A pena de perdimento convertida em multa nas exportações segundo o Carf

Por Carlos Augusto Daniel Neto

Por Gabriel Miranda Batisti

Seguindo a linha de abordar temas aduaneiros que têm sido discutidos pelo Carf, na coluna desta semana trataremos de direito intertemporal: a possibilidade de aplicação da multa substitutiva da pena de perdimento, no caso de exportações que incorram em uma das infrações previstas no artigo 23 do Decreto-Lei nº 1.455/76 (DL nº 1.455/76), nas operações ocorridas anteriormente à vigência da Medida Provisória nº 497/2010 (MP nº 497/2010), posteriormente convertida na Lei nº 12.350/2010.

Contextualizando o tema, o artigo 23 do DL nº 1.455/76 traz um rol de infrações que caracterizam dano ao erário [1]. Posteriormente, a Lei nº 10.637/02 inseriu o quinto inciso e demais parágrafos no artigo 23, determinando, expressamente, que as infrações previstas naquele artigo teriam como pena o perdimento das mercadorias (§1º) e, caso a mercadoria não fosse localizada ou tivesse sido consumida, a pena converter-se-ia em multa equivalente ao valor aduaneiro da mercadoria” (§3º).

O “valor aduaneiro” da mercadoria é um conceito jurídico vinculado às operações de importação, conforme estabelece o artigo 76 do Regulamento Aduaneiro/2009 (RA/2009), sendo inclusive utilizado como base de cálculo do Imposto de Importação (II) pelo Decreto-Lei nº 37/66 [2]. Contudo, em 27/7/2010 foi editada a MP 497/2010 (posteriormente convertida na Lei nº 12.350/2010), que, por força de seu artigo 19 [3], alterou o §3º do artigo 23 do DL 1.455/76, conferindo-lhe a seguinte redação:

“§3º. As infrações previstas no caput serão punidas com multa equivalente ao valor aduaneiro da mercadoria, na importação, ou ao preço constante da respectiva nota fiscal ou documento equivalente, na exportação, quando a mercadoria não for localizada, ou tiver sido consumida ou revendida, observados o rito e as competências estabelecidos no Decreto no 70.235, de 6 de março de 1972″.

Como se vê, a alteração estabeleceu bases de cálculo próprias para a conversão do perdimento em multa em operações de importação e exportação, com a finalidade declarada (em sua exposição de motivos) de aumentar a clareza dos comandos normativos, uniformizando entendimento.

Diante disso, o artigo 23, §3º, do DL 1.455/76 se tornou o cerne de uma questão bastante controvertida no Carf. Discutia-se, pois, a possibilidade de aplicação da conversão da pena de perdimento em multa nas operações de exportação anteriores à vigência da MP nº 497/2010, tendo em vista que na exportação a mercadoria não possui “valor aduaneiro” (que apresenta um sentido técnico com componentes próprios na sua apuração), mas, sim, preço da transação, que deverá constar na nota fiscal da operação.

Ao enfrentar o tema, o Acórdão nº 3301-003.058 [4] (no mesmo sentido, Ac. 3301-005.189 [5]) assentou, à unanimidade, que a referida multa seria aplicável às exportações apenas a partir da vigência da nova redação, estabelecida pela MP nº 497/2010.

Nessa mesma linha, o Acórdão nº 3401-003.244 [6] (no mesmo sentido, v. Ac. 3401-003.776 [7], 3401-005.165 [8], 3302-006.547 [9], Ac. 3401-003.243 [10] e 3403-002.435 [11]), também unânime, chegou às mesmas conclusões. O relator do caso, o conselheiro Rosaldo Trevisan, analisou com profundidade a matéria e expôs em detalhes as imperfeições materiais e processuais incorridas pela MP nº 66/02 (convertida na Lei nº 10.637/02) ao inserir o parágrafo 3º ao artigo 23 do DL 1.455/76.

