A instrução, o parecer e a decisão: dissonâncias sobre os efeitos do voto de qualidade

Por Carlos Augusto Daniel Neto

Fernando Brasil de Oliveira Pinto

Maria Carolina Maldonado Mendonça Kraljevic

Um novo capítulo dos efeitos do voto de qualidade?

Em um pano rápido, a edição do artigo 19-E da Lei nº 10.522/02, em abril de 2020, que criou o desempate pró-contribuinte (e sua posterior e polêmica “regulamentação” pela Portaria MF nº 260/20), passando pela MP nº 1.160/23 (não convertida em lei), e, finalmente, a edição da Lei nº 14.689/23 (que retomou o voto de qualidade e estabeleceu benefícios aos contribuintes derrotados por esse instrumento), marcou um período de intensos questionamentos jurídicos a respeito da interpretação e aplicação das regras relativas ao desempate dos julgamentos no Carf.

Em razão da redação de todos os dispositivos legais que trataram do tema, tem se tornado rotineiro que, a cada edição de nova norma infralegal buscando explicitar ou regulamentar os efeitos das decisões por empate no âmbito do Carf, novas críticas sejam postas. Essas controvérsias, por um lado, aumentaram a insegurança jurídica dos contribuintes e dos próprios aplicadores das regras, refletindo-se em um esperado aumento de litigiosidade; e por outro, deram combustível farto para as análises da “Direto do Carf”.

E o mais novo capítulo desses embates é a publicação da Instrução Normativa RFB nº 2.205/24, definindo a interpretação desse órgão sobre os artigos 25, §9º-A e 25-A do Decreto nº 70.235/72, com a redação dada pela Lei nº 14.689/23, fortemente – mas não totalmente – influenciada pelo Parecer SEI Nº 943/2024/MF (doravante, apenas parecer), exarado pela PGFN em abril, trazendo algumas restrições relevantes aos efeitos do voto de qualidade quando da liquidação do crédito sob discussão.

Antes de adentrar academicamente nas questões mais controvertidas desse ato normativo, convém destacar que, sob uma perspectiva formal, e em sua maior parte, o entendimento consolidado pela RFB traz segurança jurídica e estabilidade a diversas dúvidas interpretativas existentes, algumas delas já apontadas aqui. Nesse aspecto, a medida é bem-vinda.

O âmbito material de aplicação dos efeitos

Quanto aos pontos controversos, iniciamos com a adoção da ideia de que cada “matéria objeto do voto de qualidade” deveria ser considerada separadamente, para fins de exclusão de multas e cancelamento da representação fiscal para fins penais (RFFP) (artigo 1º, §1º), enquanto aduz que o parcelamento do artigo 25-A do Decreto nº 70.235/72 se aplica apenas à “parcela controvertida, resolvida pelo voto de qualidade” (artigo 1º, §2º).

Concordamos com a separação por “capítulo da decisão”, mas há alguma distinção entre “matéria objeto do voto de qualidade” e “parcela controvertida”, que justifique a separação em dois parágrafos distintos? Em outras palavras, haveria algum tema que, sendo resolvido pelo voto de qualidade, faria jus à exclusão das multas e da RFFP, mas não ao parcelamento, e vice-versa? Não parece ser o caso, já que, pela lei, a condição para a aplicação de ambos os dispositivos é exatamente a mesma. Talvez a distinção se justifique somente por questões de estilo redacional, e não por qualquer aspecto legal.

Em relação ao alcance da exclusão das penalidades e da RFFP, a IN RFB nº 2205/2024 trouxe uma novidade em relação ao parecer mencionado retro. O artigo 2º replicou a restrição da sua aplicação às multas de ofício básicas (artigo 44, I, da Lei nº 9.430/96), bem como à qualificação ou agravamento da multa (artigo 44, §1, VI e VII e §2º, caso elas tenham sido objeto de análise separada). Além disso, manteve-se a separação entre a decisão sobre a multa qualificada simples (inciso VI, 100%) e majorada (inciso VII, 150%), nas hipóteses em que o voto de qualidade se dê apenas quanto a “reincidência do sujeito passivo”, preservando-se a qualificadora simples e eventual RFFP que com ela se relacione.

