O evento Fronteiras Tributárias: Homenagem a Henry Tilbery, promovido pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (Fadusp), pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, pelo Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp), pelo Instituto de Pesquisas em Direito Aduaneiro (IPDA), pela Associação dos Conselheiros do Carf (Aconcarf) e pelo Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT), realizado na sede do IBDT, com transmissão simultânea pelo canal da instituição no YouTube (link), celebrou a memória do professor Henry Tilbery.
Henry Tilbery
Tilbery, doutor pela Universidade de Praga, foi um jurista de formação cosmopolita que o Brasil acolheu e incorporou à sua tradição jurídica, tendo realizado sua primeira especialização em Direito Tributário na FADUSP, que deu origem à obra A Tributação dos Ganhos de Capital, que, em 1977, quando de sua publicação autônoma, seria dedicada à memória de seu amigo Fabio Fanucchi, professor da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie recém falecido.
Posteriormente, Tilbery cursou uma segunda especialização, em Ciências das Finanças, sob a orientação de Alberto de Sampaio Dória, da qual resultou a obra Tributação e Integração da América Latina (1971), livro que representa o marco inaugural de uma reflexão sistemática sobre a integração econômica regional sob a perspectiva tributária.
Esse diálogo teórico, iniciado há mais de meio século, buscou ser retomado não apenas como homenagem, mas como atualização de uma agenda intelectual que Tilbery formulou de modo pioneiro no Brasil e que marcou duas instituições centrais na formação de juristas na área tributária: o IBDT e a Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Na década de 1980, Tilbery foi um dos primeiros doutores formados pelo Mackenzie, em uma geração que incluiu nomes ilustres como Aurélio Pitanga Seixas Filho e Ives Gandra da Silva Martins, e teve presentes em sua banca acadêmica juristas que se tornariam pilares do pensamento tributário nacional, como como Bernardo Ribeiro de Moraes, que foi docente da Faculdade de Direito de Higienópolis, e Ruy Barbosa Nogueira e Alcides Jorge Costa, que presidiram o IBDT, além de Álvaro Villaça de Azevedo. A tese daria origem ao seminal livro Imposto de renda – Pessoa Jurídica – Integração entre Sociedade e Sócio.
A escolha de homenagear Henry Tilbery em um evento sobre fronteiras tributárias não se deve à sua reconhecida contribuição aos estudos relativos ao imposto sobre a renda, assunto pelo qual se notabilizou como jurista, mas a seu papel pioneiro em examinar o tema da integração regional, o que apenas ressalta a profundidade e a pluralidade teórica borbulhante que marcaram a sua produção intelectual.
Tilbery e integração latino-americana
Como demonstrou Jeferson Teodorovicz [1], o esforço de Tilbery consistiu em reinterpretar a classificação dos níveis de integração econômica elaborada no clássico estudo do húngaro Bela Balassa publicado em 1964 [2] (zona de livre comércio, união aduaneira, mercado comum e união econômica) sob uma perspectiva tributária, acrescentando a etapa da “união dos tributos internos” como desdobramento teórico da integração econômica, formulação que deslocava o foco das barreiras tarifárias para o campo das distorções internas de tributação, antevendo a necessidade de coordenação das políticas fiscais como condição para a livre circulação de bens e fatores produtivos.
Tilbery compreendeu que o projeto integracionista latino-americano não poderia se limitar a reproduzir o modelo europeu de unificação econômica, pois a região carecia de bases institucionais e fiscais homogêneas. Sua proposta, portanto, era de uma harmonização tributária de caráter funcional, pautada em princípios de neutralidade e não discriminação, e que respeitasse as assimetrias estruturais dos sistemas nacionais.

Spacca
Do Tratado de Montevidéu ao Mercosul
O contexto teórico delineado por Tilbery pode ser compreendido à luz das etapas concretas da integração econômica regional, tendo sido um marco normativo notável a assinatura do Tratado de Montevidéu de 1960, que criou a Associação Latino-Americana de Livre Comércio (Alalc), com o objetivo de estabelecer uma zona de livre comércio.
A Alalc fracassou em suas “metas ambiciosas” de alcançar uma integração econômica mais profunda, levando à sua substituição pela Associação Latino-Americana de Integração (Aladi), instituída pelo novo Tratado de Montevidéu de 1980 (o chamado “TM-80”), que ampliou o alcance e a flexibilidade dos compromissos de integração [3].
A Aladi consolidaria a formação de blocos sub-regionais (Comunidade Andina, Mercosul e Grupo dos Três) e permitiu a celebração de acordos parciais entre países, sem a obrigatoriedade de extensão automática das concessões aos demais membros. Tal característica de convergência gradual permitia que novos países aderissem progressivamente aos acordos já celebrados, favorecendo a adaptação das economias menos desenvolvidas ao processo integrativo e mantendo o compromisso de eliminação de gravames e restrições ao comércio recíproco e a previsão de um processo de integração longo, gradual e progressivo, voltado à formação de um mercado comum latino-americano.