As imperfeições processuais demandaram a edição do artigo 73 da Lei nº 10.833/03 [12] e do artigo 41 da Lei nº 12.350/2010, para que fossem dirimidas certas dúvidas acerca do rito e da competência para apreciação dos processos referentes à matéria, por meio da remissão ao Decreto nº 70.235/72. A imperfeição material, por sua vez, foi sanada apenas com o artigo 41 da Lei no 12.350/2010, que estabeleceu a multa substitutiva em valor correspondente ao valor constante na nota fiscal de exportação (ou documento equivalente).

O voto do conselheiro relator ressalta, inclusive, que é incabível se falar em “valor aduaneiro” na exportação, uma vez que a dimensão econômica da operação, nesse caso, é representada pelo preço normal que o produto, ou seu similar, alcançaria, ao tempo da exportação, em uma venda em condições de livre concorrência no mercado internacional, observadas as normas expedidas pelo Poder Executivo, mediante ato da CAMEX”. Registra ainda que o próprio regulamento aduaneiro, ao classificar multas sobre o “valor aduaneiro”, as inclui no capítulo específico de “Multas na Importação” (artigos 702 a 717), não havendo multa baseada no “valor aduaneiro” nos capítulos referentes a “Multas na Exportação” (artigos 718 a 724) e a “Multas Comuns à Importação e à Exportação” (artigos 725 a 731). A par disso, conclui que aplicar a redação atual da multa a casos anteriores à vigência da MP nº 497/2010 seria uma retroação in pejus.

Em sentido contrário, o Acórdão nº 3101-001.269 [13] adotou as razões de decidir da DRJ, que exonerou a multa em razão da exportação nunca ter ocorrido de fato. Entretanto, em obter dictum, menciona a impropriedade de ser falar em “valor aduaneiro” para a exportação, mas afirma que a MP nº 497/2010 teria vindo a esclarecer a lei, razão pela qual essa nova redação seria aplicável a fatos anteriores à sua vigência.

Identificamos também casos em que a pena foi aplicada a exportações anteriores à legislação vigente atualmente, mas a questão da impossibilidade de retroação não fora arguida pelo recorrente e tampouco suscitada pelos conselheiros, não sendo discutida no processo, a exemplo do Acórdão nº 3402-003.093 [14].

Diferentemente das Câmaras Baixas, onde a posição é amplamente favorável ao posicionamento dos contribuintes, na 3ª Câmara Superior de Recursos Fiscais (3ª CSRF) a situação é diametralmente oposta, com prevalência do entendimento favorável à tese fazendária.

No Acórdão nº 9303-004.220 [15], por maioria de votos, o relator original considerou que a falta de previsão de uma base de cálculo específica para a multa na exportação teria se dado por razões meramente “didáticas”, e que o fato do dispositivo fazer referência ao “valor aduaneiro” não seria impeditivo da sua aplicação, pois seria possível uma interpretação sistemática no sentido de que a base da multa seria “o montante equivalente ao valor aduaneiro”, que não se confundiria com aquele primeiro. Nessa linha, aduz que o texto introdutório do acordo de valoração aduaneira (AVA-GATT) menciona que a base de valoração de mercadorias para fins aduaneiros deve ser tanto quanto possível o valor de transação das mercadorias a serem valoradas” e, portanto, essa grandeza seria válida tanto para as operações de importação quanto de exportação. Ao final, conclui que o “valor aduaneiro” de mercadorias exportadas seria o valor de transação, isto é, o preço efetivamente pago ou a pagar pelas mercadorias em uma venda para exportação para o país de importação, ajustado de acordo com as disposições do artigo 8″.

