Portos e inovação: contexto, regulação e desafios para o Brasil

O debate sobre políticas públicas e inovação no setor portuário brasileiro exige uma análise que considere, de um lado, a formação histórica e institucional dos portos e, de outro, os instrumentos jurídicos e econômicos que hoje se colocam à disposição para modernizar sua atuação. Os portos são pontos de encontro entre economia, cultura e tecnologia, e continuam a exercer um papel estratégico na inserção do Brasil no comércio internacional.

Este texto foi preparado em duas partes. Na primeira, apresentada na coluna de hoje, abordamos a trajetória histórica e regulatória dos portos como uma estratégia de compreensão do modelo brasileiro contemporâneo, marcado pelas reformas legislativas dos anos 1990 e 2010. Tratamos, ainda, da emergência de um ecossistema de inovação portuária e das primeiras políticas setoriais, como o Reporto e o PAC, que abrem espaço para discutir a relação entre incentivo estatal e desenvolvimento tecnológico.

A segunda parte, que será publicada mais adiante nesta coluna, volta-se ao exame dos instrumentos concretos de fomento à inovação: incentivos tributários, linhas de financiamento, compras públicas de inovação, cláusulas contratuais de P&D e offset, além de iniciativas recentes de autoridades portuárias que buscaram implementar programas de transformação tecnológica.

A divisão proposta tem por objetivo dar clareza à exposição e oferecer uma visão integrada, mas organizada, sobre os desafios e caminhos possíveis para o setor.

Centralidade histórica dos portos para a economia dos países

É possível afirmar que os registros mais antigos de atividades portuárias remontam a civilizações como a egípcia e a mesopotâmica (c. 3.000–2.500 a.C.), mas foi com os fenícios, a partir do 1º milênio a.C., que se estruturou uma ampla rede de portos comerciais no mar Mediterrâneo. Ao longo da história, a evolução econômica e cultural das nações esteve, em não poucos momentos, intimamente ligada à disseminação dos portos, que modernamente são conceituados como instalações fixas dotadas de infraestrutura e superestrutura adequadas à movimentação de cargas e passageiros entre os modais aquaviário e terrestre, expressas por ativos geográficos, físicos, tecnológicos e corporativos (Unctad, 1985).

Portos marítimos são tão importantes para uma nação que, segundo dados da ONU, dos 32 países classificados como LLDCs (“Landlocked Developing Countries” – países em desenvolvimento trancados por terra), a sua quase totalidade está entre os de menores PIBs, sendo que, neste grupo, incluem-se ainda 9 dos 12 países com os menores IDH do mundo.

A maioria dos LLDCs é exportadora de commodities, de acordo com estimativas da UNCTAD baseadas nas estatísticas de balanço de pagamentos do FMI, os LLDCs, em média, gastaram quase o dobro de suas receitas de exportação no pagamento de serviços de transporte e seguros em comparação com a média dos países em desenvolvimento, e três vezes mais do que a média das economias desenvolvidas (UNDP, 2025).

Papel histórico dos portos no Brasil

No Brasil, os portos são historicamente responsáveis pelo intercâmbio comercial e cultural, tradição herdada de Portugal desde o Decreto de Abertura dos Portos às Nações Amigas em 1808. A OCDE indica que cerca de 90% das trocas comerciais globais são feitas pela via marítima e, no Brasil, o porto de Santos sozinho é responsável por 29% da corrente de comércio nacional (MDIC, 2025).

Para atender esse enorme fluxo, cada vez mais inovações tecnológicas são empregadas na infraestrutura e superestrutura portuária para elevar os níveis de eficiência, segurança e produtividade, somado essa complexidade às crescentes constrições regulatórias laborais e de sustentabilidade (em especial descarbonização) impostas pelos mercados internacionais a serem atendidas por soluções tecnológicas inovadoras.

Desafios globais e megatendências

Não bastassem os desafios nacionais, as oscilações e incertezas do cenário econômico global, caracterizados por megatendências, como mudanças demográficas, urbanização, migração, escassez de recursos naturais, energéticos, alterações climáticas, inovações e avanços tecnológicos, deslocam riqueza para mercados emergentes, alterando as rotas comerciais com implicações econômicas, sociais e ambientais forçando o setor marítimo-portuário a buscar competitividade nos processos e na oferta de rotas eficientes, econômicas e sustentáveis como vantagem competitiva (Porter, 1989), sendo a inovação tecnológica a ferramenta por meio da qual essas metas podem ser atingidas.

