Por Carlos Augusto Daniel Neto – Conselheiro Titular do Carf
Se for possível apontar um tema tributário que marcou o ano de 2018, este certamente será o da aplicabilidade do artigo 24 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lindb) aos processos administrativos tributários em curso no Carf. Ele ocupou espaço nos congressos, seminários e debates muito bem estruturados — com justo destaque aos eventos promovidos pelo Núcleo de Estudos Fiscais (NEF) da FGV, sob a coordenação de Eurico de Santi e outros colegas, que muito contribuíram para o fomento do tema.
O referido debate não ficou restrito aos espaços acadêmicos, fazendo parte de diversos julgamentos realizados nos últimos meses no Carf, com a apresentação de muitos argumentos favoráveis e desfavoráveis à aplicação do dispositivo em questão, que muito desenvolveram a compreensão do tema no âmbito daquele órgão, cabendo a nós, agora, estruturá-los para uma melhor compreensão de como a matéria vem se consolidando nesse órgão.
Primeiramente, dispõe o referido artigo, introduzido na Lindb pela Lei 13.655/2018, verbis:
Art. 24. A revisão, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, quanto à validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa cuja produção já se houver completado levará em conta as orientações gerais da época, sendo vedado que, com base em mudança posterior de orientação geral, se declarem inválidas situações plenamente constituídas.
Na primeira vez que o tema foi enfrentado, pela 2ª Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF), através do Acórdão 9202-006.996, o colegiado sequer conheceu a questão posta, sob o fundamento de que os destinatários da Lindb seriam apenas os administradores públicos e os órgãos de controle da administração pública, e não órgãos judicantes administrativos, fazendo referência à Nota Técnica Conjunta 01/2018, que justificava a solicitação do veto presidencial a certos dispositivos do PL 349/2015 (convertido na Lei 13.655/2018).
Em nova manifestação dessa mesma turma, através do Acórdão 9202-007.145, novamente não se conheceu a questão, e reforçou-se o argumento utilizado no acórdão anterior com o argumento de que os órgãos julgadores administrativos não poderiam determinar a posição vinculante para toda a administração tributária, existindo instrumentos próprios para tanto, como as súmulas do Carf aprovadas pelo ministro da Fazenda. Por fim, aduziu que a aplicação do referido artigo teria como efeito nocivo, em relação a precedentes contrários ao contribuinte, o cerceamento do direito de defesa do recorrente e a restrição à livre convicção dos julgadores, inerente ao processo em contraditório.
No Acórdão 1301-003.284, julgado em julho de 2018, conheceu-se da alegação do contribuinte, mas se decidiu pela não aplicação do artigo 24 da Lindb por motivos absolutamente distintos. Em primeiro lugar, ponderou-se que o artigo 24 seria, em tese, aplicável a processos no Carf, mas que em relação ao caso concreto haveria um problema de subsunção da norma, por se tratar de lançamento decorrente de revisão de ato do contribuinte — e que, superado este óbice, haveria grande dificuldade de determinação do que seria a jurisprudência majoritária que geraria a confiança tutelável do contribuinte.
No entender desse colegiado, o caput do artigo 24 exigiria a realização de um ato administrativo, que seria objeto de revisão, ao passo que o caso concreto envolveria um lançamento por homologação (hipótese em que o crédito é constituído pelo próprio contribuinte), de modo que aplicar o dispositivo àquele caso seria possível apenas através de uma interpretação analógica, rechaçada pela turma na decisão. Em se tratando de lançamento de ofício, o julgado pontou, em obiter dictum, que a sua revisão já seria vedada por uma leitura contrario sensu do artigo 149 do CTN, e, complementando, ilustra hipóteses em que o artigo 24 da Lindb seria aplicável, como no caso da cassação de benefícios fiscais. Além disso, pontuou-se que a tutela da confiança do contribuinte deveria ser feita através dos artigos 100 e 146 do CTN. Esse mesmo entendimento foi reiterado recentemente, no Acórdão 1301-003.656.
Os acórdãos 1401-003.017 e 1401-002.292, julgados em novembro de 2018, conheceram a preliminar arguida e trouxeram novos fundamentos para a discussão. Nos termos do acórdão, o artigo 24 da Lindb seria destinado a instâncias de controle de gastos públicos, como o TCU e a CGU, à luz da leitura da exposição de motivos do PL 349/2015 e de uma interpretação sistemática dos demais dispositivos inseridos pela Lei 13.655/2018. Para esse colegiado, o lançamento tributário não seria um “procedimento de revisão” e, ainda que exercesse tal função, teria que se aceitar que a situação jurídica não estaria “plenamente constituída”, pela possibilidade de modificação através da contestação do contribuinte.