Essa trajetória culminaria no Tratado de Assunção, celebrado em 26 de março de 1991, que instituiu o Mercado Comum do Sul (Mercosul), definido por Liziane Angelotti Meira como uma “união aduaneira imperfeita” [4], por admitir exceções à regra de tarifa externa comum e por manter incidência tarifária em parte do comércio intrabloco.
À época de assinatura do Tratado de Assunção, o Brasil ainda não instituíra a Cofins (LC nº 70/1991) nem as contribuições PIS-Importação e Cofins-Importação (Lei nº 10.865/2004), o que demonstra a posterior complexificação do sistema tributário interno frente aos compromissos internacionais [5].
Processos de integração
Na mesa internacional do evento “Fronteiras Tributárias: Homenagem a Henry Tilbery” sobre Blocos Regionais e Integração tributária e aduaneira, o professor da Universidad de la República Andrés Varela iniciou a sua exposição referenciando a monumental obra “Derecho de la Integración – Tomos I y II”, de Ricardo Xavier Basaldúa, já retratada por esta coluna em artigo de Rosaldo Trevisan e Diogo Fazolo (link), e que define a integração como um processo de eliminação progressiva das discriminações entre os espaços econômicos individualmente considerados.
Nas palavras do professor uruguaio, os países se situam hoje no complexo espaço de convívio entre o protecionismo, que conforma o tratamento tarifário diferenciado; o bilateralismo, que confere tratamento preferencial às mercadorias trocadas exclusivamente entre os contratantes; o multilateralismo, que implica a impossibilidade de discriminação segundo a origem das mercadorias entre os Estados-membros; e o regionalismo, que designa, de forma mais ampla, os acordos preferenciais de integração.
Como recordou Jeferson Teodorovicz, em 1971, época da publicação da obra de Tilbery, o tema da integração borbulhava como reflexo direto da experiência europeia, que consumava um esforço em direção à formação de blocos regionais, precedido de intensos estudos técnicos elaborados por comissões especializadas, entre os quais se destacam o Relatório Newmark (1962) e, anteriormente, o Relatório Tinbergen (1953), voltado à uniformização da tributação sobre o consumo no âmbito da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA). Esses documentos serviram de base para a coletânea “Fiscal Harmonization in Common Markets”, coordenada por Carl S. Shoup na Universidade de Columbia nos EUA e publicada em 1967, que sistematizou o arcabouço conceitual da harmonização tributária em mercados comuns.
Segundo Teodorovicz [6], a teoria da harmonização tributária nasce exatamente desse esforço político de integração econômica regional, no qual o Direito Tributário passa a desempenhar função instrumental na redução de distorções fiscais entre Estados. Tilbery, atento a esse movimento intelectual e institucional, influenciado pela obra liderada por Carl S. Shoup, foi precursor da transposição desta leitura para o contexto latino-americano, analisando os desdobramentos do Programa Conjunto de Tributação OEA/BID e do Tratado de Montevidéu de 1960, que instituiu a Associação Latino-Americana de Livre Comércio (Alalc).
Com a publicação de Tributação e Integração da América Latina (1971), Tilbery tornou-se o primeiro jurista brasileiro a sistematizar a discussão sobre integração sob uma perspectiva tributária. Sua contribuição consistiu em identificar, no processo de liberalização comercial latino-americano, a necessidade de coordenação fiscal como etapa indispensável à efetiva integração econômica. Em sua leitura, o Direito Aduaneiro deveria servir como instrumento técnico de redução das assimetrias e de consolidação de um território aduaneiro comum, antecipando, com notável clareza teórica, a lógica de coordenação que mais tarde orientaria o Mercosul e outros blocos regionais.
Cooperação aduaneira: Brics, CPLP e Comalep
Em sua exposição, Kelly Morgero destacou a relevância dos 16 acordos de cooperação aduaneira firmados pelo Brasil com diversos países, entre eles China, Estados Unidos, França, e Japão, que viabilizam a troca de informações para fins de gerenciamento de risco e fiscalização aduaneira.
Mencionou, ainda, os acordos celebrados no âmbito de grupos multilaterais, como o Brics, atualmente sob presidência brasileira, cujos grupos de trabalho se dedicam a temas como enforcement, digitalização, capacitação técnica e fortalecimento da cooperação e da interoperabilidade entre administrações aduaneiras. Referiu-se também à Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), integrada por 9 países lusófonos distribuídos em quatro continentes e com distintos níveis de desenvolvimento econômico, e ao Convenio Multilateral de Aduanas de América Latina, España y Portugal (Comalep), fóruns voltados à troca de experiências e à harmonização de práticas aduaneiras.
Integração econômica
No tocante à integração econômica, observou que o Mercosul celebrou uma série de Acordos de Complementação Econômica – com Chile (ACE-35), Bolívia (ACE-36), México (ACE-55), Colômbia, Equador e Venezuela (ACE-59), Peru (ACE-58), Cuba (ACE-52) e Colômbia (ACE-72) – enfatizando o papel da Aduana na verificação da origem das mercadorias para a aplicação das preferências tarifárias, função fundamentada no princípio da cooperação entre os órgãos de fronteira, base da moderna governança aduaneira internacional.
