Primeiras impressões do novo regimento interno do Carf

Carlos Augusto Daniel Neto

Na nossa última coluna, havíamos sugerido que uma perspectiva multilateral e de diálogo seria essencial para colocar o Carf em bom caminho novamente. Eis que, de inopino, foi publicada a Portaria MF nº 1.634/2023, com o novo Regimento Interno do Carf (Ricarf), com relevantes alterações e impactando o funcionamento do contencioso administrativo tributário federal. Diante do novo quadro legislativo, cabe-nos traçar breves comentários, ora expositivos, ora críticos, às principais alterações introduzidas.

Uma das grandes modificações estruturais é a eliminação da distinção entre conselheiros titulares e suplentes, com a unificação das funções para todos, sem necessidade de lista tríplice para os suplentes mudarem de função. O artigo 80 manteve o prazo dos mandatos de dois anos, mas autoriza até três reconduções, totalizando oito anos de mandato, ressalvados os presidentes e vice-presidentes de turmas e câmaras, que poderão renovar até 12 anos de mandato. Deveriam, nesse ponto, ter ampliado o prazo dos mandatos, mantendo o tempo máximo, e eliminar definitivamente o endosso das representações para fins de recondução, cabendo esse juízo exclusivamente à CSC, trazendo maior estabilidade para os conselheiros.

O aumento dos mandatos, em nosso entender, favorece a permanência de conselheiros da Fazenda por um período mais longo, o que é salutar à estabilização de entendimentos dos colegiados. Por outro lado, essa ampliação, desacompanhada da implementação de melhores condições de trabalho e remuneração, não deve ter o mesmo efeito em relação aos representantes dos contribuintes. É preciso dar os meios para uma permanência tão longa!

Além disso, o prazo de dois mandatos a mais dado a presidentes e vices pode ter como efeito inviabilizar duas “gerações” (considerado o prazo de um mandato) de conselheiros de ascenderem à Câmara Superior ou à referida posição nas turmas, afetando a percepção de uma perspectiva de “carreira” dentro do órgão e a oxigenação dos colegiados superiores.

Ainda em relação aos conselheiros, o artigo 37 criou o Serviço de Assessoria Técnica de Câmaras, com competência para, entre outras coisas, subsidiar o conselheiro relator na elaboração de relatórios e votos, além de levantar informações processuais necessárias ao julgamento. Resta ver como a “assessoria” irá funcionar, tendo em vista que a proximidade do conselheiro com os autos do processo é essencial para uma análise técnica das (múltiplas) particularidades de cada caso.

Outra novidade é uma ampla reestruturação das turmas ordinárias e extraordinárias: estas possuíam oito conselheiros e aquelas, quatro, ambas paritárias. Com a alteração estabelecida no artigo 64, agora as duas terão seis conselheiros, sendo paritárias, voltando assim ao modelo existente antes da Portaria MF nº 343/2015.

As turmas extraordinárias deverão julgar preferencialmente processos que envolvam até dois mil salários-mínimos, considerando-se o valor na data do sorteio para as turmas. O fato de o dispositivo usar a locação “preferencialmente”, permite a priori concluir que ambas as turmas poderão julgar quaisquer processos, pois não se estabelece uma separação absoluta entre a competência delas (o histórico de aplicação das normas do Ricarf que usam a expressão “preferencialmente” evidencia que o termo é menos um determinante e mais um marco de discricionariedade decisória).

Com a unificação da estrutura dos dois tipos de turma, a eliminação da distinção entre conselheiros, e a coincidência de competências para julgar as matérias (separadas apenas pelo “preferencialmente”) podemos concluir que praticamente não há distinção entre turmas ordinárias e extraordinárias, não havendo mais qualquer razão do artigo 118, §12, I, vedar a utilização de acórdãos das turmas extraordinárias como paradigmas. Isso deveria ter sido modificado, nesse esforço de planificação das turmas do órgão.

O artigo 92 cria a hipótese de rito sumário e simplificado de julgamento, com sessões síncronas ou assíncronas. As sessões síncronas serão realizadas de forma presencial, não presencial (por videoconferência, como tem acontecido) ou híbrida (com conselheiros presenciais e não presenciais). Por outro lado, as sessões assíncronas funcionarão com o depósito prévio de relatório e votos em um sistema, para que os demais se manifestem a respeito, mas sujeita a regulamento do presidente do Carf.

Nas sessões assíncronas há uma relevante novidade: os relatórios e votos ficarão públicos desde o início da reunião de julgamento, e não apenas com a publicação do acórdão — mas os impactos dessa alteração dependerão da regulamentação dessa modalidade.

