Por Carlos Augusto Daniel Neto
No último dia 16, a Associação Paulista de Estudos Tributários (Apet) promoveu uma reunião para discutir o tema da responsabilidade tributária dos contadores, com a participação desse colunista e um grupo de ilustres professores (a íntegra do evento está disponível aqui). O evento foi muito rico e trouxe várias óticas de análise, razão pela qual aproveito o ensejo para compartilhar algumas das nossas reflexões a respeito. As nossas considerações, como sói ocorrer aqui, terão como ponto de partida a jurisprudência do Carf.
Salta aos olhos, ao compulsar os acórdãos, as diversas variações a respeito do tema. A responsabilidade do contador surge tanto pela autuação fiscal, que o erige como sujeito passivo, como em matéria de defesa do contribuinte, buscando responsabilizá-lo pelos ilícitos realizados (por todos, Acórdão 2301-009.695) — na segunda hipótese, trata-se de um argumento que não tem sido acolhido, visto que o Carf sequer teria competência para incluir responsáveis no polo passivo.
Na primeira hipótese, há uma nova, e ampla, variação quanto à fundamentação adotada. Há para todos os gostos: artigo 124, I [1], artigo 135, II, artigo 135, III [2], artigo 137, I [3], todos do CTN, que se apresentam ora separados, ora em uma grande miscelânea. Além disso, ainda são agregadas menções ao artigo 1.177 e 1.178 do Código Civil (CC/02), além do artigo 1.048, §1º, do RIR/2018, este último expressamente discutido no evento da Apet.
A motivação dos atos administrativos, convém rememorar o óbvio, importa. O lançamento vincula a Administração não apenas quanto aos fatos identificados, mas também quanto aos fundamentos jurídicos invocados. E os sujeitos passivos se defendem exatamente nesses dois aspectos.
No âmbito da responsabilidade tributária é comum que os julgamentos ignorem, a pretexto do caso envolver ilícitos indiscutíveis, autos de infração que instauram um verdadeiro “tiroteio motivacional”, como aduzido no Acórdão 3402-005.287 [4], invocando uma plêiade de dispositivos, conjunta e acriteriosamente. Tal prática, entretanto, prejudica o direito de defesa, visto que cada regra possui pressupostos próprios de aplicação que não se confundem, o que dificulta a identificação de qual foi a subsunção construída pela fiscalização.
Para que não fiquemos apenas nas ideias, vamos aos casos!
No Acórdão nº 1301-003.165 [5], o contador foi responsabilizado com base no artigo 135, III, e 137, I, do CTN e no artigo 1.177 do CC/02. Consta que as informações falsas foram declaradas por ordem da empresa e com base na documentação que lhe era repassada, razão pela qual se entendeu pelo afastamento da sua responsabilidade.
Esse caso foi objeto de REsp, no qual PFN alegou a aplicação do artigo 124 do CTN, por haver “interesse comum presente pelo domínio do fato”, mesmo na condição de preposto, sendo prescindível o enquadramento da conduta no artigo 135, III, do CTN. O paradigma foi o de nº 1302-001.705 [6], que envolvia os mesmos sujeitos passivos, e manteve a responsabilidade do contador, com base no artigo 135, II, do CTN. Nele, há algo “peculiar”: o voto do relator esclarece que o enquadramento feito pela fiscalização foi no artigo 135, III, e 137, I, do CTN (da mesma forma que no acórdão nº 1301-003.165), mas que o voto vencedor adotaria como ratio o artigo 135, II, do CTN, hipótese distinta.