Comitê técnico aduaneiro: Sintia e Indira
No âmbito do Mercosul, foram instituídos oito Comitês Técnicos, entre os quais se destaca o Comitê Técnico nº 2 (CT-2), responsável por temas aduaneiros e de facilitação do comércio que, por sua vez, é estruturado em três subcomitês técnicos, voltados a diferentes eixos de atuação: (1) Controles e Operações de Fronteira, dedicado à modernização e integração física e operacional das fronteiras; (2) Procedimentos Aduaneiros e Informática Aduaneira, atualmente concentrado na implementação do Sistema Informatizado de Trânsito Aduaneiro Internacional (SINTIA), destinado à troca eletrônica de informações sobre as operações de trânsito aduaneiro e à substituição do MIC/DTA em papel nos modais rodoviário e hidroviário; e (3) Prevenção e Luta contra Ilícitos Aduaneiros, que tem como foco a implantação do Sistema de Intercâmbio de Informações de Registros Aduaneiros do Mercosul (INDIRA), voltado à cooperação e ao compartilhamento de dados entre as Aduanas do bloco.
Além desses subcomitês, o CT-2 conta com dois grupos ad hoc: o grupo “VUCE”, dedicado à interoperabilidade das Janelas Únicas de Comércio Exterior dos países-membros; e o grupo “OEA”, voltado à implementação do Acordo de Reconhecimento Mútuo no âmbito do Mercosul, com vistas à convergência dos programas nacionais e à ampliação do acesso a benefícios concretos aos operadores.
Gestão coordenada de fronteiras
Kelly Morgero abordou a gestão coordenada de fronteiras (GCF) como uma das vertentes mais promissoras da modernização aduaneira no Mercosul. Mencionou as áreas de controle integrado, criadas pelo Acordo de Recife de 1994, que atualmente passam por processo de modernização e aprimoramento institucional.
Projetos como o de Dionísio Cerqueira, apontada como área-modelo, e outras iniciativas em pontos estratégicos da fronteira sul-americana, evidenciam o esforço do Mercosul em modernizar seus postos fronteiriços e alinhar-se às práticas internacionais de fronteiras inteligentes (“smart borders“), consolidando o Brasil como referência regional em modernização aduaneira [7].
Integração física e o Corredor Bioceânico
No mesmo eixo de modernização e integração fronteiriça, foi mencionado o Corredor Rodoviário Bioceânico de Capricórnio, iniciativa que conecta os oceanos Atlântico e Pacífico por meio de uma rota que liga o Porto de Santos, no Brasil, aos portos de Antofagasta, Mejillones e Iquique, no Chile, atravessando o Paraguai e o norte da Argentina.
Mais do que um projeto de transporte, o corredor expressa a materialização da visão de integração funcional latino-americana, na qual o comércio internacional atua como vetor de desenvolvimento econômico e de convergência institucional entre os Estados da região.
Integração e desenvolvimento
O percurso que vai da publicação da obra Tributação e Integração da América Latina (1971) ao atual modelo brasileiro de “smart border” é polarizado pela ideia da integração, que envolve o estabelecimento de infraestruturas físicas, institucionais e tecnológicas capazes de harmonizar regras, práticas e informações.
A agenda aduaneira contemporânea representa a atualização do projeto de integração funcional em que o Direito Aduaneiro deixa de ser mero instrumento de controle para se tornar vetor de desenvolvimento e convergência regional.
[1] TEODOROVICZ, Jeferson. Políticas públicas e harmonização tributária regional internacional: a experiência latino-americana. Revista da FD-UFRGS, v. 8, p. 205-224, 2019; e TEODOROVICZ, Jeferson. Harmonização Tributária Internacional e Integração Regional. 1. ed. RJ: Lumen Juris, 2017.
[2] BALASSA, Bela. Teoria de La Integración Económica. México: UTEHA, 1964.
[3] CANO, Hugo González. A harmonização tributária nos processos de integração econômica. Brasília/DF: Esaf, 1986.
[4] MEIRA, Liziane Angelotti. Integração regional e tributos sobre o comércio exterior no Mercosul. Revista da PGFN, v. 1, n. 2, p. 53-71, 2011, p. 60
[5] BRANCO, Leonardo. Normas tributárias niveladoras. São Paulo: Editora IBDT, 2025, pp. 73 a 78.
[6] TEODOROVICZ, Jeferson. História da harmonização tributária internacional: entre a doutrina e a política. São Paulo: IBDT/Dialética, Direito Tributário Atual nº 36, 2016.
[7] JAMBEIRO FILHO, Jorge; COUTINHO, Gustavo L.; MORGERO, Kelly. How Brazil transformed Customs control through artificial intelligence and other technologies. WCO News, Bruxelas: WCO, n. 105, 2024. Disponível neste link.

