Diz-se ser o “ovo da serpente” aquilo que pode ser claramente discernido como algo que irá gerar um malefício futuro. Apesar da expressão já estar presente no Júlio César shakespeariano, se popularizou no clássico filme homônimo, de Ingmar Bergman, no qual o Dr. Vergerus, diante do contexto da Alemanha dos anos de 1920, antes do nazismo, afirmou que “qualquer um poderá ver o que nos espera no futuro. É como o ovo da serpente. Através das finas membranas, pode-se claramente discernir o réptil já perfeitamente formado”.
Recentemente, editou-se a MP nº 1.160/23, que revogou o artigo 19-E da Lei nº 10.522/02, restabelecendo o voto de qualidade, previsto no artigo 25, §9º, do Decreto nº 70.235/72, como método de resolução dos empates nos julgamentos realizados pelo Carf, em decorrência da sua composição paritária. Em resposta, grande parte da advocacia tributária e setores do empresariado passaram a se organizar para barrar essa alteração, por diversos meios.
Por um lado, buscou-se o Judiciário para suspender os julgamentos dos casos enquanto a MP não fosse convertida em lei, além da ADI proposta por partidos políticos contra a alteração. A maioria das ações individuais têm sido rejeitadas em primeira e segunda instância, e considerando os argumentos carreados pela ADI, arrisco o prognóstico de que esta terá igual sorte. Por outro lado, legislativamente se buscou fazer uma grande pressão política, com a apresentação de dezenas de emendas legislativas buscando suprimir o dispositivo que revogara o desempate favorável ao contribuinte.
A reação veio em diversas manifestações, por parte de alguns pesquisadores, da Receita Federal e do próprio ministro da Fazenda, no sentido de criticar a coexistência da regra de desempate pró-contribuinte e a estrutura paritária, apresentando conclusões tanto da Controladoria-Geral da União quanto do TCU (em especial no Acórdão 336/2021, do Plenário), no sentido de que o modelo paritário fomentaria conflitos de interesses e que seu abandono deveria ser considerado pelo órgão.
De repente, o foco de calor da discussão migrou do método de desempate para o modelo paritário de composição dos colegiados do Carf, reforçado por cotejos com outros tribunais administrativos existentes. Devemos refletir sobre isso.
Em 2020, antes da aprovação da regra de desempate do artigo 19-E, escrevi um artigo com o Diego Diniz sustentando que “o voto de qualidade não era problema do Carf” [1]. Na ânsia pela saída fácil para reverter alguns entendimentos mantidos por qualidade, cedeu-se à sedução da proverbial serpente, e criou-se uma regra, sem qualquer debate democrático, que passou a estabelecer um método apriorístico de resolução dos empates, sempre contrário ao ato administrativo, que decorreu de um misto de oportunismo e uma profunda má-compreensão sobre quais eram os reais problemas do contencioso administrativo (e.g. falta de critérios objetivos para compor a CSRF), bem como dos meios adequados para resolvê-los.
O próprio “design” da nova regra estava materialmente em desconformidade com a CF, por subverter a presunção de legitimidade dos atos administrativos, tantas vezes afirmada pelo STF (sem sequer mencionar os seus vícios formais, que já tratamos em outra oportunidade [2]).
Em um pano rápido, na linguagem teatral, a premissa de um “in dubio pro contribuinte” é um arremedo caricatural do “in dubio pro reo” — esse sim existente, no artigo 5º, LVII da CF, para o âmbito punitivo —, erigido sobre a premissa (deliberadamente) oculta de que o tributo seria uma forma de “sanção” (“o imposto é roubo“, dizem em sua versão mais pedestre). Com a devida vênia, confundem-se os pontos de partida: o lançamento parte da presunção de legitimidade, ao passo que a punição parte da presunção de inocência do acusado, e isso afeta decisivamente como o julgamento de cada um deve ser tratado.
O artigo 19-E ignora o estatuto jurídico dos atos administrativos, ao estabelecer a presunção da ilegitimidade do lançamento, nos casos de empate. Para sustentar isso, arguiu-se um inapropriado suporte dogmático no artigo 112 do CTN, que nada dispõe acerca de empates no julgamento, mas apenas estabelece uma metarregra de determinação, entre os sentidos possíveis para regras infracionais tributárias, daquele mais favorável ao contribuinte [3] — é uma regra interpretativa, e não processual.
Ademais, como já mencionado, a solução do artigo 19-E contraria materialmente precedentes recentes do STF, a respeito da presunção de legitimidade. A Suprema Corte, após a discussão ocorrida na ADPF 46, editou a Emenda Regimental nº 35/2009, que alterou o artigo 146 do seu regimento interno [4], aduzindo que no empate no julgamento de matérias cuja solução dependa de maioria absoluta, a decisão deveria se dar contrária a proposta.
