A consolidação de plataformas digitais de intermediação de vendas internacionais, comumente chamadas de marketplaces, remodelou a estrutura logística, contratual e tributária das importações de pequeno valor.
A popularidade desse canal de comercialização fez surgir a questão sobre se as comissões de intermediação cobradas por tais empresas, quando exigidas do comprador residente no Brasil, integram ou não o valor aduaneiro.
A resposta a essa indagação é particularmente sensível no âmbito do Programa Remessa Conforme, que aplica alíquotas especiais em conjunto com o Regime de Tributação Simplificada das Remessas Postais Internacionais (RTS), sem, no entanto, impactar a dimensão econômica sobre a qual incide.
Programa Remessa Conforme
Visando criar alternativas econômicas ao combate ao uso da isenção de minimis em operações comerciais de importação por pessoas físicas, o governo criou o Programa Remessa Conforme para facilitar o uso do Regime de Tributação Simplificada das Remessas Postais Internacionais (RTS) que confere isenção para o IPI-Importação, PIS-Importação e Cofins-Importação, remanescendo apenas o Imposto de Importação com alíquota especial (Decreto-Lei nº 1.804/80). No âmbito estadual, a questão foi regulamentada pelos Convênios ICMS nº 60/18 e 81/23, com alíquota especial de 17%.
Sugere-se a leitura prévia de três artigos desta coluna: “Programa Remessa Conforme: tratamento tributário e controle aduaneiro”, de minha autoria, publicado em 25/7/2023, (aqui) “Faz sentido tributar compras pequenas de plataformas internacionais?”, de Fernanda Kotzias, publicado em 31/5/2022 (aqui), e “Cross-border e-commerce, descaminho digital e algumas reflexões”, de Fernando Pieri Leonardo, publicado em 25/4/2023 (aqui), e o artigo “Ausência de responsabilidade legal na remessa e desigualdade tributária”, de Thális Andrade, publicado em 20/7/2023 (aqui).
Apesar do ajuste na alíquota e imposição de obrigações acessórias adicionais, as demais regras de quantificação são as mesmas do regime comum de importação.
Ambos os tributos aduaneiros incidentes na operação de importação adotam o valor aduaneiro originado no AVA-Gatt como o componente principal de sua base de cálculo. O Imposto de Importação federal, previsto no art. 153, inciso I da CF/88 e nos artigos 19 a 22 do Código Tributário Nacional e instituído pelo Decreto-Lei nº37/66; e o Imposto sobre a Circulação de Mercadorias (ICMS) estadual, previsto no artigo 155, inciso II e §2º da CF/88 e na Lei Complementar nº 87/96 e instituído pelas leis estaduais em linha com essa mencionada regulamentação.
Valoração aduaneira: marco conceitual
O Gatt estabelece em seu artigo 7º que “o valor para fins alfandegários das mercadorias importadas deverá ser estabelecido sobre o valor real da mercadoria importada à qual se aplica o direito ou de uma mercadoria similar, e não sobre o valor do produto de origem nacional ou sobre valores arbitrários ou fictícios”.
Ao conceituar “valor real”, a mencionada norma ponderou que ele deveria ser “o preço ao qual, em tempo e lugar determinados pela legislação do país importador, as mercadorias importadas ou as mercadorias similares são vendidas ou oferecidas à venda por ocasião das operações comerciais normais efetuadas nas condições de plena concorrência”.
Essas regras foram clarificadas no Acordo de Valoração Aduaneira firmado na Rodada Uruguai de negociações do Gatt em 1994, internalizado pelo Decreto Legislativo nº 30/94 e Executivo nº 1.355/94, que introduz o assunto fixando que a base primeira para a valoração aduaneira, em conformidade com este Acordo, é o valor de transação, tal como definido no Artigo 1.
O artigo 1º do AVA-Gatt pontua que “o valor aduaneiro de mercadorias importadas será o valor de transação, isto é, o preço efetivamente pago ou a pagar pelas mercadorias em uma venda para exportação para o país de importação, ajustado de acordo com as disposições do Artigo 8”.
A Nota Explicativa deste artigo esclarece que “o preço efetivamente pago ou a pagar é o pagamento total efetuado ou a ser efetuado pelo comprador ao vendedor ou em benefício deste pelas mercadorias importadas”.