Ademais, ressaltou-se que as normas gerais em matéria tributária, por força do artigo 146 da CF/88, são veiculadas apenas através de leis complementares, ao passo que a Lindb foi modificada por lei ordinária. Por fim, pontuam que o artigo 24 não seria meramente interpretativo e que, mesmo que se reconhecesse a sua aplicabilidade aos casos em questão, a sua eficácia seria apenas em relação aos fatos geradores ocorridos posteriormente à sua edição.
No Acórdão 1402-003.605, julgado em dezembro de 2018, a preliminar do artigo 24 da Lindb foi conhecida pelo colegiado, mas rejeitada. Nesse acórdão, adotaram-se fundamentos semelhantes ao Acórdão 1401-003.017, com o acréscimo de que, mesmo que o lançamento revise a apuração do tributo feita pelo contribuinte, estas só se tornam definitiva após o transcurso do prazo de homologação previsto no artigo 150, parágrafo 4º, do CTN, de modo que a “revisão” feita pela fiscalização seria inerente à própria estrutura do lançamento por homologação. Além disso, ressaltou que a aplicação, interpretação e integração da legislação tributária estão regidas pelo CTN, com base na competência estabelecida no artigo 146, III, “b” da CF/88.
Como podemos ver, apesar da aparente uniformidade dos precedentes em rejeitar a aplicação do artigo 24 da Lindb, verifica-se que há divergências sobre o conhecimento da questão e, principalmente, sobre os argumentos preponderantes para a rejeição.
Os principais argumentos que têm sido ventilados são, em síntese, os seguintes:
a) argumento genético: a exposição de motivos determina que a aplicação da lei seja restrita a órgãos de controle de atos administrativos, como TCU, CGU etc.;
b) argumento consequencialista: a aplicação geraria um engessamento da jurisprudência administrativa e poderia caracterizar um cerceamento do direito de defesa, nos casos em que a estabilização fosse contrária ao contribuinte;
c) argumento institucional: aduz a existência de instrumentos próprios para tornar vinculante a jurisprudência do Carf;
d) argumento literal: o artigo 24 não se aplicaria aos casos de lançamento por homologação, pelo fato de que a constituição do crédito tributário se dá por ato do contribuinte, estando fora do alcance do caput do artigo;
e) argumento de fonte: as normas gerais sobre a aplicação de regras tributárias devem ser veiculadas apenas por lei complementar;
f) argumento temporal: o referido artigo não seria interpretativo, só podendo ser aplicado aos fatos geradores posteriores à sua introdução;
g) argumento da completude do ato: o ato administrativo não estaria “plenamente constituído”, em razão da possibilidade de revisão pelo Carf;
h) argumento ontológico: é ínsita ao lançamento por homologação a possibilidade de sua revisão no prazo estabelecido pela lei;
i) argumento da redundância: a tutela da confiança que se pretende extrair do artigo 24 da Lindb já é estabelecida nos artigos 100 e 146 do CTN, com critérios próprios de aplicação.
No início deste ano, foi publicado o Acórdão 9101-003.839, por meio do qual a 1ª CSRF julgou a questão de forma inaugural. O colegiado voto por conhecer a alegação, mas por maioria de votos rejeitou a sua aplicação. A relatora entendeu que o artigo 24 seria aplicável tanto a atos administrativos quanto atos particulares, mas rejeitou a aplicação em razão da irretroatividade dele aos fatos geradores pretéritos.
Conquanto sua posição tenha prevalecido, cabe frisar que foi acompanhada apenas pelas conclusões (rejeição a aplicação) pela maioria dos conselheiros. Como ressaltou o voto vencedor, prevaleceu o entendimento externado pela conselheira Viviane Vidal Wagner, apresentado em declaração de voto, que aderiu expressamente ao argumento literal e ao argumento genético, ressaltando que o dispositivo deve ser interpretado dentro do seu contexto normativo, e que o Carf exerceria função judicante, e não revisional.
Em sentido contrário, o conselheiro Luís Flávio Neto apresentou declarou voto pela aplicação do artigo 24 da Lindb, sustentando que o dispositivo deve ser compreendido à luz do nemo potest venire contra factum proprium e que o ato do contribuinte no lançamento por homologação teria, para a jurisprudência do STJ, natureza de ato administrativo.
Vê-se, portanto, que apesar das decisões serem uniformes na rejeição da aplicação, ainda há uma grande heterogeneidade na combinação de argumentos utilizados — o que dificulta, inclusive, a identificação de qual o motivo determinante da decisão — e prejudica a consolidação da jurisprudência sobre a matéria.
Entretanto, há que se ponderar que o tema é absolutamente recente (e pendente de análise em diversos outros casos, por colegiados que não se manifestaram ainda sobre ele), o que dificulta a consolidação da ratio decidendi, mas que tem se encaminhado no sentido de um tratamento uniforme pelo Carf.
Revista Consultor Jurídico, 6 de fevereiro de 2019, 7h00