Por outro lado, o artigo 2º, II, destoou parcialmente do parecer em seu item III.1.2.2.2, ao autorizar a exclusão das multas isoladas previstas no artigo 44, II, da Lei nº 9.430/96, desde que objeto de decisão específica por voto de qualidade. A manifestação da PGFN previa a exclusão das multas pelo não recolhimento de estimativas de IRPJ e CSLL apenas quando houvesse empate na discussão quanto à obrigação de recolher as estimativas (ou seja, na hipótese de aplicação de multa isolada por falta de recolhimento de estimativas de forma concomitante com a multa de ofício), mas não quando a multa isolada fosse lançada sem a exigência de IRPJ ou CSLL, na linha de sua conclusão no item III.1.2.2.1 do parecer.

Assim, o entendimento da RFB ampliou o alcance da exclusão, e passou a contemplar, por exemplo, as situações nas quais se discute a aplicação da multa isolada pela simples falta de recolhimento de estimava já declarada.

O âmbito de não-aplicação dos efeitos

O artigo 3º da IN nº 2205/24 trouxe um rol de matérias que não estariam sujeitas à aplicação da exclusão da multa e da RFFP, quais sejam: 1) multas isoladas, à exceção da hipótese descrita no artigo 2º, caput, inciso II, isto é, relativamente à multa isolada prevista no artigo 44, II, da Lei nº 9.430/96, de forma alinhada com o já citado item III.1.2.2.1 do parecer, exceto pelas peculiaridades tratadas no parágrafo anterior; 2) multas moratórias; 3) multas aduaneiras; 4) responsabilidade tributária; 5) existência de direito creditório do contribuinte; e 6) decadência.

A restrição às demais multas isoladas em geral pode atrair um juízo crítico a respeito da coerência dessa disposição.

A restrição existente no parecer se baseia no argumento de que aplicar o artigo 25, §9º-A às multas isoladas esvaziaria completamente o crédito discutido, sendo, na prática, uma manutenção dos efeitos do artigo 19-E da Lei nº 10.522/02, ressalvando apenas as multas isoladas que guardassem relação de prejudicialidade com a discussão dos tributos e aquelas relativas às estimativas de IRPJ e CSLL quando a controvérsia envolvesse o próprio dever de recolhê-las. Portanto, pode-se, eventualmente, haver críticas quanto à referida interpretação, mas a IN nº 2205/24 em nada inovou, em prejuízo aos contribuintes, em relação ao parecer da PGFN quanto a essas restrições, e, quando o fez, possibilitou a aplicação do § 9º-A para a multa isolada por falta de recolhimento (sem concomitância com a multa de ofício), em benefício dos contribuintes.

Por outro lado, com a superação parcial dessa restrição quanto à multa isolada “pura” trazida pela IN, ao permitir a inclusão das multas isoladas do artigo 44, II, da Lei nº 9.430/96, aplicadas de forma não concomitante com a multa de ofício, abre-se um flanco, pela dificuldade de justificar o tratamento tributário adjudicado a elas ser distinto do dado às demais penalidades semelhantes, dando força às interpretações no sentido de que o artigo 25, §9-A, do Decreto nº 70.235/72 se aplicaria às multas isoladas em geral, por força de um dever de coerência que decorre da igualdade na aplicação da lei.

Insta ressaltar, sobre isso, que a restrição às demais multas isoladas em geral chegou a ser debatida no curso do processo legislativo, já que o Congresso Nacional rejeitou as emendas propostas pelo senador Otto Alencar, relator da Lei nº 14.689/2023, no parecer por ele preparado à Comissão de Assuntos Econômicos, para deixar claro que só haveria exclusão das multas quando fossem “acessórias do débito tributário principal”.