A respeito disso, o artigo 93 estabelece para as turmas ordinárias sessões síncronas preferencialmente para os processos com prioridade de tramitação, bem como aquelas com valor ou matérias definidas em ato do presidente do Carf. Para as turmas extraordinárias, a preferência é sessão síncrona não presencial, podendo ser adotado, para elas, as sessões assíncronas.

Essa previsão de sessões assíncronas para a turma extraordinária, cuja competência pode eventualmente abranger casos de turmas ordinárias (o “preferencialmente”), pode gerar situações em que casos de elevado valor ou complexidade sejam submetidas a esse rito, pensado principalmente para casos de menor valor ou complexidade.

A respeito disso, o artigo 104 parece mitigar esse risco, com a previsão de requerimento para exclusão de recurso da sessão assíncrona, nos casos de i) controvérsia jurídica relevante e disseminada, nos termos do artigo 16, §3, da Lei nº 13.988/2020 (“§ 3º Considera-se controvérsia jurídica relevante e disseminada a que trate de questões tributárias que ultrapassem os interesses subjetivos da causa”) ou ii) elevada complexidade de análise de provas.

Com a devida vênia, trata-se de expressões absolutamente vagas e indeterminadas, que poderão gerar uma controvérsia no Carf a seu respeito, especialmente pelo fato de a decisão a respeito desse requerimento recair sobre o presidente da turma, o que faz com a definição de termos vagos fique a cabo da subjetividade de um indivíduo.

Ora, é francamente admissível que um conselheiro considere determinado caso como complexo, sob a perspectiva probatória, e outro — com maior experiência no tema — considere simples, o que pode gerar entendimentos diferentes entre as turmas. Ou como definir quando uma questão tributária ultrapassa o interesse subjetivo da causa? Dificilmente passam pelo Carf situações jurídicas absolutamente irrepetíveis, e mesmo essas eventualmente envolvem questões recorrentes como decadência, responsabilidade e qualificação de multas, que permeiam o contencioso administrativo.

Além disso, o requerimento pode ser feito: i) pelo relator, antes de aberta a reunião; ii) qualquer outro conselheiro; ou iii) as partes, dentro do prazo da solicitação da sustentação oral; com a particularidade de que quando o relator fizer o requerimento, não caberia decisão do presidente da turma a respeito.

O §3º do artigo 104 traz uma regra estranha: estabelece que caso as partes solicitem o julgamento síncrono e seja deferido após o início da reunião, o requerimento “será convertido em pedido de vistas”. Ora, o pedido de vista será considerado feito por quem? Isso é relevante, pois na tomada de votos, o Ricarf (artigo 110, §2º) determina que o conselheiro que teve vista dos autos tenha prioridade na votação.

Ademais, continuando o julgamento na sessão síncrona, caso haja o pedido de vista de algum julgador, ela será imediatamente convertida em vista coletiva, nos termos do artigo 110, §11? Parece-nos que a melhor saída, aqui, seria substituir esse “requerimento convertido em vistas” por uma simples retirada justificada de pauta, pelo presidente.

Ainda sobre as turmas, o artigo 46, II prevê a criação de turmas e câmaras com alto grau de especialização, garantindo que haja pelo menos duas turmas de cada grau de especialização, para que seja possível a existência de divergências entre elas (§2º), o que é bem-vindo. Isso é o prenúncio da criação de turmas especiais para o julgamento de questões aduaneiras, que tradicionalmente fogem à expertise dos tributaristas.

Por outro lado, há um erro crasso na alínea “b” desse artigo, ao ser referir aos “tributos previstos nos incisos IX a XX do artigo 45”, quando o rol em questão contempla diversas cobranças de natureza não tributária — de modo que essa redação equivocada pode induzir algum incauto a uma adjudicação igualmente errada do regime jurídico adequado à exação.

O artigo 45, §2º, estende à 3ª Seção a competência para julgar PIS, Cofins  e IPI reflexos de IRPJ e CSLL, matéria que costumava ser competência absoluta da 1ª Seção. Parece haver aqui o risco de valorações distintas dos mesmos fatos, por turmas de Seções distintas, o que deveria ser suficiente para determina o sobrestamento do processo reflexo até que o principal fosse julgado definitivamente.

Houve uma ampliação das hipóteses de impedimento do julgador, no artigo 82, IV (“participou ou venha a participar como perito, testemunha, representante, ou se tais situações ocorrem quanto ao cônjuge, companheiro ou parente e afins até o terceiro grau” e V (“esteja litigando judicial ou administrativamente com o interessado ou respectivo cônjuge ou companheiro”), bem como no seu § 5º, relacionado aos lotes de processos repetitivos.

