Cessão de créditos reconhecidos judicialmente e compensação tributária pelo cessionário

Por Diego Diniz Ribeiro

Na coluna de hoje abordaremos um tema bastante interessante: a cessão de créditos reconhecidos judicialmente e a possibilidade de o cessionário aproveitá-lo para fins de compensação em matéria tributária.

O problema a ser enfrentado gravita em torno da interpretação atribuída pela jurisprudência do STJ e do Carf ao artigo 74, § 12, inciso II, alínea “a” da Lei n. 9.430/96. [1]

Segundo os precedentes desses Tribunais, referida disposição criaria um óbice para o cessionário aproveitar o crédito originalmente pertencente ao cedente e objeto do negócio jurídico da cessão.

A questão, todavia, a ser respondida é: a partir do momento em que há a cessão do crédito, tal utilidade econômica a ser compensada continua sendo de um “terceiro” ou passa a pertencer ao próprio cessionário? Em outros termos, tal importe não deixaria de ser um crédito de terceiro para ganhar o status de crédito próprio?

Cessão de crédito e seu aspecto material
A cessão de crédito é instituto de Direito Civil, regulado pelo artigo. 286 e s.s. do Código Civil. Segundo o que se encontra ali prescrito, o detentor do crédito pode cedê-lo para terceiro, desde que “a isso não se opuser a natureza da obrigação, a lei, ou a convenção com o devedor”.

O artigo 110 do Código Tributário Nacional, por sua vez, prevê que “a lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado”. Logo, a regulação da cessão de crédito estabelecida pelo Direito Civil é encampada pelo ordenamento jurídico-tributário nacional. [2]

Acrescente-se, ainda, que referido negócio jurídico demanda forma solene para ter eficácia contra terceiros, devendo ser materializado por instrumentos público ou particular, esse último desde que revestido das solenidades do artigo 654, § 1º do Código Civil. Tudo isso, importante frisar, no que tange ao aspecto material da cessão.

Aspecto processual da cessão de crédito
Por sua vez, já no que diz respeito ao aspecto processual da cessão, mister se faz destacar o disposto no artigo 109 do CPC. [3]

Com o intuito de evitar imbróglios processuais, o mencionado dispositivo processual estabelece que a cessão do direito litigioso não tem o condão de, em regra, alterar a legitimidade da parte; como regra geral, portanto, o cessionário não substitui o cedente na demanda em que reconhecido o crédito objeto da lide.

A substituição processual referida só será possível se houver anuência da parte contrária e, caso isso não ocorra, caberá ao cessionário a hipótese de intervir na lide na qualidade de assistente litisconsorcial do cedente, nos termos do art. 124 do CPC. [4]

A compensação do crédito tributário
Não obstante, mesmo havendo anuência da Ré para que haja a citada substituição processual, tal fato não é garantia de que o cessionário poderá compensar administrativamente seus débitos com o crédito cedido, haja vista interpretação jurisprudencial que vem sendo dada ao disposto no artigo 74, § 12, inciso II, alínea “a” da Lei n. 9.430/96.

O Superior Tribunal de Justiça tem entendido que, embora a cessão de crédito tenha validade jurídica no âmbito cível, ela pode se submeter a um diferente regime jurídico na seara tributária, inclusive com a impossibilidade de a cessionária compensar débitos próprios com “créditos de terceiros” (aquele objeto da cessão), o que pretensamente encontraria amparo no supracitado prescritivo da Lei nº 9.430/96.

Nesse sentido, destaca-se trechos da ementa do REsp n. 993.925/RS:

PROCESSO CIVIL E TRIBUTÁRIO. SENTENÇA CONDENATÓRIA DO DIREITO À COMPENSAÇÃO DO INDÉBITO. CESSÃO DE CRÉDITOS ENTRE PESSOAS JURÍDICAS DISTINTAS. IMPOSSIBILIDADE. LEI 9.430/96. PROIBIÇÃO DA COMPENSAÇÃO DE CRÉDITOS TRIBUTÁRIOS COM CRÉDITOS DE TERCEIROS.
(…).
1 In casu, trata-se de decisão transitada em julgado reconhecendo o direito de compensação da cedente em face da Fazenda Nacional. Não obstante a admissibilidade da cessão de créditos na seara tributária, verifica-se a existência de óbice legal à efetivação da compensação nos moldes requeridos pelas recorrentes (com créditos de terceiros), qual seja, o mandamento inserto no art. 74 da Lei 9.430/96, o que conduz à ineficácia da cessão de créditos perante o fisco e, consectariamente, à inoperosidade da substituição processual almejada. (Precedentes: REsp 1121045/RS, DJe 15/10/2009; REsp 939.651/RS, DJ 27/02/2008).
2 Diversa seria a solução acaso as recorrentes pretendessem executar o quantum debeatur, isto porque o direito à restituição do indébito é direito de crédito (art. 165, do CTN), sendo, portanto, disponível, consoante a norma insculpida no art. 286, do Código Civil. Por isso que, na ausência de regra tributária expressamente proibitiva, aplica-se a regra geral que trata de cessão de créditos, máxime por não se tratar, o crédito tributário, de direito intransferível, indisponível ou personalíssimo. (Precedentes: AgRg no REsp 1094429/RJ, DJe 04/11/2009; REsp 789453/RS, DJ 11/06/2007).
3 Não obstante, o Direito Tributário, conquanto não possa alterar o conceito da cessão de crédito da lei civil, pode-lhe atribuir efeitos próprios na seara tributária, inclusive dispondo sobre requisitos de validade da cessão. (Precedente: AgRg no Ag 1228671/PR, DJe 03/05/2010).
(…).
(REsp n. 993.925/RS, relator Ministro Luiz Fux, Primeira Turma, julgado em 5/8/2010, DJe de 19/8/2010.) (grifos nosso).