Especificamente quanto a possibilidade de aplicação do artigo 25, §9-A, do Decreto nº 70.235/72 às multas isoladas por falta de recolhimento de estimativas, de forma concomitante com a multa de ofício, no Acórdão nº 9101-006.786, a 1ª CSRF, por maioria de votos, concluiu não ser possível a concomitância entre multas isoladas pelo não recolhimento de estimativas de IRPJ/CSLL e multas de ofício, negando-se provimento ao REsp da PFN. Interessante notar, contudo, que os conselheiros vencidos consignaram que, mesmo que se desse provimento ao REsp, deveriam “[Deixar], porém, de restabelecer a sua exigibilidade no caso concreto, com base no artigo 15 da Lei nº 14.689/2023”, reconhecendo a sua aplicabilidade às multas isoladas concomitante com a multa ofício. Nesse ponto, 1ª CSRF, RFB e PGFN mostram-se alinhados quanto ao alcance do art. 25, §9-A, do Decreto nº 70.235/72 às multas isoladas por falta de recolhimento de estimativas lançadas em concomitância com a multa de ofício.

Quanto às multas aduaneiras, a questão também enseja controvérsia. Por um lado, ao permitir da aplicação do artigo 25, §9-A, do Decreto 70.235/72 para certas multas isoladas, a IN acaba mitigando o argumento da PGFN quanto a necessidade de decisão, por voto de qualidade, quanto ao principal da autuação para que as penalidades possam ser alcançadas por tal exclusão. Por outro, há corrente interpretativa no sentido de que as multas aduaneiras seguem o procedimento do Decreto nº 70.235/72 não diretamente, mas por remissão legal [1], o que implicaria uma adoção irrestrita do regime processual lá estabelecido (o que seria reforçado, ainda, pela posição contida no Parecer de que o artigo 25, §9-A, do Decreto nº 70.235/72 seria uma regra de caráter processual). Para essa linha, não seria logicamente possível se alterar o conteúdo normativo da regra objeto de remissão, interpretando-a a partir de uma particularidade do âmbito legal que incorporou esse regime por empréstimo, salvo previsão legal que traga essa ressalva (inexistente, no presente caso).

Há um outro aspecto relevante aqui: ainda que se acate o argumento do Parecer para as multas isoladas, desse argumento não é possível derivar a inaplicabilidade do artigo 1º, II, da IN, que trata do cancelamento da RFFP – trata-se de efeito paralelo do voto de qualidade. É possível, por exemplo, que a lavratura de uma multa aduaneira tenha gerado uma RFFP, devendo esta ser cancelada, no caso de empate (ainda que o cancelamento da representação não condicione ou limite de forma alguma o exercício da ação penal pelo Ministério Público).

No que se refere às multas moratórias, a IN repete a restrição contida no item 221 do Parecer com relação à aplicação do artigo 25, §9-A, do Decreto nº 70.235/72 àquelas exigidas em caso de declaração de compensação não homologada. A questão que suscitará discussão é que, por força do §11º do artigo 74 da Lei nº 9.430/96, o litígio envolvendo processos de compensação segue o rito do Decreto nº 70.235/72, o que certamente levará a questionamentos acerca das restrições trazidas tanto pela RFB, quanto pela PGFN. De todo modo, não houve qualquer inovação na IN a esse respeito.

Por fim, a questão da decadência também nos parece controversa, tendo em vista se tratar de uma questão preliminar, mas, ainda assim, de mérito. O fato de a decadência dizer respeito à tempestividade do exercício da competência administrativa parece não afetar a sua natureza de questão de mérito do caso, o que certamente redundará em questionamentos quanto ao alcance da IN, alinhada com a posição da PGFN.

