Apesar da sua existência quase secular, o Carf volta à tona nos debates jurídicos em razão do advento da Medida Provisória nº 1.160, de 12/1/2023, a qual, de forma muito sumária, estabeleceu: (1) a revogação do artigo 19-E da Lei nº 10.522/2002, com o restabelecimento do voto de qualidade fundado no § 9º do artigo 25 do Decreto nº 70.235/72 [1]; (2) incentivo de medidas de autorregularização fiscal; (3) aumento de 60 para 1.000 salários mínimos quanto ao valor de alçada para que recursos voluntários se submetam à apreciação do Carf, órgão julgador paritário.
É inegável que o marco inicial dessas idas e vindas normativas acerca do Carf coincidem com a deflagração da operação zelotes, em março de 2015, quando se acusou alguns julgadores de corrupção. Uma mácula grave como essa deve ser investigada e os eventuais culpados punidos. A instituição, todavia, não só pode como deve promover medidas para o seu aperfeiçoamento [2] e blindagem contra futuras investidas criminosas, mas tudo isso sempre prestigiando a sua permanência. O que se deve jogar fora é a “água do banho” e não o “bebê”, como diz o ditado.
Como é natural de toda mudança, ela causa estranheza inicial e depende de tempo para que haja uma acomodação. Nesse interregno, aqueles que bradavam pela retomada do modelo até então existente elegeram um vilão: o voto de qualidade, estabelecido nos termos do artigo 25, § 9º do Decreto nº 70.235/72. Esse modelo, que até a repaginação do Carf pós-zelotes, sempre existiu sem causar maiores discussões, na medida em que parte de um valor existente em Estados democráticos de Direito: a de presunção de validade e legitimidade dos atos administrativos. Logo, em um órgão administrativo paritário, havendo empate, prevalece a posição a ser externada por um representante da administração pública, não necessariamente em favor dos interesses arrecadatórios.
O que se alegava é que a jurisprudência até então firmada pelo Carf vinha sofrendo superações com base no voto de qualidade, o que implicaria ofensa à segurança jurídica. Tudo isso como se o problema da instabilidade jurisprudencial no país não fosse outro: a ausência de uma cultura de precedentes e, por conseguinte, de metodologia jurídica adequada para o desenvolvimento do stare decisis [3] Aliás, reforçando esse ponto, os infindáveis overrulings no âmbito da jurisprudência tributária do STF e do STJ são provas viva dessa colocação.
Não obstante, como dito acima, a acomodação do Carf após a sua repaginação foi ocorrendo paulatinamente e, segundo dados oficiais do órgão [4], em fevereiro de 2020, as votações unânimes equivaliam a 89,3% dos julgados, enquanto as decisões pelo então voto de qualidade correspondia a 3,2% dos julgados. Daí a razão pela qual, ainda antes do advento do artigo 19-E da Lei nº 10.522/2002, afirmarmos que o problema do Carf não era o voto de qualidade, mas sim outros pontos que necessitavam de aperfeiçoamento e que fora por nós detalhados em outra coluna, escrita em coautoria com Carlos Augusto Daniel Neto [5].
Aliás, em relação aos números sobreditos, sempre afirmarmos onde estava a distorção, i.e., a existência mais acentuada de casos decididos pelo voto de qualidade: o problema estava na Câmara Superior de Recursos Fiscais, oportunidade em que apontamos a razão do problema — ausência de critérios objetivos para a composição desse órgão —, bem como a solução — a existência de previsão normativa estabelecendo critérios objetivos para a eleição de seus membros.
Em todo caso, a escolha adotada pelo legislador foi outra, a qual se materializou pela inserção do artigo 19-E na Lei 10.522/2002, por meio de emenda aglutinativa na MP n. 899/19, de duvidosa constitucionalidade [6]. O mesmo veículo normativo lá empregado (MP) foi agora utilizado para revogar o citado artigo 19-E, o que leva alguns debatedores, de lado a lado nessa discussão, à bipolaridade retórica, i.e., de defender ou criticar a MP nº 899/19 por conta do uso desse instrumento normativo para fins de inserção do voto de qualidade no sistema jurídico e agora, com o polo invertido, defender ou criticar a MP nº 1.160/23 pelo mesmo motivo.
Durante a vigência do artigo 19-E, tentou-se, por meio de atos institucionais, de todas as formas evitar ou restringir a incidência desse dispositivo, se valendo, para tanto, v.g., da Portaria ME nº 260/2020 e da prorrogação episódica da competência das CSRFs das diferentes seções. Todas essas medidas são altamente criticáveis [7], pois se trata de um subterfúgio para esvaziar a eficácia de uma norma até então válida, vigente e eficaz, concordemos ou não com o seu teor ou com a sua constitucionalidade.
Pois bem. Depois de aproximadamente três anos de vigência do art. 19-E da Lei nº 10.522/02, sobrevém a sua revogação pela MP nº 1.160/23. E o que há de comum entre essas alterações legislativas: a ausência de um debate democrático a respeito do tema e a convocação de narrativas para justificar tais medidas que não ultrapassam uma análise técnica. A narrativa agora convocada é estridente e rememora àquelas desenvolvidas nos meses subsequentes a operação Zelotes: a enfadonha acusação de que o Carf teria sido capturado por interesses privados, em especial aqueles com elevadas cifras.