A interpretação desse dispositivo foi estabelecida no julgamento das Medidas Cautelares nos MS nº 34.127 e 34.128, em 2016, com a conclusão de que “em havendo empate em sede mandamental, [deve] subsistir o ato impugnado, considerada a presunção ‘juris tantum’ de legitimidade que qualifica as deliberações emanadas do Poder Público“. A conclusão relevante desses precedentes foi que o controle de atos administrativos é matéria que demanda maioria absoluta, por força da sua presunção de legitimidade, atraindo a aplicação do artigo 146 do RISTF.
Portanto, a inconstitucionalidade do 19-E, enquanto método de resolução de empates no PAF, independe da composição do colegiado, porque é uma decorrência da subversão do regime jurídico material do ato revisado, e não do procedimento revisional em si. Ora, se em havendo o empate entre dez ministros do STF há de prevalecer o ato administrativo, porque deveria ser diferente no empate no Carf, independente da composição paritária ou não? Essa observação é relevante, pois permite dissociar a regra do 19-E do modelo paritário: ela seria inconstitucional para resolução de empates independentemente da existência da paridade.
A aproximação entre eles se baseia muito mais em uma presunção de que os conselheiros representantes dos contribuintes teriam uma propensão em votar contra o lançamento na discussão de teses controversas. Essa propensão, em alguma medida, existe. Mas, diferente das acusações, ela não decorre de parcialidade ou conflito de interesses, mas sim em razão de vieses de formação intelectual — presentes em qualquer julgador, independente da representação.
Aqui, há que se reafirmar o óbvio: o Carf é um tribunal administrativo, órgão que compõe a estrutura do Ministério da Fazenda e com função revisional de seus próprios atos. O seu posicionamento final representa a posição da União a respeito do tema, daí a definitividade que possui nas hipóteses em que exonera o contribuinte, resguardando-se o direito deste de acessar o Judiciário, antes, durante ou depois do processo administrativo.
Em razão do que foi dito até então, não há qualquer óbice jurídico que o Carf adotasse uma regra nos moldes do artigo 146 do RISTF, com a manutenção integral do ato nas hipóteses de empate. Aliás, sequer haveria algum impeditivo na CF no sentido de se adotar uma composição não-paritária nos colegiados desse órgão, a exemplo do que se dá nas Delegacias de Julgamento da RFB.
O modelo paritário foi uma opção política, desde a origem dos Conselhos de Contribuintes, como uma concessão democrática, inclusive repercutindo na estruturação dos tribunais administrativos estaduais e municipais.
Buscou-se, com a participação da sociedade nos julgamentos, não apenas conferir maior credibilidade e legitimidade às decisões, dando-lhe voz ativa no desenrolar das grandes discussões tributárias de interesse nacional, e permitindo-lhes apresentar outros pontos de vista sobre os temas. Em tempos em que se acusa uma “elitização” do Carf, a dialética entre as duas representações se mostra especialmente profícua nos casos de pequenos contribuintes que não apresentaram defesa de alto nível técnico, ou não estão acompanhados de advogados, garantindo uma apreciação profunda e voltada à correta aplicação da lei [5].
Dar voz e voto, entretanto, não é o mesmo que dar preponderância, e nem deveria ser, em se tratando da produção de uma manifestação da administração pública.
Em razão disso, o modelo paritário veio acompanhado de uma regra de desempate que estabelecia a preponderância da posição assumida pelo presidente do colegiado, independente de ser contra ou a favor do ato. A presidência ser ocupada por um representante fiscal apenas reflete a lógica de que o seu viés de decisão estará estatisticamente mais alinhado às posições da União em algumas questões (ainda que isso não se dê de forma necessária [6]).
Não obstante, há diversos estudos que demonstram que a participação de julgadores com posições antagônicas em colegiados conduz, com o tempo, a uma convergência de posições. Daí a escolha dos presidentes se dar entre aqueles com a maior experiência de julgamento, por mais tempo nesse processo de convergência, pelo contato com os vários ângulos das discussões.
A questão é que, parafraseando nosso artigo anterior, a paridade não é o problema do Carf! Pelo contrário, trata-se da sua maior força, e direcionou o papel que o órgão ocupou no meio jurídico nos seus quase cem anos.
No primeiro artigo dessa coluna, escrevemos que o ministro Bilac Pinto, no AI nº 62.811/RJ, já afirmara a relevância dos órgãos administrativos decisórios, pelo manejo de conhecimentos técnicos altamente especializados e que não são usuais em juízes de carreira, mas também por exercerem uma função de redução do arbítrio na aplicação da lei, aprimorando a segurança jurídica nas relações entre Estado e administrado.
Poderíamos dizer que essa é uma função de microrrelevância, pois afeta apenas cada relação específica sob análise. Por outro lado, o Carf possuí também uma função de macrorrelevância, no sentido do impacto social de suas decisões não se esgotar apenas na resolução dos casos concretos. E isso decorre, principalmente, da dialética que se instaura a partir do modelo paritário.
Em primeiro lugar, o alto nível dos seus debates sempre foi raiz do desenvolvimento dos estudos tributários no país. Grandes nomes da formação do pensamento tributário nacional passaram por aquele órgão, como Tito Vieira de Rezende, Paulo de Barros Carvalho e Hindemburgo Dobal Teixeira (este último mais conhecido por como assinava sua poesia – H. Dobal).