O artigo 8º, item 1, alínea “a”, subitem “i” do AVA-Gatt estabelece que “na determinação do valor aduaneiro (…) deverão ser acrescentados ao preço efetivamente pago ou a pagar pelas mercadorias importadas, as comissões e corretagens, excetuadas as comissões de compra, na medida em que sejam suportados pelo comprador, mas não estejam incluídos no preço efetivamente pago ou a pagar pelas mercadorias”.
A Nota Explicativa a esse artigo esclarece que: “entende-se por ‘comissões de compra’ os pagamentos por um importador ao seu agente pelos serviços de representá-lo no exterior na compra das mercadorias objeto de valoração”.
Instrução Normativa 2.090
Com a edição da Instrução Normativa RFB nº 2.090/22, sobre a qual escrevemos no artigo “O Carf e 12 pontos sobre a nova regra de valoração”, de 19/7/2022 (aqui) a Receita Federal reforçou, em seu artigo 4º, que a base para o valor aduaneiro das mercadorias importadas é o “valor de transação”, correspondente ao “preço efetivamente pago ou a pagar pelas mercadorias importadas objeto de uma venda para exportação para o território nacional”.
O artigo 5º, por sua vez, determina que “o preço efetivamente pago ou a pagar compreende todos os pagamentos efetuados ou a efetuar, direta ou indiretamente, como condição de venda das mercadorias objeto de valoração, pelo comprador ao vendedor, ou pelo comprador a um terceiro, para satisfazer uma obrigação do vendedor”.
O recorte deve considerar, ainda, a redação artigo 6º, segundo o qual, na determinação do valor aduaneiro com base no método do valor de transação deverão ser acrescentados ao preço efetivamente pago ou a pagar pela mercadoria importada “as comissões e corretagens, excetuadas as comissões de compra, desde que sejam de responsabilidade do comprador e não estejam incluídos no preço efetivamente pago ou a pagar pela mercadoria”, o que fecha o mosaico normativo apto a construir as regras sobre inclusão ou não das comissões.
Organização Mundial das Aduanas
Diante de potenciais dúvidas relacionadas às comissões e corretagens e sua inclusão no valor aduaneiro, a Organização Mundial das Aduanas editou a Nota Explicativa 2.1 sobre o tema, concluindo que “ao determinar o valor de transação das mercadorias importadas, deverão ser nele incluídas as comissões e gastos de corretagem que corram a cargo do comprador, salvo as comissões de compra” e que “comissões ou as corretagens incorridas pelo vendedor, porém não cobradas do comprador, não poderão ser adicionadas ao preço efetivamente pago ou a pagar”.
Comissões de intermediação: conceito e tipologia
Nos modelos de negócios baseados em marketplace, forma-se tríplice relação obrigacional envolvendo vendedor estrangeiro, plataforma digital e comprador brasileiro.
Em termos gerais, o vendedor contrata o marketplace para promover o anúncio do bem, gerenciar o pagamento e organizar a logística; em contraprestação, paga ou permite que se cobre uma comissão pela intermediação.
Tal comissão pode ser repassada ao comprador em duas modalidades distintas, ainda que juridicamente equivalentes: embutida no preço total do produto ou destacada em cobrança separada.
Quando embutida, o consumidor visualiza valor único e indiviso; quando destacada, em regra recebe duas faturas, uma de venda internacional e outra de intermediação.
Comissão deve integrar o valor aduaneiro?
Para que determinada rubrica possa ser excluída do valor aduaneiro e consequentemente da base de cálculo dos tributos aduaneiros brasileiros, é necessário que ela concomitantemente (a) não esteja abarcada no “valor de transação” previsto no artigo 1º do AVA-Gatt; e (b) não esteja prevista como uma rubrica de adição obrigatória listada no artigo 8º do AVA-Gatt.
Em relação ao primeiro requisito, o “valor da transação” se trata de conceito jurídico que não se limita ao “valor da mercadoria”, representando a totalidade do valor pago pelo adquirente da mercadoria como contrapartida à concretização do negócio.
Por isso, a exclusão de um pagamento efetivado pelo adquirente deste “valor de transação” exige a segregação da atividade e dos valores da operação de venda em todas as etapas do negócio jurídico, com informação clara ao consumidor da existência dessa atividade adicional.
