Por German Alejandro San Martín Fernandez
No apagar das luzes de 2023, como de praxe, o contribuinte foi surpreendido com mais uma alteração legislativa em matéria tributária: o disposto no artigo 4º, da Medida Provisória nº 1.202, de 28 de dezembro de 2023, que acrescentou o inciso X ao § 3º do artigo 74 da Lei nº 9.430/96 [1], bem como o artigo 74-A da mesma lei [2], os quais estabeleceram limites à compensação tributária federal para créditos superiores a R$ 10 milhões decorrentes de decisões judiciais com trânsito em julgado.
A regulamentação dessa prescrição ficou sob responsabilidade da Portaria Normativa nº 14/24, cujas disposições estabelecem uma graduação (crescente) de valores a serem compensados mediante estipulação de prazos mínimos para a realização da compensação.
Pois bem. Diante da novel disposição normativa, já existem aqueles que defendem a sua completa injuridicidade, por reduzir a eficácia da coisa julgada, além de estabelecer um tratamento discriminatório entre contribuintes em situações idênticas, apenas em razão de um discricionário “corte” de caráter financeiro. Alega-se, ainda, ofensa à propriedade, segurança jurídica e legalidade[3].
A eficácia da nova norma e os precedentes do STJ
A análise que será aqui feita, todavia, parte de outro racional. Pressupondo a juridicidade da medida provisória, o objetivo aqui almejado é definir o âmbito de eficácia da nova norma, valendo-se, para tanto, de uma análise dos precedentes do Superior Tribunal de Justiça em relação às limitações ao direito de compensar em matéria tributária vis a vis da ideia de direito intertemporal. Nessa linha, os precedentes do Superior Tribunal de Justiça mais relevantes para o presente estudo são aqueles retratados nos Temas 265 (Recurso Especial 1.137.738/SP) [4] e 345 (Recurso Especial 1.164.452/MG) [5], os quais serão analisados a seguir com mais vagar.
Todavia, antes de nos aprofundarmos em tais julgados, mister destacar que, em se tratando de compensação tributária, há jurisprudência consagrada do Superior Tribunal de Justiça no sentido de que a lei aplicável à compensação é aquela vigente na data do encontro de contas. Essa posição, inclusive, está externada, com efeito vinculante, no sobredito Recurso Especial 1.164.452/MG, de relatoria do ministro Teori Zavascki.
Acontece que, no mesmo precedente vinculante alhures mencionado, o Superior Tribunal de Justiça promove uma exceção a essa tese geral fixada e que diz respeito a uma questão de direito intertemporal, o que se deve naqueles específicos casos em que o direito à compensação é reconhecido judicialmente. O trecho abaixo transcrito da lavra do ministro Teori Zavascki deixa isso bastante claro:
Esse esclarecimento é importante para que se tenha a devida compreensão da questão agora em exame, que, pela sua peculiaridade, não pode ser resolvida, simplesmente, à luz da tese de que a lei aplicável é a da data do encontro de contas. Aqui, com efeito, o que se examina é a aplicação intertemporal de uma norma que veio dar tratamento especial a uma peculiar espécie de compensação: aquela em que o crédito do contribuinte, a ser compensado, é objeto de controvérsia judicial. É a essa modalidade de compensação que se aplica o art. 170-A do CTN. O que está aqui em questão é o domínio de aplicação, no tempo, de um preceito normativo que acrescentou um elemento qualificador ao crédito que tem o contribuinte contra a Fazenda: esse crédito, quando contestado em juízo, somente pode ser apresentado à compensação após ter sua existência confirmada em sentença transitada em julgado. O novo qualificador, bem se vê, tem por pressuposto e está diretamente relacionado à existência de uma ação judicial em relação ao crédito. Ora, essa circunstância, inafastável do cenário de incidência da norma, deve ser considerada para efeito de direito intertemporal. Justifica-se, destarte, relativamente a ela, o entendimento firmemente assentado na jurisprudência do STJ no sentido de que, relativamente à compensabilidade de créditos objeto de controvérsia judicial, o requisito da certificação da sua existência por sentença transitada em julgado, previsto no art. 170-A do CTN, somente se aplica a créditos objeto de ação judicial proposta após a sua entrada em vigor, não das anteriores. Nesse sentido, entre outros: EREsp 880.970/SP, 1ª Seção, min. Benedito Gonçalves, DJe de 04/09/2009; PET 5546/SP, 1ª Seção, min. Luiz Fux, DJe de 20/04/2009; EREsp 359.014/PR, 1ª Seção, min. Herman Benjamin, DJ de 01/10/2007. (grifos dos colunistas)
Essa também é a ratio do que fora decido pelo Superior Tribunal de Justiça um ano antes, no âmbito do Recurso Especial 1.137.738 (Tema 265).
