Súmula Carf 210 e a responsabilidade tributária de grupos econômicos

Por Diego Diniz Ribeiro

Maria Rita Ferragut

No último mês de setembro o Carf se reuniu e aprovou novas súmulas, visando sintetizar a posição institucional do tribunal para certas questões submetidas ao seu julgamento e, dessa forma, vincular os julgadores ao disposto nos enunciados sumulares aprovados, tudo isso em prol da superestimada “duração razoável do processo”, [1] das decisões padronizadas e da obsessiva redução de estoque de processos, que no modelo brasileiro de precedentes é muito mais uma questão de política judiciária do que de segurança jurídica. Dentre os enunciados aprovados, destaca-se a Súmula 210, com a seguinte redação:

As empresas que integram grupo econômico de qualquer natureza respondem solidariamente pelo cumprimento das obrigações previstas na legislação previdenciária, nos termos do art. 30, inciso IX, da Lei nº 8.212/1991, c/c o art. 124, inciso II, do CTN, sem necessidade de o fisco demonstrar o interesse comum a que alude o art. 124, inciso I, do CTN.

Referido enunciado vem sendo objeto de inúmeras críticas, [2] algumas delas objeto de tratamento no presente texto.

Problema de origem

Ponderações críticas acerca do modelo da “sumularização” do Direito [3] não altera a situação de que tais enunciados sumulares são uma realidade no ordenamento jurídico nacional, [4] inclusive no âmbito do Carf. É necessário, portanto, lidar com as súmulas, mas procurando minimizar os riscos que a aplicação de tais enunciados, desassociados dos casos que lhes deram origem, possa causar. Ou seja, é preciso prestigiar um método que vise conter o risco das súmulas serem tratadas como fonte legal (lei em sentido estrito) e não como fonte jurisdicional do Direito. [5]

Dito isso, é possível constatar grave problema de origem da súmula aqui analisada. Isso porque tal enunciado tem por objetivo uniformizar a aplicação do artigo 30, inciso IX, da Lei nº 8.212/1991, [6] validando a hipótese de responsabilidade tributária de natureza objetiva para as contribuições previdenciárias, de forma que a norma deveria incidir independentemente da presença de elementos de caráter subjetivo (dolo, fraude, simulação etc.) e, nesse sentido, a mera existência de grupo econômico já seria fato suficiente para atrair a responsabilidade prevista no referido enunciado.

Entretanto, observa-se que dos precedentes que deram origem à súmula, dois deles sequer trataram da responsabilidade objetiva a que nos referimos, mas sim de questões eminentemente afetas à responsabilidade subjetiva: condutas fraudulentas por parte dos sujeitos passivos fiscalizados, a gerar confusão patrimonial entre eles. Portanto, é evidente a distância da situação normatizada pelo artigo 30, inciso IX, da Lei nº 8.212/1991 com a situação dos Acórdãos n.s 9202-010.131 e 9202007.682, de forma que há vício de origem na referida súmula, já que dois dos três precedentes que lhe deram causa não dão suporte ao seu teor.

E para além das questões acima apontadas, a Súmula 210 sujeita-se a outra crítica, exposta a seguir.

Problema de conteúdo

Outro problema que nos parece evidente — e insuperável — diz respeito ao conteúdo da Súmula 210 que, ao abraçar a responsabilidade objetiva dos grupos econômicos por débitos previdenciários, viola os artigos 124, incisos I e II, e 128 do CTN, ainda que o inciso II alegadamente seja seu suposto fundamento de validade.

O artigo 124, II do CTN, ao prescrever que “serão solidárias as pessoas expressamente designadas por lei”, não previu o óbvio, pois em função do princípio da estrita legalidade, a responsabilidade tributária sempre requer previsão legal. Por outro lado, determinou que as pessoas solidariamente obrigadas são tanto as referidas nos artigos 134 e 135 do CTN, quanto outras que venham a ser criadas após o advento do CTN (1966), desde que observem os preceitos desses dispositivos e do artigo 128 do mesmo código.

Participar de um grupo econômico é fato insuficiente para desencadear a incidência da norma de responsabilidade tributária. O requisito empregado pelo legislador (integrar grupo econômico) não atende a exigência do artigo 128 do CTN, que requer que para as novas hipóteses de responsabilização de terceiros o sujeito esteja vinculado ao fato gerador da respectiva obrigação tributária.

Esse é o entendimento consolidado do Supremo Tribunal Federal (STF), que ao julgar o RE 562.276/PR, sob o regime de repercussão geral, i.e., de forma vinculante (artigo 927, inciso V do CPC), decidiu que “o preceito do artigo 124, II, no sentido de que são solidariamente obrigadas ‘as pessoas expressamente designadas por lei’, não autoriza o legislador a criar novos casos de responsabilidade tributária sem a observância dos requisitos exigidos pelo artigo 128 do CTN, tampouco a desconsiderar as regras matrizes de responsabilidade de terceiros estabelecidas em caráter geral pelos arts. 134 e 135 do mesmo diploma”.