É impressionante como o atual cenário histórico de país que vivemos não foi suficiente para constranger esse tipo de discurso falso-moralista e que em nada, absolutamente nada, contribui para um debate técnico [8].
Voltando ao ponto, o discurso também é falacioso, uma vez que se o problema da pretensa captura do Carf teria sido imposto pelas grandes corporações, qual a razão da MP nº 1.160/23 fragilizar o acesso ao Tribunal, um órgão paritário e, portanto, sem as amarras normativas próprias das DRJs e afins [9], exatamente do pequeno contribuinte, aumentando o valor de alçada de 60 salários mínimos para 1.000 salários mínimos?
A questão é que, de lado a lado, há muita histeria nesse debate. Daí porque a necessidade de retomá-lo sob a perspectiva técnica e partindo do pressuposto que o Carf não é um órgão arrecadador, mas um órgão julgador e que, em nossa opinião, exerce, inclusive, atividade jurisdicional de forma atípica, atividade essa levada ao status de garantia constitucional (artigo 5, inciso LV da CF). Ademais, partir do absurdo que ele teria função arrecadatória, implica concluir que a sua atividade seria meramente confirmadora de autos de infrações fiscais, o que, per saltum, levaria a conclusão de que as autuações fiscais são infalíveis e que o Tribunal é desnecessário. A simples enunciação dessa afirmação é suficiente para demonstrar a sua teratologia.
Dito tudo isso, é importante retomar o início desse texto e a indagação formulada no seu título: para que serve um tribunal administrativo fiscal? E a resposta é a seguinte: para realizar, em concreto, o direito fiscal controverso com segurança e justiça, de modo a prestigiar não interesses estratégicos de lado a lado, mas a racionalização do ambiente fiscal no país.
E, em Estados Democráticos de Direito, essa resposta está pautada em dois pilares fundamentais: (1) a ordem constitucional constituída e (2) a ideia de sobrevalorização do valor cooperação entre polos antagônicos em um conflito jurídico, processualizado ou não, em especial quando as partes envolvidas são a administração pública e o administrado.
O primeiro desses fundamentos é ínsito, repita-se, de um Estado democrático de Direito. O Estado existe não para agir arbitrariamente e per se, mas sim para agir de forma motivada e em favor do Administrado. É ele (administrado) a figura central em um modelo democrático de Estado, o que se afirma aqui sem truísmos do tipo “tributos configurariam um saque da propriedade privada”. Trata-se de pensar o Estado em seu nome, na condição de mandatário, o que se desdobra no âmbito fiscal.
Essa prevalência do administrado no agir estatal é que leva a uma ideia da sua aproximação com a administração e, por conseguinte, também a uma valorização da cooperação a ser perpetrada entre eles, o que pressupõe a existência de constrangimentos institucionais e normativos com esse fim. Daí, nos últimos anos, se ver uma sobrevalorização de institutos em matéria tributária com o negócio jurídico processual, a transação tributária, o tratamento diferenciado para contribuintes mais bem ranqueados pela Fazenda Pública, a implementação do Confia no âmbito federal e, até esmo, o teor do disposto no artigo 3º da MP nº 1.160/23, que prevê a possibilidade de autorregularização de um contribuinte inadimplente.
É, portanto, a partir dessas premissas que o voto de qualidade e o valor de alçada para o Carf devem ser debatidos.
Pois bem. Uma das grandes virtudes do Carf é ser um órgão paritário. As diferentes mundividências, fruto das distintas formações e experiências profissionais dos seus integrantes, é que tanto qualificam as decisões proferidas por aquele tribunal [10]. Logo, não parece fazer sentido aumentar o valor de alçada para recursos voluntários, submetendo-o a um órgão que prescinde dessa paridade. Se a ideia é desafogar o trabalho das Turmas Ordinárias, seria mais interessante atribuir às Turmas Extraordinárias a competência para julgamento de recursos voluntários até 1.000 salários mínimos.
Não obstante, em relação ao voto de qualidade, já tivemos a oportunidade de defender nessa coluna que:
“…havendo empate na turma julgadora, a forma mais equânime para resolver a questão seria pela mantença integral do crédito tributário exigido, em respeito a presunção de validade dos atos administrativos, bem como dos juros moratórios, decorrentes da inadimplência do crédito mantido. Em contrapartida, partindo-se dos valores que conformam o princípio do in dubio pro reo, o empate também redundaria no cancelamento integral da multa imposta em prejuízo do autuado, já que se trata de exigência com nítido caráter sancionatório. E, para que não haja dúvida: na hipótese de lançamento exclusivamente veiculado para imputação de sanção, com ou sem caráter pecuniário, o empate seria integralmente favorável ao sancionado.”