Assim, segundo o sobredito precedente, embora a cessão do crédito seja juridicamente válida, inclusive na seara tributária, ela não gera o direito de o cessionário compensar os créditos cedidos com seus débitos, em razão da suposta restrição estabelecida pelo artigo 74, § 12, inciso II, alínea “a” da Lei n. 9.430/96. Esse também é o teor do Parecer PGFN/CAT nº 1.010/2000. [5]

Ainda no sentido acima apontado, destacam-se também os seguintes Acórdãos do Carf: 3302-011.851; [6] 3402-008.328; [7] 9303-008.124; [8] e 3402-006.651. [9]

Os fundamentos empregados em tais precedentes podem ser resumidos em dois pontos:

(i) o artigo 74, § 12, inciso II, alínea “a” da Lei n. 9.430/96 cria uma vedação à compensação por meio de créditos que não sejam originalmente do contribuinte que promove o pedido de compensação;

e (ii) negócio jurídico celebrado por particulares (cedente e cessionário, no caso) não são oponíveis ao fisco, nos termos do artigo 123 do CTN, [10] o que seria um reforço à aparente restrição trazida no já citado dispositivo da Lei nº 9.430/96.

Assim, segundo tais precedentes, o aproveitamento pelo cessionário do crédito cedido só é possível se (i) a decisão judicial homologatória da cessão expressamente garantir o direito de o cessionário compensar seus débitos com os créditos cedidos ou se (ii) o cessionário resolver receber esse crédito pela via judicial, após a homologação da cessão e transferência do polo ativo e, ainda, desde que haja anuência da parte contrária, o que se dará pela via do precatório ou da requisição de pequeno valor (RPV), a depender do importe envolvido.

Análise crítica dos precedentes
A questão lançada no início desse texto e objeto de reflexão é a seguinte: a partir do momento em que há a cessão do crédito, por instrumento jurídico prescrito em lei, não há também a transferência da sua titularidade, tornando o cessionário seu titular? E, nessa hipótese, o crédito utilizado pelo cessionário para a compensação não seria próprio, o que afastaria a incidência do artigo 74, § 12, inciso II, alínea “a” da Lei n. 9.430/96?

Referida disposição legal estabelece que será considerada não homologada a cessão de crédito que “seja de terceiro”. Em momento algum o legislador qualifica esse crédito como “originalmente” de terceiro, conforme indevidamente se observa na ratio dos precedentes aqui citados.

Por sua vez, o segundo fundamento desenvolvido em tais precedentes — de que negócio jurídico celebrado por particulares não seriam oponíveis ao fisco (artigo 123 do CTN) — expõe uma contradição em tais julgados, na medida em que tais precedentes expressamente admitem como válida a cessão de créditos no âmbito tributário, mas restringem seu uso para fins de compensação sem que haja norma proibitiva para tanto, como visto acima. [11]

Não é possível, entretanto, que o negócio jurídico da cessão seja apenas “parcialmente válido” no âmbito tributário. Ou ele tem plena eficácia, inclusive considerando o disposto no artigo 286 e s.s. do Código Civil, conjugado com o artigo 110 do CTN, ou ele não tem eficácia alguma, já que — repita-se — o artigo. 74, § 12, inciso II, alínea “a” da Lei n. 9.430/96 restringe o aproveitamento de “créditos de terceiros” e não a utilização de créditos “originalmente” de terceiros.

Assim, o referido dispositivo da Lei n. 9.430/96 impede que um crédito de titularidade da pessoa “A” seja utilizado para compensar débito da pessoa “B”. [12]

Como visto, entretanto, na hipótese da cessão do crédito por intermédio dos instrumentos jurídicos prescritos em lei e indicados no Código Civil, tal utilidade econômica não é mais do cedente e sim do cessionário. Logo, a compensação não seria com crédito de “terceiro”, mas com crédito próprio.

