das turmas julgadoras são representantes da Fazenda Nacional (Auditores-Fiscais indicados pela Receita Federal), e a outra metade de seus componentes são representantes dos contribuintes, indicados por confederações representativas de categorias econômicas e pelas centrais sindicais, sendo que, em ambos os casos, a escolha dos Conselheiros é realizada com base na avaliação técnica do Comitê de Acompanhamento, Avaliação e Seleção de Conselheiros (CSC[2]), a partir das listras tríplices encaminhadas pelas respectivas representações.

Retornando à discussão quanto ao voto de qualidade, é importante afastar o truísmo de que os Presidentes de Turma não possuem direito a dois votos, nem tampouco que havendo empate a Fazenda é considerada vencedora na respectiva lide: em rigor, cada conselheiro vota uma única vez e, havendo empate, será vencedora a parte que tiver a seu favor o voto do presidente do colegiado.

Segundo dados oficiais contidos no sítio do Carf[3], o percentual de acórdãos proferidos de forma unânime nesse órgão vêm aumentando paulatinamente desde 2017, período em que as decisões unânimes foram 71,1% do total, subindo para 76,6%, 81,5% e 89,3% em 2018, 2019 e 2020 (até o mês de fevereiro), respectivamente.

Em sentido diametralmente oposto, os votos de qualidade têm sucessivamente diminuído, representando 7,2% das decisões em 2017, reduzindo sua incidência ano a ano para 6,8%, 5,3% e, até o momento, em 2020, 3,2%[4].

Outro dado de destaque é que, em 2019, abrindo-se os resultados dos votos de qualidade, dos 5,3% do total, 1,3% foi favorável aos contribuintes (24,53% dos votos de qualidade). Por sua vez, até fevereiro de 2020, dos 3,2% dos votos de qualidade, 1,3% favoreceram os contribuintes (40,63%).

Durante o trâmite da Medida Provisória nº 899/19 (“MP do Contribuinte Legal”) – que estabeleceu regras para a renegociação de dívidas tributárias de contribuintes junto à União – o Congresso Nacional buscou alterar a regra vigente no CARF há quase 90 anos[5].

A própria constitucionalidade da inserção desse dispositivo no PLV nº 2/2020 é questionável, por ser matéria estranha ao conteúdo da medida provisória (nesse sentido, a posição do STF na ADI nº 5.127), e até mesmo vício de iniciativa em razão de se tratar de tema cujo o impulso inicial seria de competência exclusiva do Presidente da República (art. 61, §1º, da CF/88). Contudo, a despeito dessa necessária discussão de cunho constitucional, discorda-se aqui, de forma mais incisiva, do mérito dessa alteração.

Em primeiro lugar, há de se ressaltar que a própria paridade no CARF não decorre de qualquer mandamento constitucional, nem é obrigatória aos tribunais administrativos, mas sim de concessão democrática, característica desde a origem do órgão, inclusive repercutindo na estruturação dos tribunais administrativos estaduais e federais. A possibilidade de representantes dos contribuintes participarem desses julgamentos administrativos confere maior credibilidade e legitimidade às decisões, permitindo à sociedade civil voz ativa no desenrolar das grandes discussões tributárias de interesse nacional.

Mas não se pode perder de vista, todavia, que o Carf é um órgão administrativo, e seu pronunciamento final representa entendimento do Estado acerca da legalidade de seu próprio ato administrativo, o qual goza, como atributo que lhe é inerente, de presunção de legitimidade. O próprio art. 112 do CTN[6], muitas vezes base das alegações para que em caso de empate o crédito tributário seja extinto, na realidade aplica-se tão somente na hipótese de dúvida objetiva sobre a interpretação de leis que definem infrações ou cominam penalidades, não havendo que se cogitar sua aplicação para extinguir, inclusive, o tributo exigido de ofício.

Por óbvio, o Carf pode, e deve, retirar esse atributo de legitimidade do ato de lançamento diante da constatação de ausência de prova ou da própria ilegalidade do ato ou interpretação levada a efeito pelo Fisco.

Cabe ainda um parêntese a respeito do conteúdo do § 9º do art. 25 da Lei nº 11.941/2009: o voto de qualidade não foi previsto para ser favorável ao Fisco, mas sim para estabelecer um critério de desempate no julgamento, contra ou favor a quaisquer das partes, quais sejam, os contribuintes ou a Fazenda Nacional, tanto assim que mais de 25% dos votos de qualidade em 2019, e cerca de 40% até fevereiro de 2020, favoreceram os contribuintes.

Deve-se observar ainda que a decisão do Carf que exonera o sujeito passivo da obrigação tributária é definitiva e não se sujeita à revisão por parte do Poder Judiciário[7][8]. Por outro lado, o contribuinte, caso não obtenha sucesso na lide administrativa, sempre terá o direito de se socorrer do Poder Judiciário, aduzindo todas as suas razões de fato e de direito.

