A prescrição intercorrente nas multas aduaneiras: é hora de o Carf rever sua súmula nº 11

Por Carlos Augusto Daniel Neto

Nesse texto iremos enfrentar um (aparentemente) velho tema – a prescrição intercorrente no processo administrativo –, para analisar a forma que a Súmula CARF nº 11 (“Não se aplica a prescrição intercorrente no processo administrativo fiscal ”) vem sendo indevidamente aplicada no Conselho Administrativo de Recursos processo administrativo fiscal. ) vem sendo indevidamente aplicada no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF), em especial em relação às multas aduaneiras.

Por prescrição intercorrente entende-se a perda do direito de a Administração seguir com um determinado processo administrativo em razão da sua demora em concluí-lo dentro de um determinado lapso de tempo.

O fundamento legal usualmente invocado para se pleitear a prescrição intercorrente no processo administrativo é a Lei nº 9.873/99, que estabelece que deve ser arquivado, de ofício ou a requerimento, o procedimento administrativo que decorra da ação punitiva da Administração Pública Federal, direta e indireta, no exercício do poder de polícia, objetivando apurar infração à legislação em vigor, caso fique paralisado por mais de três anos, pendente de julgamento ou despacho. Além disso, a mesma lei estabelece duas exceções claras à sua aplicação, quais sejam, casos de (i) infrações de natureza funcional e (ii) processos e procedimentos de natureza tributária.

Pois bem. Ao analisar todos os acórdãos que deram origem à Súmula CARF nº 11, , observa-se que todos eles tratavam de processos de cobrança de créditos tributários. Não se considerou, na formação da súmula, nenhum processo de créditos não tributários, que possuem regime de direito material próprio e que eram julgados pelo antigo 3º Conselho de Contribuintes, atualmente substituído pela 3ª Seção do CARF

Frise-se que a identificação quanto a natureza dos créditos analisados nos acórdãos precedentes é relevante, pois a segregação entre as diferentes espécies de processos julgados pelo CARF (ainda que haja uma uniformidade de rito), implica uma repercussão própria para a questão. A Súmula CARF n. 11 não existe por si só. Sua análise, portanto, obrigatoriamente (art. 489, §1º, V do CPC/2015) deve levar em consideração os precedentes que lhe deram origem e nenhum deles têm referência com direito aduaneiro, mas apenas com direito tributário.

Em suma, se por um lado a regra do art. 5º da Lei nº 9.873/98 deixa absolutamente clara a inaplicabilidade da prescrição intercorrente aos processos e procedimentos tributários, por outro ela não exclui do seu âmbito de incidência os processos e procedimentos não tributários, que também são julgados pelo rito do Decreto nº 70.235/72. Essa distinção entre as diferentes espécies de processos julgados no CARF foi, inclusive, adotada de maneira vinculante por meio da Portaria ME nº 260/2020[1], que disciplinou a proclamação do resultado do julgamento, restringindo o alcance do art. 19-E da Lei nº 10.522/02 (empate pró-contribuinte no CARF), ao negar sua aplicação às “demais espécies de processos de competência do CARF”.

Pois bem, ao analisarmos as sanções de caráter não tributário[2], pode-se verificar que, por exemplo, multas aduaneiras: i) se enquadram no art. 1º, caput, da Lei nº 9.873/98, por se tratar de uma sanção decorrente de uma ação punitiva da União, no exercício do poder de polícia aduaneira[3], sujeita a processo administrativo em caso de impugnação; logo, ii) tais sanções não poderiam se sujeitar a Súmula nº 11, e tampouco se encontram dentro da exceção estabelecida pelo art. 5º da lei nº 9.873/98, por serem processos de espécie distinta da tributária, como reforçado pela Portaria ME nº 260/20.

Não obstante, ao analisar acórdãos recentes do CARF tratando da prescrição intercorrente em matéria aduaneira (Ac. 3402-007.572, Ac. 3003-001.524 , Ac. 3401-007.889 , Ac. 3001-001.140 , Ac. 3302-008.775 , Ac. 3302-008.135 , Ac. 3201-004.062, Ac. 3301-004.800), todos se limitam a aplicar diretamente a Súmula nº 11, mas nenhum dos acórdãos chegou a analisar os fundamentos determinantes dos precedentes que originaram a súmula nº 11, sequer para verificar que não tratavam de sanções não tributárias, o que por si só já justificaria a distinção (distinguishing) na aplicação do enunciado sumular. Tampouco se debruçaram sobre a literalidade do art. 1º da Lei nº 9.873/98, ignorando a distinção entre processos tributários e não tributários, cuja subsunção parece ser de grande clareza.

Além disso, há que se aplaudir o Judiciário, em especial o TRF-3 e TRF-4, que tem lançado algumas luzes sobre a questão, e reconhecido a aplicação da Lei nº 9.783/98 aos processos administrativos sujeitos ao o rito do Decreto nº 70.235/72, que envolvem sanções de natureza aduaneira, a exemplo das multas decorrentes de interposição fraudulenta de terceiros na importação. Inclusive, vem reconhecendo que “Meros despachos ordinatórios de encaminhamento ou impulso do processo administrativo não configuram causa interruptiva do prazo prescricional”[4].

Cabe aos administrados suscitarem, em seus processos, essa necessária distinção na aplicação da Súmula CARF nº 11, para forçar o órgão a reanalisar de forma crítica a questão, reconhecendo a sua evidente inaplicabilidade aos créditos não tributários, e finalmente enfrentar, de maneira aberta e direta, a aplicabilidade do art. 1º, §1º, da Lei nº 9.873/98 e o alcance da exceção do seu art. 5º, para os processos sancionatórios não tributários de sua competência, para enfim construir uma jurisprudência técnica e crítica sobre a matéria. Caso contrário, as questões provavelmente seguirão sobrecarregando o Judiciário, para que este então promova uma análise adequada do ponto aqui colocado.

*Carlos Augusto Daniel Neto é professor do mestrado do CEDES, doutor em Direito Tributário, advogado especializado em direito tributário e aduaneiro e sócio do escritório Daniel & Diniz Sociedade de Advogados

[1] Ressalte-se que, em nosso entender, a referida Portaria veio estabelecer uma restrição infralegal ao art. 19-E, ao pretender supostamente regulamentar matéria que nunca demandou regulamentação (“proclamação de julgamento”), mas com a finalidade real de restringir a aplicação da nova regra de resolução de empates no CARF.

[2] Processos como aqueles que envolvem medidas antidumping, por não se tratar de sanções, não poderiam ser incluídos no alcance do art. 1º da Lei nº 9.783/98.

[3] Como exemplarmente colocado no Acórdão 3402-004.322, pelo Cons. Jorge Lock Freire, ao consignar que a sanção da interposição fraudulenta “se insere dentro do poder de polícia aduaneiro, com vistas a resguardar a economia e soberania nacional, e mesmo a livre e leal concorrência de mercado”. Ou a própria RFB, a exemplo da SC Cosit nº 38/2019, que reconhece expressamente que a aplicação de sanções administrativas aduaneiras é decorrência desse poder de polícia.

[4] TRF 4ª Região, Remessa Necessária Nº 5002013-95.2016.4.04.7203/SC, Rel. Juiz Federal FRANCISCO DONIZETE GOMES, julgado em 28/08/2019

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