Analisando os precedentes aqui citados, tanto aquele do STJ como os veiculados pelo Carf, em momento algum se observa um aprofundamento nessas questões, o que suscita a provocação crítica aqui feita, a qual tem por fito de buscar um aperfeiçoamento desses precedentes, a redundar na sua eventual expansão, [13] o que está em perfeita sintonia com um adequado modelo de stare decisis, o qual é visto como um organismo vivo e, portanto, sujeito a permanentes expansões ou contrações. [14]

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[1] Art. 74. O sujeito passivo que apurar crédito, inclusive os judiciais com trânsito em julgado, relativo a tributo ou contribuição administrado pela Secretaria da Receita Federal, passível de restituição ou de ressarcimento, poderá utilizá-lo na compensação de débitos próprios relativos a quaisquer tributos e contribuições administrados por aquele Órgão

  • 12. Será considerada não declarada a compensação nas hipóteses:

(…);

II – em que o crédito:

  1. seja de terceiros;

(…).

[2] Fazendo uma análise crítica do art. 110 do CTN: SCHOUERI, Luís Fernando. Direito tributário. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 646 e s.s.

[3] Art. 109. A alienação da coisa ou do direito litigioso por ato entre vivos, a título particular, não altera a legitimidade das partes.

  • 1º O adquirente ou cessionário não poderá ingressar em juízo, sucedendo o alienante ou cedente, sem que o consinta a parte contrária.
  • 2º O adquirente ou cessionário poderá intervir no processo como assistente litisconsorcial do alienante ou cedente.
  • 3º Estendem-se os efeitos da sentença proferida entre as partes originárias ao adquirente ou cessionário.

[4] Art. 124. Considera-se litisconsorte da parte principal o assistente sempre que a sentença influir na relação jurídica entre ele e o adversário do assistido.

[5] (…).

  1. Não obstante, as disposições legais que regem a matéria não contemplaram tal procedimento. O já transcrito art. 74 da Lei nº. 9.430, de 1996, é explícito quando diz que a Secretaria da Receita Federal, atendendo a requerimento do contribuinte, poderá autorizar a utilização de créditos a serem a ele restituídos ou ressarcidos, para fins de compensação, mas não faz referência à utilização de créditos de terceiros.

(…)

  1. Com efeito, a compensação é restrita aos casos expressamente previstos em lei e as normas legais que dispõem sobre essa forma de extinção do crédito tributário não previram a utilização de crédito não pertencente ao próprio contribuinte. Por tal razão, nos parece acertada a IN SRF nº. 41, de 7 de abril de 2000, que vedou a compensação de débito do sujeito passivo, relativos a impostos ou contribuições administrados pelo órgão, com créditos de terceiros.
  2. Somente o fato de a IN SRF nº. 21 não ter fundamento de validade, no que se refere à utilização de crédito de terceiro para fins de compensação, seria suficiente para dar cabo ao caso concreto do presente pleito.

(…). (grifos nosso).

[6] Conselheira Relatora Denise Madalena Green.

[7] Conselheira Relatora Cynthia Elena de Campos.

[8]  Conselheiro Relator Luiz Eduardo de Oliveira Santos.

[9] Conselheira Relatora Maria Aparecida Martins de Paula.

[10] Art. 123. Salvo disposições de lei em contrário, as convenções particulares, relativas à responsabilidade pelo pagamento de tributos, não podem ser opostas à Fazenda Pública, para modificar a definição legal do sujeito passivo das obrigações tributárias correspondentes.

[11] Nesse sentido, destacamos o seguinte trecho do voto da Relatora do Acõrdão n. 3402-006.651, já citado:

É verdade que não há qualquer vedação da lei para a cessão de créditos no âmbito tributário, no entanto, aceitar os seus efeitos no âmbito da compensação seria tornar “letra morta” a vedação contida em lei e em atos normativos para compensação com créditos ou débitos de outras pessoas jurídicas. (g.n.)

[12] Situação essa que, no plano tributário federal, para fins de cumprimento de obrigação tributária, já vem se sujeitando a flexibilizações. Nesse sentido, basta a análise do art. 25-A, § 3º do Decreto n. 70.235/72, que admite o uso de prejuízo fiscal ou base de cálculo negativa da CSLL pertencente a terceiros para pagamento da dívida de um contribuinte sucumbente no CARF pelo voto de qualidade.

[13] Tratando da expansão e da contração dos precedentes: SHAUER, Frederick. Precedente. In: DIDIER JÚNIOR, Fredie et al. (coord.). Precedentes. Salvador: Juspodivm, 2015. p. 59.

[14] Daí afirmação de Roscoe Pound, citado por Edward D. Re, ao analisar o modelo de stare decisis: o direito deve ser estável, no entanto, não pode ser estático.” (RE, Edward D. Stare decisis. Revista de Informação Legislativa, [s.l.], v. 31, n. 122, p. 282, abr./jun. 1994.).

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