Por sua vez, em relação ao crédito mantido, o contribuinte teria o prazo de 120 dias para ajuizar uma ação anulatória ou um mandado de segurança repressivo [11] e, independentemente do instrumento processual eleito, o autor gozaria de uma prorrogação da suspensão automática da exigibilidade do crédito discutido até que sobreviesse sentença judicial de primeira instância. Assim, competiria ao Poder Judiciário desempatar a questão.
Por fim, reiteramos aqui todas as demais sugestões de mudança que defendemos há quase três anos atrás nessa coluna [12], seguindo atuais e pertinentes, assim sumarizadas:
a) estabelecimento de critérios objetivos para a composição da CSRF, independentemente da representatividade do conselheiro;
b) separação entre a função judicante e a função administrativa dos Presidentes de Câmara e de Seção;
c) definição de prazo máximo para exercício do mandato junto à CSRF, limitando-se a um único interstício de dois anos;
d) aumento do prazo do mandato de Conselheiros em geral para 04 anos, passíveis de uma única recondução;
e) desvinculação do processo de recondução de conselheiros à anuência ou endosso das representações (confederações, entidades sindicais e Receita Federal);
f) manutenção das regras que garantam vagas aos ex-conselheiros da Fazenda nas Delegacias de Julgamento; e, por fim
g) em relação aos conselheiros representantes dos Contribuintes, o estabelecimento de um regime jurídico funcional, com direitos e deveres, e com remuneração compatível com o nível de complexidade e dedicação que a atuação no Carf demanda.
O Carf é uma instituição quase centenária, que presta um valioso serviço de justiça fiscal no Brasil, motivo pelo qual deve sempre ser defendido, o que não é impediente para o seu aperfeiçoamento. Daí as medidas aqui apresentadas ou reiteradas, têm o genuíno propósito de fomentar um debate técnico a respeito do futuro do órgão.
[1] Art. 25 (…).
§ 9º Os cargos de Presidente das Turmas da Câmara Superior de Recursos Fiscais, das câmaras, das suas turmas e das turmas especiais serão ocupados por conselheiros representantes da Fazenda Nacional, que, em caso de empate, terão o voto de qualidade, e os cargos de Vice-Presidente, por representantes dos contribuintes.
[2] O que de fato foi feito pelo Tribunal, inclusive com a incorporação de várias medidas propostas pela Controladoria Geral da União após a deflagração da operação Zelotes, inclusive a de exigir que os Conselheiros representantes da sociedade civil e que fossem advogados estivessem impedidos de exercer seu mister durante o cumprimento de mandato no Tribunal.
[3] Já analisei criticamente o abrasileirado modelo de precedentes aqui: RIBEIRO, Diego Diniz. Processo tributário analítico (vol. III). CONRADO, Paulo César (org.). São Paulo: Noeses, 2016. pp. 111-140. E aqui: Precedentes no Brasil: “Civil Law”, “Common Law” ou “Macunaíma Law”? – YouTube. Acessado em 7/2/2023.
[4] Disponível em <http://idg.carf.fazenda.gov.br/dados-abertos/relatorios-gerenciais/2020/dados-abertos.pdf>, p. 9. Acessado em: 7/2/2023.
[5] Nesse sentido: ConJur – O voto de qualidade não é problema do Carf.
[6] Vide texto acima com nossas considerações a respeito.
[7] O que fizemos aqui: ConJur – O artigo 19-E da Lei 10.522 e sua retroatividade; ConJur – Reflexões do alcance direto e indireto da lei 10.522 (página 1 de 3); ConJur – As novas portarias Carf: catimba ou fair play?. Acessado em: 7/2/2023.
[8] Aliás, deixo aqui registrado a minha solidariedade aos colegas que oficiam naquele tribunal, independente da sua representação. Tive o prazer de dividir bancada com alguns e conhecer mais de perto tantos outros, o que só reforça minha admiração pelo trabalho técnico realizado por tais pessoas.
[9] Detalhando esse ponto com precisão, destaca-se o erudito texto de Leonardo Branco, em coluna vizinha a nossa: ConJur – O limite recursal, o Carf e as três formas de argumentação.
[10] Aos críticos desse modelo, a pretexto de existir uma suposta votação de bancada de acordo com a representatividade dos Conselheiros, cumpre novamente registrar os números já expostos aqui até 2020, em que havia uma elevada convergência para julgamentos por unanimidade, o que, inclusive, é fruto de um crescimento paulatino se comprado com anos anteriores. Aliás, essa convergência gradativa, fruto do passar do tempo, é algo comum em órgãos colegiados paritários ou com visões antagônicas de mundo. Nesse sentido, estudando a Suprema Corte estadunidense, em que o debate é pautado pelo antagonismo entre democratas e republicanos, vide: BAUM, Lawrence. Judges and their audiences: a perspective of judicial behavior. Princeton: Princenton University Press, 2008.
[11] A depender da necessidade ou de dilação probatória e da estratégia processual a ser trabalhada pelo contribuinte-autor.
[12] ConJur – O voto de qualidade não é problema do Carf.
Publicado originalmente no ConJur.