Em ambos os casos, os precedentes vinculantes aqui mencionados partem do pressuposto de que a regra geral é a de que a compensação é regulada pela lei vigente à época do encontro de contas, exceto se tal direito à compensação é fruto de reconhecimento judicial, caso em que, em razão de uma questão de direito intertemporal, aplica-se a lei vigente à época do ajuizamento da demanda [6].
Superveniência de novo regime jurídico e o distinguishing do STJ
Partindo da ratio desses precedentes vinculantes do Superior Tribunal de Justiça (artigo 927, III do CPC), a questão a ser dirimida consiste em saber se as limitações impostas pela Medida Provisória 1.202/23 à compensação decorrente de decisões judiciais com trânsito em julgado se enquadram ou não no conceito de superveniência de novo regime jurídico.
Partindo das rationes decidendi dos julgamentos que resultaram nos Temas 265 e 345 e, ainda, considerando que a Medida Provisória 1.202/23 veicula nítida restrição ao direito a compensação judicial, as limitações impostas não poderiam atingir créditos decorrentes de ações judiciais ajuizadas antes da publicação da Medida Provisória 1.202/23, muito menos, como expressamente dispõe o seu artigo 4º, no caso de decisões judiciais já amparadas pela coisa julgada.
Importante repisar que essa conclusão não conflita com a tese, também veiculada pelo Superior Tribunal de Justiça, de que a lei aplicável em matéria de compensação tributária é aquela vigente no momento do encontro de contas. Isso porque, como adrede pontuado, ao julgar os casos retratados nos Temas 265 e 345, o Superior Tribunal de Justiça faz um nítido distinguishing [7] para aquelas situações em que o direito à compensação é fruto de reconhecimento judicial decorrente de decisão transitada em julgado. Essa particular situação é que justifica o tratamento diferenciado veiculado pelo Superior Tribunal de Justiça.
Em outros termos, segundo entendimento vinculante do Superior Tribunal de Justiça, naqueles casos em que a compensação é realizada independentemente de decisão judicial, a legislação aplicável é a do momento em que o encontro de contas é realizado e não a do instante em que nasce o crédito a ser compensado. Por sua vez, naquelas hipóteses em que o direito à compensação é fruto de reconhecimento judicial por meio de decisão transitada em julgado, o corte temporal para se verificar o regime jurídico pertinente é a data do ajuizamento da ação.
Óbice ao legislador
Ao assim decidir, quer parecer que o Superior Tribunal de Justiça tenta criar um óbice para que o legislador, a pretexto de regulamentar o direito à compensação em matéria tributária, esvazie a eficácia de decisões judiciais transitadas em julgado e que reconheceram o direito a tal compensação sob um regime jurídico específico, vigente à época do ajuizamento da ação [8], o qual, inclusive, compõe a causa de pedir [9] dessas ações e, por conseguinte, o limite objetivo [10] da correlata coisa julgada então formada.
Conclusão
Partindo, portanto, do pressuposto quanto à juridicidade da restrição trazida pela Medida Provisória 1.202/23 ao direito à compensação no plano federal, é possível concluir, a partir dos precedentes vinculantes do Superior Tribunal de Justiça aqui analisados, que o limite trazido pela nova norma só terá eficácia para aquelas ações que reconheçam o direito à compensação e que tenham sido ajuizadas após o início da vigência da citada Medida Provisória, não podendo, por conseguinte, haver a incidência retroativa dessa limitação, sob pena de ofensa às rationes de tais precedentes e, por conseguinte, ao disposto nos artigos 926 e 927, inciso III, ambos do CPC.