Desse modo, o atual sistema é coerente ao determinar que, em caso de empate, e sendo o voto do Presidente do colegiado favorável ao Fisco, a Fazenda seja considerada vencedora, prestigiando-se o atributo geral de presunção de legitimidade do ato administrativo. E, nesse caso, repita-se: a decisão administrativa pode ser contestada pelo contribuinte perante o Poder Judiciário[9].

A defesa da existência do voto de qualidade, por outro lado, não significa que o processo administrativo-fiscal federal não necessite de ajustes: o que se critica aqui é uma alteração isolada e oportunista[10] que deturpa todo um sistema existente há quase 90 anos, ao invés de um debate democrático, técnico e dialético, essencial para mudanças coerentes e vocacionadas a se perpetuarem.

Dentro dessa perspectiva, propomos uma série de sugestões de aperfeiçoamento do Decreto nº 70.235/72, muitas, inclusive, que podem ser realizados simplesmente por meio de Portaria do Ministro da Economia ou por Decreto, com a finalidade de consolidar a independência e imparcialidade em todas as turmas e instâncias de julgamento, que deve ser a busca constante do Carf.

Nossas sugestões seriam as seguintes:

a) estabelecimento de critérios objetivos[11] para a composição da CSRF, tanto em relação aos conselheiros representantes do Fisco quanto para representantes dos contribuintes;

b) separação entre a função judicante e a função administrativa dos Presidentes de Câmara e de Seção: atualmente, a maior parte dos representantes do Fisco que compõem a CSRF são ocupantes de cargos de confiança, que exigem do conselheiro residir em Brasília, o que torna pouco atraente aos representantes da Fazenda Nacional almejar um assento naquele colegiado. Propõe-se, assim, que os cargos de confiança sejam destinados à funções meramente administrativas, resguardando-se a discricionariedade da Presidente do CARF na distribuição deles, restringindo-se a atuação dos Presidentes de Câmara e de Seção ao julgamento dos recursos, sem necessidade que residam em Brasília, como já ocorre com os Presidentes das Turmas Ordinárias;

c) definição de prazo máximo para exercício do mandato junto à CSRF, limitando-se a um único interstício de dois anos. Possibilita-se, assim, uma maior oxigenação desse colegiado e uma maior homogeneidade de entendimentos entre turmas ordinárias e CSRF, consolidando a jurisprudência do órgão como um todo. Elimina-se, assim, a sensação de que a jurisprudência desenvolvida nas câmaras baixas seria irrelevante, em razão de posição dissonante da CSRF, prestigiando os debates técnicos desenvolvidos nas duas instâncias do órgão;

d) aumento do prazo do mandato de Conselheiros em geral para 04 anos, passíveis de uma única recondução, de modo que tais atores do processo administrativo tributário possam exercer por maior tempo suas funções, o que tende a gerar uma maior sedimentação da jurisprudência do órgão;

e) desvinculação do processo de recondução de conselheiros à anuência ou endosso das representações (confederações, entidades sindicais e Receita Federal), competindo somente ao CSC a decisão sobre recondução, ou não, do conselheiro, com base em critérios objetivos[12]. Tal alteração almejaria a maximização da independência e imparcialidade dos julgadores, uma vez que impediria que as representações pudessem vetar a recondução de conselheiros por não concordarem com o mérito de seus votos ou por conveniências de qualquer sorte. Salienta-se que continuaria competindo às representações a indicação de listras tríplices para a designação de conselheiros, sendo-lhes vedada somente a possibilidade de veto prévio a eventuais reconduções;

f) manutenção das regras que garantam vagas aos ex-conselheiros da Fazenda nas Delegacias de Julgamento, de forma oxigenar as turmas de julgamento de primeira instância e instigar, já nessa fase processual, debates geralmente restritos ao Carf, retroalimentando qualitativamente o processo administrativo fiscal. Em paralelo, deve-se garantir a eles o direito a permanecer no Carf na condição de “especialistas” possibilitando que a expertise adquirida ao longo dos mandatos possa auxiliar na elaboração de minutas de despacho de admissibilidades de embargos e de recursos especiais.

Ainda nesse rol de direitos, também se faz importante a garantia, a critério do ex-conselheiro, de retornar à sua unidade de origem ao término de seus trabalhos junto ao Carf. Esse conjunto de garantias tornaria mais atrativo aos Auditores Fiscais se candidatarem nos certames da Receita Federal para preenchimento de vagas de conselheiros e, por fim

g) em relação aos conselheiros representantes dos Contribuintes, o estabelecimento de um regime jurídico funcional, com direitos e deveres, e com remuneração compatível com o nível de complexidade e dedicação que a atuação no Carf demanda, buscando não apenas atrair talentos da iniciativa privada, como também manter os que atualmente lá se encontram.