No Acórdão nº 9303-005.988 [16], há uma questão processual relevante, por se ter conhecido o Recurso Especial da Procuradoria da Fazenda, sobre a questão da multa, com base em paradigma que teve como ratio decidendi a ausência de dolo, apesar de ter afirmado que não caberia a multa antes da MP nº 497/2010. Não obstante, no mérito, o relator conseguiu sintetizar o raciocínio do acórdão mencionado acima de forma mais clara: legislador não estabeleceu o valor aduaneiro como a base de cálculo da multa de conversão, mas — cabe ressaltar — o valor a ele equivalente. Assim, ‘a mercadoria exportada, se considerada a origem, é a mesma importada, se considerado o destino. Da mesma forma, o contrato de compra e venda é uno, com dois pólos diversos'”. Com base nessas razões, afirma que, nos casos de exportação, dever-se-ia considerar o “valor aduaneiro” para fins de importação no país de destino. Esse mesmo entendimento também foi adotado nos Acórdãos 9303-008.722 [17], 9303-011.040 [18] e 9303-011.040 [19].

Com a devida vênia ao entendimento atualmente prevalecente na 3ª CSRF, alguns pontos a respeito dessa posição precisam ser problematizados e enfrentados, por se tratar de um tema complexo, que comporta diversos níveis de discussão. Senão vejamos:

1) Considerar que “o valor equivalente ao valor aduaneiro seria aquele adotado na importação pelo país de destino” seria um parâmetro extremamente problemático para países que não são signatários do GATT. Em suma: um produto exportado pelo valor X estaria sujeito a multas de valores distintos a depender da regra de apuração do “valor aduaneiro” no destino? Parece-me uma situação evidentemente iníqua. E mesmo em se tratando de países signatários, o problema persistiria, pois determinados gastos somente são incluídos no “valor aduaneiro” por determinação da legislação doméstica, a exemplo dos gastos com capatazia, para os quais há imprecisão na redação do AVA-GATT [20], como consta no erudito voto do cons. Leonardo Branco no Acórdão nº 3401-003.216 [21].

2) Aduzir que o “valor aduaneiro” corresponde ao “valor da transação” é uma afirmação, no mínimo, imprecisa, considerando que, pelo AVA-GATT, o “valor da transação” (que corresponde a um conjunto de custos listados no artigo 77 do RA/2009) “é apenas um dos métodos de apuração do valor aduaneiro”. Confunde-se, pois, a dimensão econômica da transação com um de seus métodos de apuração — mutatis mutandis seria o mesmo que aplicar um dos métodos de apuração de preços de transferência em uma transação que não seria sujeita a esse tipo de regime, sob o argumento de que aqueles métodos determinam o valor da transação para fins fiscais.

3) Mais ainda, tratar o “valor aduaneiro” como mera referência quantitativa, que alcançaria o valor da transação, pode induzir a intérprete em erro, pois aquele é apurado por uma métrica própria (regras de valoração) e, inclusive, alberga certas despesas incorridas no processo de importação (v. artigo 77 do RA/2009), que o distanciam do preço da transação, invalidando a propalada correspondência.

4) A própria exposição de motivos da MP nº 497/2010 afirma que a modificação no artigo 23, §3º, tem a finalidade de “aumentar a clareza dos comandos normativos, uniformizando entendimento”, assumindo a existência de dúvida objetiva quanto ao alcance da referida regra — o que pode ser constatado empiricamente pelos entendimentos diametralmente opostos que se consolidaram no Carf. Ora, reconhecido pela própria legislação a existência de dúvida e em se tratando de matéria de multa administrativa aduaneira — sancionatória, pois —, não seria o caso de aplicação da regra da interpretação mais favorável ao acusado [22], diante da ostensiva multiplicidade de entendimentos? Esse argumento ainda não foi enfrentado pelo Carf nos seus julgados, mas nos parece extremamente pertinente à discussão, que envolve um processo administrativo de conteúdo sancionatório.

Observada a relevância do tema e a divergência de entendimentos existentes, a apreciação dessas questões deve ser colocada em debate, em prol de um desenvolvimento das discussões sobre a matéria.