O artigo 90, §1º, esclarece que a indicação de processo para a pauta ocorrerá com a disponibilização pelo relator de ementa, relatório e voto completos do processo no sistema informatizado do Carf, o que serve para evitar situações com julgamentos interrompidos em razão da minuta estar incompleta. Além disso, o artigo 85, V, reduziu de 30 para 15 dias o prazo para os conselheiros formalizarem os acórdãos sob sua relatoria.

O artigo 105, §4º, por sua vez trouxe a interessante determinação de que o conselheiro que divergir ou acompanhar o relator pelas conclusões deverá apresentar suas razões de decidir ou acompanhar as razões já apresentadas por outro conselheiro do colegiado, dentro do período da reunião assíncrona, o que servirá para deixar mais claras a fundamentação do voto de cada membro da turma.

Dentro da dinâmica de julgamento, causou espécie o artigo 96, que reduziu o prazo de sustentação oral nos processos de embargos de declaração para dez minutos, prorrogáveis a critério do presidente, e limitou o teor da sustentação “aos pontos admitidos no Despacho de Admissibilidade do Presidente da Turma”.

Essa restrição não nos parece adequada por duas razões: a primeira pela possibilidade de ser suscitada questão de ordem pública no julgamento dos embargos; e a segunda pela existência de manifestações de turmas do próprio Carf que “a existência de um prévio despacho positivo de admissibilidade para este recurso [Embargos] não é impeditivo para que este colegiado reveja tal questão”, pois se trataria de um juízo de prelibação no despacho de admissibilidade (e.g. acórdãos nº 3402-005.265 e 3402-005.310).

A respeito da relevante interação entre o Carf e a jurisprudência dos Tribunais Superiores, é extremamente relevante o artigo 99, que mantém a necessidade de observância de decisões do STF e STJ sob a sistemática da repercussão geral ou de recursos repetitivos, respectivamente, desde que verificado o trânsito em julgado da decisão.

A novidade fica por conta do parágrafo único, que afasta a obrigatoriedade de observância de tema decidido pelo STJ, nos casos em que a matéria tenha sido objeto de recurso extraordinário para o STF, e tenha sua repercussão geral reconhecida, restando pendente de julgamento. Como fazer com os casos em que o recurso extraordinário foi interposto, mas não houve ainda a análise da repercussão geral? Aplica-se o repetitivo do STJ? Suspende-se o processo para aguardar a análise? A regra não traz uma resposta clara.

Sobre o sobrestamento, o artigo 100 estabelece que a afetação de tema submetido a julgamento em repercussão geral ou recursos repetitivos não permite o sobrestamento de julgamento no Carf, mas, por outro lado, esse sobrestamento será obrigatório quando já houver acórdão de mérito ainda não transitado em julgado, mas que declare a norma inconstitucional ou, no caso de matéria exclusivamente infraconstitucional, que declare ilegalidade da norma.

Essa medida é salutar, para evitar que mesmo com o advento da decisão meritório nos Tribunais Superiores, o Carf siga proferindo decisões em sentido contrário, que fatalmente serão revertidas nos tribunais, com honorários às expensas do Erário.

Também é salutar o artigo 101, que estabelece que não será reconhecido o recurso interposto contra decisão que adote como razão de decidir decisões do STF dotadas de eficácia normativa forma ou súmula do Carf, mas corretamente ressalva as situações em que o recurso envolva argumentação voltada ao distinguishing na aplicação do precedente vinculante ou súmula, por questões de fato ou de direito, ou matéria não abarcada por eles.

Enfim! Trata-se de uma mudança bastante ampla, e que demandará ainda muita análise por parte dos conselheiros e advogados, e aqui tentamos pontuar apenas aqueles pontos que nos pareceram mais relevantes, em uma primeira leitura, tanto em aspectos positivos como negativos do novo Ricarf.

O Carf, por outro lado, perdeu a oportunidade de trazer avanços bastante relevantes, como i) o estabelecimento de critérios objetivos e claros para a composição da câmara superior (o artigo 53 manteve o “preferencialmente” mais discricionário do Direito Público pátrio); ii) previsão de um mês de férias para os conselheiros (sem distribuição, ao menos); iii) estabelecimento de prazo máximo de permanência nas CSRF; iv) contabilização do tempo gasto com vistas, declarações de voto e afins; etc.

Na estruturação de um processo administrativo democrático, não se deve temer, mas incentivar, a colaboração de todos os envolvidos, pois o diálogo técnico ainda é o melhor ingrediente para uma legislação azeitada e funcional.

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