Pois bem, na 3ª CSRF, o caso foi julgado no Acórdão nº 9303-011.104[7], de forma unânime, neste ponto. De pronto, o relator esclarece que o dissídio jurisprudencial diz respeito à aplicação do “(artigo) 135, III e 137, I, todos do CTN, para o coobrigado (CONTADOR)”, o que imediatamente causa espécie, visto que o paradigma teve como fundamento o artigo 135, II, do CTN. Na sequência, o relator afirma que “indicação do inciso III é equivocada e deve ser entendida como inciso II, uma vez que trata-se (sic) de prestador de serviço de contabilidade, sem vínculo empregatício”, alterando de maneira evidente o fundamento da sujeição passiva, e mantendo-a sob o argumento de que ele teria ciência da falsidade das declarações transmitidas. Por outro lado, afastou a aplicação do artigo 137, I, do CTN, em razão do contador estar no cumprimento de ordem expressa da empresa.
Avançando, no Acórdão nº 1301-003.005 [8] foi mantida a responsabilidade do contador com base no artigo 135, II, do CTN, sob a alegação de que as práticas fraudulentas ocorriam de maneira reiterada, e que ele prestaria serviços para várias empresas envolvidas nos ilícitos. Observe-se que, nesse caso, o fundamento fático adotado foi a ciência da falsidade das declarações, independentemente de estar no cumprimento de ordens dos contratantes.
Em linha semelhante, o Acórdão nº 1401-004.135 [9] apontou que o contador cuidava da contabilidade do grupo envolvido nos ilícitos autuados, e se manteve a responsabilidade aduzindo que a escrituração possuía erros e manobras contábeis “inescusáveis”, voltadas a fraudar o Fisco, o que só poderiam ser feitos com a anuência do contador — não obstante, não há na decisão nenhuma menção ao fundamento normativo dessa sujeição passiva. A mesma relatora, no Acórdão nº 1401-001.852[10], manteve a responsabilização do contador com base no artigo 135, II, do CTN, em razão de ele ter escriturado as notas fiscais de operações com um valor menor que o praticado.
No Acórdão nº 1102-00.544 [11], afastou-se a responsabilidade do contador, imputada com base nos artigos 124, I, 135, III, e 137, I, todos do CTN. O relator, com grande rigor técnico, aponta que a solidariedade tributária não é mecanismo de eleição de responsável, pois todos os solidários têm participação no fato gerador, para rechaçar a aplicação do artigo 124, I, ao caso. Da mesma forma, apontou que o artigo 135, III, não seria adequado, pois diz respeito a funções dotadas de autoridade formal para agir em nome da empresa — para ele, a relação entre o contador e a autuada seria de mandato, razão pela qual o fundamento adequado seria o artigo 135, II. E quanto ao artigo 137, I, afirma também estar enquadrado equivocadamente, pois o correto seria artigo 137, III, “b”, que pressuporia “dolo específico contra o outorgante”, o que dependeria da prova.
Esse mesmo entendimento foi adotado no Acórdão nº 1402-001.886 [12], onde se rechaçou a responsabilidade baseada no artigo 124, I, do CTN, pois não haveria um interesse comum “no fato que tem a capacidade de gerar a tributação”, que deriva de uma realização conjunta do fato gerador. Ressalte-se que esse processo foi objeto de REsp da PFN, sendo o entendimento convalidado pela 1ª CSRF em julgamento de 10/02/2022 [13].
Com base em fundamentos distintos dos acórdãos acima, o Acórdão nº 1301-001.268 [14] (no mesmo sentido, Acórdão 2001-001.570 [15]) rejeitou a responsabilização do contador por entender que inexistiriam meios, no ordenamento brasileiro, de responsabilização tributária do contador, por débito da pessoa jurídica, e que o artigo 1.177 do CC/2002 se refere à responsabilização cível (inclusive ação de regresso por débitos tributários pagos em razão de erros do contador), mas não tributária.
Como se vê, os mais diversos fundamentos são invocados por aquelas decisões que mantém a responsabilização tributária do contador, com especial destaque, nos casos mais recentes, ao artigo 135, II, do CTN, em razão da sua natureza de “preposto”. Inclusive, verificou-se em alguns casos uma verdadeira alteração do critério jurídico adotado pela autuação, ao longo do processo administrativo.