Portanto, e com todo o respeito aos que entendem e julgam ao contrário, a responsabilidade tributária objetiva é indefensável. Note-se que no julgamento acima referido estava sub judice a constitucionalidade do artigo 13 da Lei nº 8.620/93, tendo sido declarado inconstitucional referido preceito que tornava responsável solidário qualquer sócio de sociedade de responsabilidade limitada pelo mero inadimplemento de débitos da Seguridade Social. E nessa linha foi proferida a seguinte tese ao Tema 13 do STF: “É inconstitucional do artigo 13 da Lei 8.620/1993, na parte em que estabelece que os sócios de empresas por cotas de responsabilidade limitada respondem solidariamente com seus bens pessoais por débito junto à Seguridade Social”.

Também o Superior Tribunal de Justiça (STJ) já decidiu inúmeras vezes contrariamente à responsabilidade tributária objetiva de pessoas físicas e grupos econômicos, por entender que ” responsabilidade solidária não decorre exclusivamente da demonstração da formação de grupo econômico, mas demanda a comprovação de práticas comuns, prática conjunta ou, ainda quando há confusão patrimonial” (Recurso Especial nº 1.511.682).

Nesse contexto, algumas perguntas mostram-se necessárias: existe sequer um argumento capaz de afastar a inconstitucionalidade e a ilegalidade do artigo 30, IX, da Lei 8.212/91 e validar materialmente o conteúdo da Súmula Carf 210? Entendemos que não. E o que distingue o artigo 13 da Lei 8.620/1993, julgado pelo STF sob regime de recursos repetitivos, do caso concreto? Apenas os termos “sócios” e “grupo econômico”, uma vez que todo fundamento de decidir (ratio decidendi) é exatamente o mesmo.

E nesse ponto convém destacar que, em se tratando de convocação de um precedente, não há que se falar em uma pretensa identidade lógica-subsuntiva (própria da aplicação das leis) dos casos comparados, mas sim uma aproximação de problemas, por meio do emprego da analogia, o que justifica a convocação da ratio decidendi do que fora decidido pelo STF no tema 13.

Por isso, infelizmente a aplicação da Súmula Carf 210 acabará por contribuir para o desnecessário aumento de litigiosidade, e não nos parece haver qualquer possibilidade de manutenção da responsabilidade tributária objetiva no Judiciário.

Para finalizar, a Súmula Carf 210 também caminha em sentido inverso de diversas normas vigentes ou ainda em discussão, inclusive da própria Receita Federal, que autorizam a atribuição da responsabilidade tão somente quando houver interesse comum ou ilícito, como se nota a seguir:

Artigos 5º, XIII e 170, parágrafo único da Constituição, que vedam a desconsideração ex lege e objetiva da personalidade jurídica.
Código Civil – Art. 49-A, parágrafo único: “A autonomia patrimonial das pessoas jurídicas é um instrumento lícito de alocação e segregação de riscos, estabelecido pela lei com a finalidade de estimular empreendimentos, para a geração de empregos, tributo, renda e inovação em benefício de todos.”
Parecer Normativo Cosit/RFB nº 4/2018, item 21: “Já se adianta que os grupos econômicos formados de acordo com os Capítulos XX e XXI da Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976, em que há pleno respeito à personalidade jurídica de seus integrantes (mantendo-se a autonomia patrimonial e operacional de cada um deles), não podem sofrer a responsabilização solidária, salvo cometimento em conjunto do próprio fato gerador.”
PLP 68/2024 – art. 24, § 4º: “Não enseja a responsabilidade solidária a mera existência de grupo econômico quando inexistente qualquer ação ou omissão que se enquadre no inciso V do caput.”

Conclusão

Diante do exposto, podemos concluir que o artigo 30, IX, da Lei nº 8.212/91 é válido para atribuir responsabilidade solidária aos grupos econômicos somente se respeitados os artigos 124, I e II, e 128 do CTN, o que não ocorre pelo exclusivo fato de duas ou mais sociedades pertencerem a um mesmo grupo econômico, de forma que a Súmula Carf 210 viola a Constituição, o CTN e a vasta jurisprudência judicial (inclusive precedente vinculante) para o tema.

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[1] Nunca é demais lembrar que a atividade de julgamento é tarefa prudencial (na linha da phronesis aristotélica) e, como tal, demanda um certo tempo para a sua realização. Não é, portanto, um “fordismo” jurisdicional que resolverá os problemas das atividades de julgamento realizadas pelos nossos Tribunais (Administrativos e Judiciais).

[2] Em sentido oposto, entendendo pela pertinência da súmula: A falácia do espantalho e a responsabilidade do grupo econômico. Acessado em 30.10.2024.

[3] Tratando do assunto: RIBEIRO, Diego Diniz. A rescisão da coisa julgada com base em precedentes do STF e do STJ: uma análise crítica no processo judicial tributário. São Paulo: Noeses, 2024.

[4] Realidade essa que, logo após a Emenda Constitucional 45/2004, esteve muito em voga, com particular ênfase às súmulas vinculantes do STF, mas que, de alguns anos para cá, perderam força frente a outros institutos formais de vinculação de precedentes, tais como a repercussão geral e os recursos repetitivos.

[5] Daí, inclusive, a preocupação do legislador no art. 489, § 1º, inciso V do CPC, em precisar o método de realização de súmulas para fins de motivação de decisões.

[6] Art. 30. A arrecadação e o recolhimento das contribuições ou de outras importâncias devidas à Seguridade Social obedecem às seguintes normas:
(…).
IX – as empresas que integram grupo econômico de qualquer natureza respondem entre si, solidariamente, pelas obrigações decorrentes desta lei;

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