Incidência de PIS e Cofins e desmutualização da Bolsa na jurisprudência do Carf

Por Diego Diniz Ribeiro

Na coluna de hoje iniciaremos a análise do tema aqui proposto a partir do recente acordão nº 9101-005.786 [1], veiculado pela Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF) que, por voto de desempate pró-contribuinte, afastou a incidência de Cofins sobre o aumento patrimonial percebido por alguns contribuintes, quando da alienação das ações recebidas em troca de títulos patrimoniais no processo de desmutualização da Bolsa de Valores de São Paulo.

Antes, todavia, de seguir adiante em tal análise, insta esclarecer que o referido acórdão foi veiculado pela Turma da 1ª Seção de julgamento da CSRF, órgão esse que, por sua vez, não detém competência originária para julgamento de exações como as contribuições para o PIS e para a Cofins [2]. Em verdade, tal caso foi apreciado pela CSRF da 1ª Seção por se tratar de processo reflexo [3], haja vista que os fatos ali julgados também tiveram impacto para fins de IRPJ e CSLL, o que também suscitou autuações para tais tributos e, por conseguinte, resultou na atração do julgamento das autuações de PIS/Cofins [4] pela 1ª Seção. Feito esse esclarecimento inicial, convém agora circunstanciar, ainda que de forma sucinta, o mérito do debate em questão.

Em um processo econômico seguido por diferentes bolsas de valores do mundo, a Bovespa e a BM&F, até então constituídas sob a forma de associações sem fins lucrativos, passaram por um processo de mudança societária que implicou o tratamento de tais pessoas jurídicas como sociedades anônimas com fins lucrativos. Para tanto, foi promovida uma cisão parcial da Associação Bovespa, sendo parte do patrimônio cindido incorporado pela novel Bovespa Serviços e Participações e parte pela Bovespa Holding. O mesmo fato se deu no âmbito da BM&F. Logo, os títulos patrimoniais dessas associações, e que pertenciam aos seus associados, foram compulsoriamente substituídos por ações, as quais seriam ulteriormente oferecidas ao mercado [5].

As instituições financeiras (corretoras), até então associadas, mantinham seus respectivos títulos patrimoniais registrados na conta de ativo permanente. Todavia, segundo o entendimento externado pela RFB em diferentes autuações, com a transformação de tais títulos em ações, as agora acionistas deveriam reclassificar tais bens recebidas como ativo realizável ou circulante.

De forma mais detalhada, segundo o entendimento da RFB, as corretoras associadas teriam devolvido suas cotas patrimoniais à Bovespa e à BM&F que, por sua vez, após a abertura do capital, teriam destinado ações às corretoras como contrapartida. Assim, a classificação contábil dessas agora ações recebidas pelas corretoras dependeria da intenção dessas empresas em vender ou não a curto prazo tais bens. Havendo tal intenção, tais ações deveriam ser classificadas como bens do ativo circulante. Do contrário, deveriam ser tratadas como bens do ativo permanente.

Não obstante, como parte do acordo da abertura de capital previa a oferta obrigatória ao mercado de parcela das ações recebidas, ficaria configurado que essa parcela de ações deveria ser registrada no ativo circulante e o valor auferido com tais vendas sujeitas à incidência de PIS e Cofins [6].

No sobredito acordão CSRF n. 9101-005.786, que é o objeto da presente coluna, a relatora do caso, vencida por voto de desempate pró contribuinte, nos termos do artigo 19-E da Lei n. 10.520/02, entendeu pela incidência das contribuições sobre tais operações, uma vez que, sob a sua perspectiva, não teria ocorrido mera troca de ativos patrimoniais por ações, mas sim a devolução de patrimônio social de atividade isenta (títulos não negociáveis e de manutenção até então obrigatória para que as corretoras pudessem operar) com o posterior recebimento de ações, sendo que esses novos ativos deveriam ser enquadrados como ativos circulantes, haja vista a intenção de aliená-los no curto prazo.

Nesse mesmo diapasão desse voto vencido é possível encontrar decisões da 3ª Seção de julgamento, a qual, repita-se, é investida de competência originária para analisar questões afetas ao PIS/Cofins. Destaca-se, aqui, os Acórdãos Carf n.s 3401-003.867 [7] e 3402-009.511 [8].

Por sua vez, o redator designado para o voto vencedor da Turma da 1ª Seção da CSRF externou que na citada operação os títulos patrimoniais até então detidos pelas associadas sempre foram corretamente classificados como ativos permanentes, até porque tais associadas eram obrigadas a possuí-los para que pudessem operar na bolsa de valores. Por sua vez, as transformações societárias pelas quais passaram a Bovespa e a BM&F, com a substituição dos títulos patrimoniais por ações, não seriam elementos suficientes para transmutar a natureza jurídico-contábil de tais ativos de permanente para circulante, até porque a substituição narrada se deu em “condições não usuais no mercado”. E assim concluiu o conselheiro:

“… não houve uma compra de ações para posterior venda com lucro, esta sim a atividade preponderante desenvolvida pelas empresas financeiras. O que ocorreu, desculpe a insistência, foi uma alienação de ativo recebido em troca de títulos patrimoniais integrantes do ativo permanente, com reflexos patrimoniais positivos, mas sem impacto no faturamento propriamente dito.”