Ademais, é de se verificar que o último julgado da 3ª Turma da CSRF se deu com base na aplicação do voto de qualidade, por força da aplicação compulsória da Portaria ME nº 260/2020, que estabeleceu, em nosso entender, e a pretexto de regular a “proclamação do resultado de julgamento”, uma restrição ilegal ao alcance indireto do artigo 19-E da Lei nº 10.522/02 [23], afastando a sua aplicação a processos administrativos aduaneiros, a despeito do artigo 23, §3º, do DL nº 1.455/76 determinar a assunção integral do rito estabelecido no Decreto nº 70.235/72, inclusive com a alteração no tratamento dos empates nos julgamentos. Eventual questionamento judicial da legalidade dessa portaria poderia impactar diretamente o resultado dos casos que envolvem a aplicação da multa em análise aos casos anteriores à MP nº 497/2010.


[1] Não obstante, não se tratava de tipos infracionais novos, mas a maioria deles eram já existentes em legislação anterior

[2] O próprio “glossário” disponibilizado na página eletrônica da RFB [2] afirma que o valor aduaneiro é a base de cálculo do II e não se confunde com o valor faturado nem com o valor para fins de licenciamento das importações, embora muitas vezes eles possam ter o mesmo valor. O valor aduaneiro das mercadorias importadas significa o valor das mercadorias para fins de incidência de direitos aduaneiros ad valorem sobre mercadorias importadas.

[3] O artigo 19 da MP 497/2010 corresponde ao artigo 41 da Lei n. 12.350/2010.

[4] Rel. Cons. Semíramis de Oliveira, julgado em 23/08/2016.

[5] Rel. Cons. Semíramis de Oliveira, julgado em 26/09/2018

[6] Rel. Cons. Rosaldo Trevisan, julgado em 27/09/2016.

[7] Rel. Cons. Augusto Fiel, julgado em 22/05/2017.

[8] Rel. Cons. Thiago Guerra, julgado em 23/07/2018.

[9] Rel. Cons. Gilson Rosenburg Filho, julgado em 25/02/2019.

[10] Rel. Cons. Rosaldo Trevisan, julgado em 27/09/2016.

[11] Rel. Cons. Rolsado Trevisan, julgado em 24/09/2013.

[12] O artigo 73 corresponde ao artigo 57 da Medida Provisória n. 135/2003, que foi convertida na Lei n. 10.833/03.

[13] Rel. Cons. Corintho Machado, julgado em 23/11/2012.

[14] Rel. Cons. Jorge Freire, julgado em 21/06/2016.

[15] Rel. designado Cons. Júlio César Ramos, julgado em 10/08/2016.

[16] Rel. Cons. Charles Mayer, julgado em 29/11/2017.

[17] Rel. Cons. Andrada Canuto Natal, julgado em 12/06/2019.

[18] Rel. Cons. Andrada Canuto Natal, julgado em 08/12/2020.

[19] Rel. Cons. Andrada Canuto Natal, julgado em 08/12/2020.

[20] Sobre o tema, veja-se o artigo de Leonardo Branco e Diego Diniz, nesta coluna: https://www.conjur.com.br/2019-mar-27/direto-Carf-Carf-diverge-gastos-capatazia-pis-cofins-importacao

[21] Rel. Cons. Leonardo Branco, julgado em 23/08/2016.

[22] Não se está cogitando aqui da aplicação do artigo 112 do CTN, em razão das sanções aduaneiras possuírem seu regime de direito material próprio, que não se confunde com o tributário. Refere-se aqui à regra do favor rei, ínsita aos sistemas processuais sancionatórios, em decorrência das regras do in dubio pro reo e nullum poena sine previa lege, e que tem caráter de meta-regra de interpretação a estabelecer a priori a prevalência do sentido de regra sancionatória mais benéfico aos acusados, quando da sua aplicação concreta (por todos, v. (BETTIOL, Giuseppe. Instituciones de Derecho Penal y Procesal. BOSCH, Casa Editorial, S. A., Barcelona. 1977, p. 263).

[23] Sobre o alcance real desse dispositivo, já nos manifestamos em outra coluna aqui, em coautoria com Diego Diniz Riberio: https://www.conjur.com.br/2020-mai-27/direto-Carf-reflexoes-alcance-direto-indireto-artigo-19-lei-1052202.

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