Não obstante, um ponto não que não costuma ser aprofundado nessas decisões: como imputar a responsabilidade do artigo 135 ao contador, sem correlacionar seus atos próprios, ainda que ilícitos, em uma relação de causalidade com o fato lícito do qual decorre a obrigação tributária [16], como exige o caput? O contador, por vezes, irá apenas refletir na escrituração informações e documentos repassados pelo contribuinte. Os seus atos típicos (relacionados à escrituração) não se correlacionam com fatos geradores, mas com a representação contábil desses fatos — há um salto, aqui, em se imputar tal causalidade.
Mesmo que seja “preposto”, o contador que extrapola seus poderes, no exercício de escrituração, não incorre em fato lícito que gere obrigação tributária — diferentemente de um preposto que esteja realizando negócios em nome do contribuinte, por exemplo. O simples fato de o nome “preposto” estar no inciso II não autoriza superar a exigência do caput do artigo 135.
Poder-se-ia argumentar que a contabilização de informações falsas seria uma infração ao dever de escriturar corretamente. Não obstante, essa premissa fática ensejaria a aplicação do artigo 137 do CTN, destinado às infrações, e não do artigo 135. E mais, havendo ordem do contribuinte para que a escrituração seja feita desse modo (como se destacou em alguns casos), o inciso I afasta a responsabilidade do preposto pela infração. Restaria como hipótese possível de responsabilização apenas o caso de se escriturar informações falsas, com dolo específico de prejudicar o preponente, conforme estabelece o artigo 137, III, “b”, do CTN [17], e como bem observado no Acórdão nº 1102-00.544.
Não vislumbramos outra hipótese de responsabilização dos contadores, por seus atos relacionados à escrituração, no âmbito do CTN, além do artigo 137, devendo-se observar especialmente as hipóteses de afastamento da responsabilidade do inciso I (e.g. nos casos em que há orientação do preponente) e a exigência de comprovação do dolo específico no inciso III, “b”.
Nossa leitura encontra coro na recente decisão do STF na ADI nº 6.284/GO, que discutia a constitucionalidade dos artigos 45, XII-A, XIII e §2º, da Lei nº 11.651/91, do estado de Goiás, e 36, XII-A e XIII, do Decreto nº 4.852/97, do mesmo estado, que atribuíam ao contabilista a responsabilidade solidária com o contribuinte ou com o substituto tributário, quanto ao pagamento de impostos e de penalidades pecuniárias, no caso de suas ações ou omissões concorrerem para a prática de infração à legislação tributária.
Em apertada síntese, o voto do ministro Luís Barroso concluiu que o legislador estadual ultrapassou as regras de responsabilização estabelecidas no CTN em dois sentidos distintos:
1) Em sentido subjetivo, ao definir “quem pode ser o responsável tributário, ao incluir hipóteses não contempladas pelos arts. 134 e 135 do CTN”, referindo-se expressamente ao contabilista; e
2) Em sentido objetivo, pois o artigo 135 exige a ocorrência de atos praticados com “excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos”, enquanto para a regra atacada bastaria simplesmente “infração à legislação tributária” — hipótese que poderia se configurar até com mero inadimplemento, que está fora do alcance do artigo 135, conforme entendimento do STJ (Súmula nº 430).
Em razão disso, declarou-se a inconstitucionalidade formal dos dispositivos analisados, por invadirem matéria de lei complementar, por força do artigo 146 da CF/88.
Em relação ao artigo 1.177 do CC/02, não vislumbramos qualquer lógica jurídica em seu utilizar dele para responsabilização tributária, visto que ele diz respeito à responsabilidade cível por danos causados pelo preposto ao preponente, por seus atos culposos ou dolosos. Deixaremos de fazer quaisquer outras considerações a respeito, por entendermos despiciendas.
Quanto ao artigo 1.048, §1º, do RIR/2018 [18], conquanto ele fale em responsabilidade solidária entre o contador e o contribuinte, deve-se observar que o dispositivo se refere à “falsidades dos documentos” para “fraudar o Imposto de Renda”, conduta esta que corresponde exatamente à infração de “falsidade de escrituração”, prevista no artigo 271 do RIR/2018 [19], que, por sua vez, está sujeita a uma sanção específica prevista no artigo 1.025 do mesmo regulamento, e sujeita à multa isolada no valor de 50% da receita omitida ou da dedução indevida. Trata-se de uma solidariedade para fins de uma sanção administrativa, mas não para a exigência de tributo.