Nesse mesmo sentido do voto vencedor da Turma da 1ª Seção da CSRF, também é possível encontrar alguns poucos julgados das turmas ordinárias da 3ª Seção do Carf, dentre os quais destaca-se o Acórdão Carf nº 3201-009.230 [9].

Existem ainda alguns julgados da 3ª Seção que afastam a incidência das contribuições, mas pelo fato de as ações recebidas pelas corretoras não terem sido vendidas logo após a transformação deste ativo, mas anos depois do recebimento de tais bens. Assim, na acepção dessas decisões, tais contribuintes mantiveram corretamente a escrituração dessas ações como ativos patrimoniais e não como ativo circulante, haja vista que não teria ficado comprovado a intenção de venda de tais bens no curto prazo. É o que se observa dos Acórdãos Carf nº 3301-005.323 [10][11] e 9303-009.828, esse último da Turma da 3ª Seção da CSRF [12].

Diferentemente do que foi decidido pela Turma da 1ª Seção da CSRF no acórdão aqui analisado, a Turma da 3ª da CSRF, por maioria de votos, tem entendido que a alienação dessas ações no curto prazo e por empresas corretoras configura alienação de ativo circulante e, por conseguinte, está sujeita à incidência de PIS/Cofins [13].

Há, portanto, uma notória divergência entre os posicionamentos externados pelas diferentes turmas do mesmo órgão do tribunal, a Câmara Superior de Recursos Fiscais.

Diante desta divergência de entendimento do órgão, compete ao presidente de uma das seções divergentes encaminhar proposta de resolução de uniformização, a qual será deliberada pelo pleno da CSRF (artigo 10 do Anexo II do Ricarf), mediante resolução com caráter vinculante aos demais julgadores, mas que, diferentemente das súmulas, depende de maioria absoluta (e não de 3/5 dos seus membros) para aprovação.

Até que essa eventual resolução seja tomada os contribuintes que estiverem sujeitos a tal discussão no Carf continuarão subordinados à fortuna de terem seus recursos julgados pela 1ª ou 3ª Turma da Câmara Superior de Recursos Fiscais.


[1] Que teve como relatora a conselheira Edeli Pereira Bessa e como Redator designado o conselheiro Luis Henrique Marotti Toselli.

[2] Tais contribuições são originalmente julgadas pela 3ª Seção do CARF, nos termos do artigo 4º, inciso I do Anexo II do Ricarf.

[3] As diferentes causas de vinculação de processos administrativos no bojo do Carf foi tema recentemente abordado por Thais de Laurentiis aqui: ConJur – Os processos vinculados e sua sistemática de julgamento pelo Carf.

[4] Nos termos do artigo 2º, inciso IV do Anexo II do Ricarf.

[5] O acordo de abertura de capital da Bovespa e da BM&F previa que dado percentual dos títulos patrimoniais transformados em ações seria obrigatoriamente oferecido ao mercado pelos seus até então associados.

[6] Fazendo um interessante histórico desses fatos, destacamos o voto vencido da lavra do conselheiro Leonardo Ogassawara de Araújo Branco, no âmbito do acórdão nº 3401-003.867.

[7] Por maioria de votos, com relatoria designada ao conselheiro Rosaldo Trevisan.

[8] Por maioria de votos, com relatoria do conselheiro Lázaro Antônio Souza Soares.

[9] Por voto de qualidade (posterior ao artigo 19-E da Lei n. 10.522/02), com relatoria do conselheiro Pedro Rinaldi de Oliveira Lima.

[10] Neste caso, por unanimidade de votos, a turma negou provimento ao recurso de ofício interposto, nos termos do voto da relatora, conselheira Semíramis de Oliveira Duro.

[11] Segundo consta do voto, a corretora recorrida teria permanecido com as ações por quatro anos após a abertura do capital da Bovespa e, ainda segundo o voto, não existiria prova documental — a ser produzida pelo Fisco — se as ações vendidas comporiam ou não aquela parcela destinada à oferta pública inicial (IPO) ou se de fato tratar-se-iam de ações que não estariam sujeitas ao compromisso de venda no IPO, o que reforçaria a impossibilidade de atestar se as ações alienadas que resultaram na autuação apresentariam natureza de ativo circulante ou permanente.

[12] Por maioria de votos, sob relatoria da conselheira Vanessa Marini Cecconello.

[13] A título de exemplo destaca-se o Acórdão nº 9303-009.618, de relatoria do conselheiro Luiz Eduardo de Oliveira Santos.

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