Caso, todavia, o direito judicial proveniente das citadas decisões do Superior Tribunal de Justiça não seja respeitado e, por conseguinte, a União promova a aplicação da sobredita restrição já nos pedidos de compensação pendentes formulados com lastro em decisões judiciais transitadas em julgado antes do advento da Medida Provisória, caberá ao sujeito passivo prejudicado, diante de manifesto ato coator, se socorrer do Poder Judiciário pela via do mandado de segurança, de modo a garantir seu direito à compensação sem a nova restrição.
[1] “Art. 74. O sujeito passivo que apurar crédito, inclusive os judiciais com trânsito em julgado, relativo a tributo ou contribuição administrado pela Secretaria da Receita Federal, passível de restituição ou de ressarcimento, poderá utilizá-lo na compensação de débitos próprios relativos a quaisquer tributos e contribuições administrados por aquele Órgão.
(…).
Parágrafo 3o Além das hipóteses previstas nas leis específicas de cada tributo ou contribuição, não poderão ser objeto de compensação mediante entrega, pelo sujeito passivo, da declaração referida no § 1o:
(…);
X – o valor do crédito utilizado na compensação que superar o limite mensal de que trata o art. 74-A.”
[2] “Art. 74-A. A compensação de crédito decorrente de decisão judicial transitada em julgado observará o limite mensal estabelecido em ato do Ministro de Estado da Fazenda.”
[3] Já existe, inclusive, uma Ação Direta de Inconstitucionalidade ajuizada contra a MP 1.202/23, em trâmite no STF e sob a relatoria do Ministro Cristiano Zanin (ADI n. 7.587).
[4] “Em se tratando de compensação tributária, deve ser considerado o regime jurídico vigente à época do ajuizamento da demanda, não podendo ser a causa julgada à luz do direito superveniente, tendo em vista o inarredável requisito do prequestionamento, viabilizador do conhecimento do apelo extremo, ressalvando-se o direito de o contribuinte proceder à compensação dos créditos pela via administrativa, em conformidade com as normas posteriores, desde que atendidos os requisitos próprios”.
[5] “Em se tratando de compensação de crédito objeto de controvérsia judicial, é vedada a sua realização ‘antes do trânsito em julgado da respectiva decisão judicial’, conforme prevê o art. 170-A do CTN, vedação que, todavia, não se aplica a ações judiciais propostas em data anterior à vigência desse dispositivo, introduzido pela LC 104/2001.”
[6] Esse entendimento é marcado pela forte influência da doutrina processualista, que vê em toda sentença uma parcela declaratória, a qual sempre retroage até a data da propositura da demanda.
[7] Fredie Didier Júnior faz uma interessante análise da polissemia do termo, o qual pode ser empregado tanto para representar um método (distinguish-método) como também para significar o resultado do emprego de tal metódica (distinguish-resultado). O primeiro sentido seria o equivalente à técnica de confronto entre precedentes, decorrente da comparação analógico-problemática entre eles, de modo a aproximá-los ou distingui-los. Por sua vez, o segundo significado seria o fruto ou o resultado dessa técnica, retratada pela própria decisão que afasta a ratio de um precedente em determinado caso sob julgamento (BRAGA, Paulo Sarno; DIDIER JÚNIOR, Fredie; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de Direito Processual Civil. v. 2, 10. ed. Salvador: Juspodivm, 2015. p. 491).
[8] Por trás do que fora decido pelo STJ nos precedentes aqui analisados está a ideia de que toda sentença possui um caráter declaratório.
[9] Causa de pedir ou “causa petendi” é a razão ou o motivo pelo qual se exercita a ação (CARREIRA ALVIM, J.E. Teoria geral do Processo. 16ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014. p. 127.).
[10] Se é evidente que a coisa julgada deva circunscrever algum objeto da disputa (quantum iudicatum quantum disputatum vel disputari debeat), a busca pelos limites objetivos é a própria pesquisa sobre este conteúdo; significa, em outras palavras, perquirir quais elementos da cognição ou do julgamento que se tornam imutáveis ou indiscutíveis. (CABRAL, Antonio do Passo. Coisa julgada e preclusões dinâmicas: entre continuidade, mudança e transição de posições processuais estáveis. 2. ed. Salvador: Juspodivm, 2014. p. 97.).