Essa multa é nominalmente destinada ao contribuinte, razão pela qual a regra do artigo 1.048, §1º, tem o condão de imputar ao contador a responsabilidade solidária por ela, nas hipóteses em que tenha falsificado a escrituração e seus comprovantes, para eliminar ou reduzir Imposto de Renda. Seu escopo, portanto, nos parece estar restrito à solidariedade pela referida multa isolada, e não pelos tributos eventualmente cobrados.
Como se vê, o tema é complexo e demanda um tratamento rigoroso, para que abandonemos o “tiroteio de fundamentos” em prol de uma subsunção legislativamente adequada. Ampliar indevidamente o risco tributário, ao arrepio da legislação, dos contadores implica elevar o custo dos seus serviços essenciais, gerando despesas adicionais a todas as empresas, independente de realizarem ilícitos tributários ou não.
Parabenizamos a Apet e seu presidente, Marcelo Magalhães Peixoto, por trazer à baila esse tema relevante aos foros técnicos.
[1] “Artigo 124 – São solidariamente obrigadas:
I – as pessoas que tenham interesse comum na situação que constitua o fato gerador da obrigação principal”.
[2] “Artigo 135 – São pessoalmente responsáveis pelos créditos correspondentes a obrigações tributárias resultantes de atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos:
I – as pessoas referidas no artigo anterior;
II – os mandatários, prepostos e empregados”.
[3] “Artigo 137 – A responsabilidade é pessoal ao agente:
I – quanto às infrações conceituadas por lei como crimes ou contravenções, salvo quando praticadas no exercício regular de administração, mandato, função, cargo ou emprego, ou no cumprimento de ordem expressa emitida por quem de direito”.
[4] Redator Cons. Diego Diniz, j. 22/05/2018.
[5] Rel. Cons. Amelia Yamamoto, j. 12/06/2018.
[6] Redator Cons. Waldir Veiga, j. 25/03/2015.
[7] Rel. Cons. Rodrigo Pôssas, j. 19/01/2021.
[8] Rel. Cons. Amelia Yamamoto, j. 15/05/2018.
[9] Rel. Cons. Luciana Zanim, j. 22/01/2020.
[10] Rel. Cons. Luciana Zanim, j. 12/04/2017.
[11] Rel. Cons. Leonardo Couto, j. 03/10/2011.
[12] Rel. Cons. Fernando Brasil, j. 27/11/2014.
[13] Disponível no link https://www.youtube.com/watch?v=osDBAvqFtQs.
[14] Rel. Cons. Carlos Augusto Jenier, j. 7/8/2013.
[15] Rel. Cons. André Ulrich, j. 28/1/2020.
[16] Por todos, v. SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito Tributário, 7ªed. São Paulo: Saraiva, 2017.
[17] “Artigo 137 – (…) III – quanto às infrações que decorram direta e exclusivamente de dolo específico:
b) dos mandatários, prepostos ou empregados, contra seus mandantes, preponentes ou empregadores”.
[18] “Artigo 1048 – (…) §1º. Os profissionais de que trata o caput, no âmbito de sua atuação e no que se referir à parte técnica, serão responsabilizados, juntamente com os contribuintes, por qualquer falsidade dos documentos que assinarem e pelas irregularidades de escrituração praticadas no sentido de fraudar o imposto sobre a renda”.
[19] “Artigo 271 – A falsificação, material ou ideológica, da escrituração e dos seus comprovantes, ou da demonstração financeira, que tenha por objeto eliminar ou reduzir o montante de imposto sobre a renda devido, ou diferir o seu pagamento, submeterá o sujeito passivo a multa, independentemente da ação penal que couber”.