O alcance temporal e o caso da desistência dos recursos

Em relação ao artigo 4º da IN, não parece haver qualquer ilegalidade na restrição do alcance da exclusão das multas aos casos que foram definitivamente julgados, por voto de qualidade, anteriormente à vigência da MP nº 1.160/23, em 12/1/2023. Para esses casos, a exclusão da multa se aplicará apenas na hipótese de análise de mérito pendente no âmbito do TRF competente, na forma do artigo 15 da Lei 14.689/23, inclusive, por meio do Pedido de Revisão de Dívida Inscrita (PRDI). Aqui, na hipótese de a análise de mérito estar pendente de julgamento no âmbito do TRF, mas a multa correlata seguir no Carf, caberá a ele a análise da aplicação do artigo 25, §9-A, desde que comprovado o atendimento ao requisito do artigo 15. Nesse sentido decidiu a 1ª CSRF no acórdão nº 9101-006.860.

Ainda no que se refere ao artigo 4º da IN, o seu parágrafo único trata, corretamente, do efeito substitutivo do julgamento de mérito do recurso especial, sobre o acórdão proferido por voto de qualidade na turma ordinária. Diante de tal dispositivo, por exemplo, não opera o efeito substitutivo na hipótese de não conhecimento do recurso especial do contribuinte, permanecendo incólume eventual decisão por voto de qualidade proferida na instância ordinária.

Entretanto, vale observar que a IN nº 2205/24 não tratou especificamente da ocorrência ou não desse efeito substitutivo em relação ao despacho ou acórdão que reconhece a desistência de recurso especial ou embargos de declaração contra decisão resolvida por voto de qualidade [2]. A respeito disso, entretanto, o artigo 6º, §3º, versa sobre o marco temporal para adesão ao parcelamento do artigo 25-A do Decreto nº 70.235/72 (90 dias contados da desistência), nos casos em que o contribuinte desiste de recursos ou embargos apresentados antes da MP 1.160/23 ou da Lei nº 14.689/23, no curso da vigência desses diplomas normativos.

Por um lado, essa posição coincide com a defendida no parecer da PGFN (itens 90 e 91), de que a desistência do REsp não impediria a fruição do parcelamento, o que indica que a RFB também deverá adotar o mesmo racional para fins da exclusão das multas, no caso de desistência, tendo em vista que os artigos 25, §9-A e 25-A possuem a mesma condição de aplicação. Por outro lado, ao estabelecer expressamente um recorte temporal (REsps e EDs apresentados antes da vigência dos diplomas legais), poder-se-ia interpretar essa norma como uma “regra de transição” para os contribuintes que foram pegos de surpresa pelo novo regime, após a interposição de seus recursos. O que, por sua vez, poderia levar à conclusão de que, fora desse recorte temporal, a desistência impediria a fruição dos benefícios do voto de qualidade. Trata-se de uma questão interpretativa relevante e que deveria ser esclarecida pela RFB com urgência.

Aos contribuintes que se interessarem pela desistência de recurso especial, a despeito da dúvida supra, deve-se observar que a Portaria Carf nº 587/2024 estabeleceu que ela “deverá ser manifestada nos autos do processo, por meio de petição ou a termo, antes do dia e horário agendados para início da reunião de julgamento, independentemente da sessão em que o processo tenha sido pautado”.

Conclusão

Diante de todos esses apontamentos, não nos restam dúvidas de que a Instrução Normativa, apesar de elucidar a interpretação da Receita Federal sobre a aplicação da Lei nº 14.689/23, é apenas mais uma peça do “litígio a conta-gotas” que se arrasta desde 2020, a respeito do regime jurídico dos empates no Carf, e, graças à intrincada redação de todos os dispositivos legais em questão, dá reforçado fôlego à “fantástica fábrica de metacontencioso”, que já referimos em outros textos dessa coluna.


[1] A linha é defendida por um dos autores aqui: Reflexões do alcance direto e indireto da lei 10.522 (conjur.com.br).

[2] O tema foi objeto de dois artigos nessa coluna, em sentidos distintos: Recursos especiais contra decisões por voto de qualidade: é hora de jogar a toalha? (conjur.com.br) e Pagamento de tributos e o direito de desistir conforme a Lei 14.689/2023 (conjur.com.br)

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