Da centralidade estatal à competição privada

O desenvolvimento tecnológico portuário sofreu transformações radicais nos últimos dois séculos. Durante o século 19 e a primeira metade do século 20, em muitos momentos os portos podiam ser identificados majoritariamente como instrumentos do Estado ou dos poderes coloniais, sendo o acesso e a saída portuária concebidos como mecanismos de controle dos mercados.

A concorrência entre portos era mínima e os custos portuários eram relativamente insignificantes em comparação com o alto custo do transporte marítimo e terrestre, cenário que colaborou para o pouco incentivo na melhora da eficiência portuária (World Bank, 2007). Esse cenário começou a se alterar quando grandes grupos econômicos dos setores do agronegócio, da mineração e da indústria passaram a disputar mercados em escala global, tornando a eficiência logística um diferencial competitivo. Nesse contexto, conglomerados privados passaram a operar, de forma integrada, frotas marítimas, sistemas terrestres de transporte e instalações portuárias em diversas partes do mundo.

Reformas portuárias no Brasil: marcos legais de 1993 a 2013

No Brasil, a modernização do setor portuário brasileiro foi impulsionada com a Lei nº 8.630/1993, que rompeu o monopólio estatal das operações, definiu o operador portuário como a pessoa jurídica pré-qualificada para executar operações de movimentação de mercadorias dentro do porto organizado, permitiu a entrada da iniciativa privada por meio de arrendamentos e criou os Terminais de Uso Privativo (TUPs).

Nesse contexto, as Autoridades Portuárias passaram a atuar como gestoras da infraestrutura dos portos organizados, com os Conselhos de Autoridade Portuária (CAPs) colegiados deliberativos, compostos por governo, bloco laboral e empresarial e criou a figura do Centro de Excelência Portuária, entidade que ficaria responsável junto às AP de prover pesquisa aplicada, desenvolvimento tecnológico, treinamento e capacitação ao setor, porém ressalta-se que somente o porto de Santos criou sua Fundação CENEP em 2007 (PMS, 2007).

Duas décadas depois, a Lei nº 12.815/2013 revogou a Lei nº 8.630/1993, autorizou os TUPs a movimentarem também cargas de terceiros, ampliando a concorrência e atraindo grandes operadores globais, tornou os CAPs consultivos (medida polêmica até os dias de hoje) e reforçou o papel das Autoridades Portuárias como gestoras públicas e reguladoras de infraestrutura, responsáveis pelo Plano de Desenvolvimento e Zoneamento (PDZ) alinhado ao Plano Nacional de Logística Portuária (PNLP).

O ecossistema de inovação portuária

Assim, a função das autoridades portuárias evoluiu da execução operacional para um modelo de landlord (mundialmente consolidado), onde o estado mantém a posse da área, gere a infraestrutura comum (acessos, dragagem, bacias, canais) e exerce funções de regulação, planejamento e fiscalização mais profissionalizado, competitivo e integrado ao planejamento nacional, facilitando a inovação tecnológica e maior participação de novos atores.

O setor portuário é integrador de uma diversidade de empresas dos mais variados fins e propósitos, o que demanda uma cooperação intensa para a efetiva implementação de tecnologias inovadoras em seu ecossistema. A inovação não ocorre de forma isolada por parte das empresas individuais, mas sim depende da integração de atores como empresas públicas e privadas, ICTs, governos, agências reguladoras, órgãos anuentes e intervenientes entre outros envolvidos na cadeia de valor do sistema portuário. Neste contexto é crucial criar um alinhamento entre a cultura, estratégia e políticas de inovação que irão dar as diretrizes para o ecossistema do setor prosperar.

Além da grande variedade de atores, outra característica distintiva entre um ecossistema de inovação portuária e um ecossistema de inovação tecnológica de setores industriais é o foco na capacidade de absorção, dado o mercado restrito e específico. Essa capacidade representa o principal desafio e motivação para os portos, pois envolve a aplicação precoce de novos conhecimentos e tecnologias, frequentemente desenvolvidos fora do cluster portuário e em outros setores (BID, 2023).