Todas as sugestões acimas são medidas de baixa a média dificuldade de implementação[13], e que têm o condão de dar uma maior imparcialidade e independência aos julgadores administrativos, reforçando o órgão e consolidando o seu relevante papel institucional.

Em síntese: o problema do Carf não é o voto de qualidade, enquanto instrumento de resolução de empates nos julgamentos. É preciso, entretanto, que a estrutura do Carf e sua normatização sejam coerentes com esse tipo de modelo, maximizando a independência de todos os conselheiros e priorizando a técnica ao embate ideológico.

Espera-se, assim, que a matéria enxertada no Congresso Nacional seja vetada pelo Presidente da República, mas que a situação atual dê ensejo às necessárias alterações no processo administrativo fiscal, com base discussões prévias com a sociedade e os órgãos envolvidos, de forma que se construa um procedimento justo, célere e pautado no interesse público e na correta aplicação das leis.

Este texto não reflete a posição institucional do Carf, mas sim uma opinião dos colunistas que o subscrevem.


[1] Art. 25. O julgamento do processo de exigência de tributos ou contribuições administrados pela Secretaria da Receita Federal compete:

[…]

II – em segunda instância, ao Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, órgão colegiado, paritário, integrante da estrutura do Ministério da Fazenda, com atribuição de julgar recursos de ofício e voluntários de decisão de primeira instância, bem como recursos de natureza especial. (Redação dada pela Lei nº 11.941, de 2009)

[2] De composição plural, integrado pelo Presidente do CARF e pelos representantes dos seguintes órgãos: Secretaria da Receita Federal do Brasil; Procuradoria Geral da Fazenda Nacional; Confederações Representativas das Categorias Econômicas de Nível Nacional; Sociedade Civil e Ordem dos Advogados do Brasil – OAB.

[3] Disponível em <http://idg.carf.fazenda.gov.br/dados-abertos/relatorios-gerenciais/2020/dados-abertos.pdf>, p. 9. Acesso em: 30 de março de 2020.

[4] Como o CARF não é responsável pela liquidação das decisões, não há informação sobre o percentual de crédito tributário mantido ou exonerado no âmbito do órgão, situação que leva a especulações de toda ordem quanto ao real impacto dos votos de qualidade em relação ao total de valores julgados, em especial no que diz respeito à discussão das “teses” envolvendo planejamentos tributários.

[5] O voto de qualidade do Presidente de Turma foi estabelecido originalmente no Decreto nº 20.350/1931.

[6] Art. 112. A lei tributária que define infrações, ou lhe comina penalidades, interpreta-se da maneira mais favorável ao acusado, em caso de dúvida quanto:

I – à capitulação legal do fato;

II – à natureza ou às circunstâncias materiais do fato, ou à natureza ou extensão dos seus efeitos;

III – à autoria, imputabilidade, ou punibilidade;

IV – à natureza da penalidade aplicável, ou à sua graduação.

[7] Em alguns projetos tramitando no Congresso Nacional, previa-se o direito de a Fazenda Nacional ingressar em juízo na hipótese de o contribuinte ser vencedor da lide em caso de empate no julgamento, mas o projeto de conversão da MP 899/19 não abriu essa possibilidade.

[8] O que, na opinião destes colunistas, não se alteraria caso o projeto aqui analisado seja aprovado, uma vez que a União não teria interesse de agir em questionar ato praticado pela própria União. A relação processual é sinalagmática, não podendo alguém, ao mesmo tempo, ser Autor e Réu em uma demanda. Tal afirmação, por sua vez, só reforça o equívoco do fim do voto de qualidade, pois enfraqueceria, demasiadamente, a posição da fiscalização federal.

[9] Veja-se que, mesmo em caso de voto de qualidade a favor do contribuinte, a Fazenda não tem o direito de submeter ao Poder Judiciário a discussão sobre a exigência.

[10] Haja vista o atual cenário histórico da pandemia mundial que vivemos.

[11] Tais como, v.g., índices de produtividade, titulação acadêmica, tempo de Tribunal e de atuação profissional, dentre outros critérios.

[12] Como índices de produtividade, v.g..

[13] Não se aborda, no presente artigo, propostas legislativas que, na hipótese de eventual voto de qualidade em desfavor do contribuinte, viesse a afastar eventuais multas agravadas, bem como a consequente repercussão criminal da manutenção da obrigação principal. Preferimos centrar nossa análise em medidas pontuais (infralegais) e que são de fácil implementação, de modo a demonstrar que soluções imediatas para o aperfeiçoamento do voto de qualidade não exigem mudanças legislativas de grande envergadura, ainda mais em um momento tão crítico da nossa sociedade.

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