Similar discussão a respeito da exclusão de parcelas destinadas a terceiros envolvidos na operação cobradas englobadamente com o preço das mercadorias já foi travada quanto aos tributos de consumo internos brasileiros, incidentes sobre o preço ou receita, restando pacificado que tais rubricas compõem a base de cálculo desses tributos por integrarem o conceito de “valor da operação”, equivalente ao “valor da transação” adotado pelo AVA-Gatt (v.g. Tema 1.024 da Repercussão Geral do STF [1]).
Nada obstante, ainda que ocorresse a alteração da metodologia do anúncio no Marketplace, avaliamos que a exclusão ainda seria inviabilizada sob o viés do artigo 8º, item 1, alínea “a”, subitem “i” do AVA-Gatt, já que explicita e nominalmente exige a adição das comissões, inclusive aquelas relativas à intermediação do negócio, caso sejam suportadas pelo comprador por fora do preço efetivamente pago ou a pagar pelas mercadorias.
A cobrança em apartado ou até mesmo em momentos distintos da importação não é óbice à imposição da inclusão das adições obrigatórias do artigo 8º do AVA-Gatt ao valor aduaneiro a ser considerado. Exemplo disso são os royalties quando figuram como condição de venda: mesmo quando cobrados em apartado do valor exigido pelas mercadorias, são constantes as autuações pela Receita demandando a revisão do valor aduaneiro.
Portanto, não nos parece juridicamente viável a tentativa de exclusão da taxa de intermediação exigida em apartado do adquirente da mercadoria estrangeiro do cômputo do “valor aduaneiro” da operação.
A conclusão acima não é alterada pelo fato de que não há menção nominal à “taxa de intermediação” na base de cálculo dos tributos aduaneiros incidentes no Remessa Conforme, dado que a inclusão se dá pelo efetivo alcance do conceito de “valor aduaneiro”, componente destas bases.
Conclusão
Assim, as comissões de intermediação exigidas pelo marketplace, quando suportadas pelo comprador, devem integrar o valor aduaneiro. O fundamento reside em duas premissas convergentes. Em primeiro lugar, esses pagamentos satisfazem obrigação do vendedor e beneficiam-no diretamente, o que os inclui no conceito de valor de transação definido pelo artigo 1º do AVA-Gatt. Em segundo lugar, ainda que se pretendesse afastar essa caracterização, a redação expressa do artigo 8º impõe a adição de comissões suportadas pelo comprador, excetuando unicamente as comissões de compra, que não se confundem com a remuneração de marketplace.
A disciplina interna, capitaneada pela Instrução Normativa RFB 2.090/2022, reproduz fielmente o tratado internacional e, ao fazê-lo, veda soluções interpretativas que busquem afastar a comissão da base de cálculo. A introdução do Programa Remessa Conforme não afeta esse resultado, pois o regime simplificado atua apenas sobre alíquotas e obrigações acessórias, preservando integralmente a regra de valoração.
Na realidade, apenas com o deslocamento integral da comissão para o vendedor estrangeiro e comprovada ausência de repasse ao preço, seria possível o expurgo das comissões de intermediação da base de cálculo. Trata-se de corolário do sistema de valoração aduaneira, uma das pedras angulares do sistema multilateral de comércio que busca evitar distorções concorrenciais e assegurar isonomia entre operações internas e externas.
[1] É constitucional a inclusão dos valores retidos pelas administradoras de cartões na base de cálculo das contribuições ao PIS e da Cofins devidas por empresa que recebe pagamentos por meio de cartões de crédito e débito.
- Leonardo Brancoé professor da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM), pós-doutorando, doutor, mestre e especialista pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), com estágio doutoral pela Westfälische Wilhelms-Universität (WWU), presidente do Instituto de Pesquisas em Direito Aduaneiro (IPDA) e da Comissão de Estudos em Direito Aduaneiro do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP), membro do Conselho Deliberativo da Associação Paulista de Estudos Tributários (APET), ex-conselheiro titular e vice-presidente de Turma no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) e sócio do Daniel & Diniz Advocacia Tributária e Aduaneira (DDTax).