Tendências e perspectivas: “Smart Ports

Segundo o relatório técnico do BID (2023) os três principais resultados de um ecossistema de inovação em portos devem incluir:

  • Investimentos direcionados à implementação de novas tecnologias em operações já existentes ou em novas operações.
  • Crescimento de startups dentro do ambiente portuário, que oferecem produtos e serviços específicos para o cluster portuário e que se baseiam em tecnologias emergentes.
  • Aumento da competitividade do porto e das empresas que fazem parte da comunidade logística-portuária, resultando em melhorias significativas em sua posição no mercado.

Destaca-se, no relatório, a importância dada às políticas públicas e à cultura da inovação como alicerces do modelo dos componentes do ecossistema portuário.

Diversos estudos como Asian Development bank, (2020); Deloitte, (2020); Hamburg PA, (2016); Mckinsey et al., (2018); Medports, (2015); Singapore, (2018), entre outros, apontam que as tendências tecnológicas portuárias convergem na implantação dos chamados smart ports ou portos inteligentes por se caracterizarem como sistemas passíveis de controle e melhoria contínua pelo uso intensivo da tecnologia de informação e comunicação (TIC), e otimizando a utilização de recursos e desempenho, com estrutura adequada para atender às demandas dos drivers externos (demográficos, tecnológicos e de sustentabilidade), assim como a maior oportunidade de criação de valor aos usuários do sistema (Euzebio, 2023).

Encaminhamentos e agenda analítica

A análise realizada até aqui evidencia que a trajetória do setor portuário brasileiro não pode ser compreendida apenas pela sucessão de marcos históricos ou legislativos, mas sobretudo pela transformação do papel dos portos como instrumentos de política econômica. Do uso colonial e estatal, marcado pelo controle de fluxos e mercados, passou-se a um modelo em que a competição, a logística integrada e a inovação tecnológica se tornaram elementos determinantes. Esse movimento revela que os portos, mais do que simples pontos de passagem de mercadorias, constituem verdadeiros laboratórios de organização econômica, em que se testam e se consolidam arranjos institucionais e tecnológicos.

Na próxima coluna, o encaminhamento será ampliar o escopo da investigação para abarcar outros instrumentos tributários, financeiros e regulatórios, bem como programas de inovação já em curso como, por exemplo, o Reporto e o PAC, compreendidos como parte de uma estratégia mais ampla de articulação entre incentivo público e modernização setorial. O objetivo será examinar em que medida essas ferramentas, isoladas ou combinadas, podem ser integradas em uma política portuária consistente, capaz de elevar a competitividade brasileira e mitigar a dependência estrutural em relação a soluções estrangeiras em um setor estratégico para a economia nacional.


Referências:

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ASIAN DEVELOPMENT BANK. Port development and innovation trends in Asia. Manila: ADB, 2020.

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BRASIL. Decreto de Abertura dos Portos às Nações Amigas, de 28 de janeiro de 1808. Disponível em: https://www.planalto.gov.br. Acesso em: 15 ago. 2025.

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DELOITTE. Smart ports: redefining port operations and competitiveness. London: Deloitte Insights, 2020.

EUZEBIO, A. Technology foresight do Sistema Portuário Brasileiro: desenvolvimento e aplicação de metodologia. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2023.

HAMBURG PORT AUTHORITY. SmartPORT logistics: the intelligent port. Hamburg: HPA, 2016.

INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA (IPEA). Offset e compensações tecnológicas: estudo de caso do setor de defesa. Brasília, DF: IPEA, 2019.

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ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU). Landlocked Developing Countries (LLDCs): facts and figures. New York: UN, 2022.

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PORTER, M. E. The competitive advantage of nations. New York: Free Press, 1989.

PREFEITURA MUNICIPAL DE SANTOS. Lei Complementar nº 609, de 12 de dezembro de 2007.

RIBEIRO, Cássio Garcia; INÁCIO JÚNIOR, Edmundo. Política de offset em compras governamentais: uma análise exploratória. Texto para Discussão nº 2473. Brasília: IPEA, 2019. Disponível em: (link).

SINGAPORE MARITIME AND PORT AUTHORITY. Maritime innovation and smart port roadmap. Singapore: MPA, 2018.

SOBRINHO, J. Políticas públicas e inovação em infraestrutura crítica: análise do setor portuário. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2025.

SOBRINHO, Wesley Preite. Brasil perde bilhões com portos defasados e capacidade de carga no limite. Portal UOL, 1 jul. 2025. Disponível em: (link).

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