Em um passado recente, poderia mencionar dezenas de autores e professores de renome que passaram pelo órgão, furtando-me da listagem apenas pelo inescapável risco de cometer injustiças. E contemporaneamente, menciono conselheiros atuais que nos ladeiam na ConJur e constroem doutrina fiscal diariamente, como Rosaldo Trevisan, Fernando Brasil, Liziane Meira, Alexandre Evaristo, Thaís de Laurentiis, Fernanda Kotzias, Ludmila Monteiro e Leonardo Branco, além de muitos outros que deixo de citar exclusivamente pela limitação de espaço.
Afirmo, sem qualquer receio, que nunca tanta produção acadêmica teve origem nos colegiados do Carf e seus conselheiros. Tampouco foram seus acórdãos objetos de tantos estudos e análises por parte da doutrina brasileira.
Em segundo lugar, por serem a resultando de um profícuo debate sob diversos pontos de vista, os acórdãos do Carf se tornaram fontes de análise para o Judiciário, que tem buscado fundamento para decisões tributárias nos debates registrados nos votos.
No âmbito do STJ, por exemplo, o REsp nº 1.221.170/PR adotou a posição “intermediária” de insumos firmada na 3ª CSRF, declarando a ilegalidade da posição da RFB. No REsp nº 1.133.032/PR, o STJ firmou sua posição a partir dos “reiterados pronunciamentos da Fazenda Nacional, pelo órgão máximo de sua instância administrativa, o Conselho Superior de Recursos Fiscais“. Menciono também os Processos nº 5001089-78.2023.4.03.6100/SP e nº 5009900-93.2017.4.04.7107/RS, nos quais o contribuinte perdeu por voto de qualidade no Carf, mas as declarações de voto vencidas foram integralmente adotadas como razão de decidir no Judiciário.
Por fim, por serem a resultante de um debate das várias opiniões contrapostas, os acórdãos do Carf indiretamente fornecem linhas de orientação para o contribuinte, que procura balizar suas atividades pelas decisões desse órgão, construindo uma base de confiança para suas atividades.
Ao se ceder à tentação para reverter o resultado da polarização, em alguns temas, nas CSRF, após a Zelotes, abandonou-se a discussão técnica do PAF e se abraçou o artigo 19-E, a saída fácil, o ovo da serpente, que desde a sua origem contrariava a jurisprudência do STF a respeito do controle de atos administrativos. Apartando-se as paixões, era muito fácil ver onde isso iria levar.
A demora do STF em analisar a sua (in)constitucionalidade permitiu o desenvolvimento de um debate ruidoso, onde as razões mais inapropriadas e ou fantasiosas, contra e a favor do dispositivo, foram invocadas. Transformou-se uma questão técnica em ideológica, dando-se tempo para que a eclosão do ovo da serpente, cuja peçonha atacou a paridade. Esta que é o grande mérito do contencioso administrativo tributário, e que deu ao Carf uma relevância social que nenhum de seus pares alhures possuem, de repente se tornou a vilã do debate.
É necessário reconhecer que a necessidade de expurgo do 19-E, realizada pela MP nº 1.160/23, decorrente da sua incompatibilidade com a presunção de legitimidade dos atos administrativos, e não de eventual composição do órgão. Daí, pode-se iniciar um novo debate, sobre quais os possíveis aperfeiçoamentos no PAF têm o potencial de extrair o melhor que o sistema paritário tem a oferecer, respeitando-se a natureza e função desse órgão de julgamento.
Devemos resistir ao tradicional complexo de vira-lata brasileiro, e focar no desenvolvimento da potencialidade subjacente à paridade no nosso contencioso administrativo, ao invés de novamente optar pela tentadora saída fácil de alterar a estrutura do Carf, e acabar chocando um novo ovo da serpente, que irá esvaziar a macrorrelevância do Carf e trazer consequências ainda piores para todos.
[1] https://www.conjur.com.br/2020-abr-01/direto-carf-voto-qualidade-nao-problema-carf.
[2] https://www.conjur.com.br/2020-abr-22/direto-carf-alcance-voto-qualidade-questionamentos-decorrentes.
[3] Nesse sentido, com muita clareza, Leonardo Branco, https://www.conjur.com.br/2023-fev-07/territorio-aduaneiro-limite-recursal-carf-tres-formas-argumentacao.
[4] Art. 146. Havendo, por ausência ou falta de um Ministro, nos termos do art. 13, IX, empate na votação de matéria cuja solução dependa de maioria absoluta, considerar-se-á julgada a questão proclamando-se a solução contrária à pretendida ou à proposta.
[5] Qualquer conselheiro atual ou passado deve se lembrar de casos desacompanhados de advogado, com defesa simplória, mas que a correta aplicação da lei se deu a partir dos debates dos colegiados.
[6] Como já demonstramos, até 2020, dos 3,2% de empates, 1,3% favoreceram os contribuintes (40,63%) – v. Nota de rodapé 1.
Publicado originalmente no ConJur.