Na coluna de hoje abordaremos um tema que, sob uma perspectiva eminentemente teórica, não apresenta maiores divergências, mas que, na prática, traz reiterados problemas: o dever de fundamentação das decisões proferidas no âmbito de processos administrativos.
Independente da natureza que se atribua a atividade exercida por tribunais administrativos — se atividade jurisdicional atípica ou se atividade tipicamente administrativa, revisora de lançamento — é lugar comum que as decisões veiculadas por tribunais administrativos devem ser fundamentadas. E isso decorre de inúmeras razões. Vejamos.
Primeiramente, porque assim garante a Constituição Federal, com status de cláusula pétrea, nos termos do seu artigo 93, inciso IX, assim como o artigo 37 do mesmo diploma, ao prever que a Administração deve se pautar pelos valores da impessoalidade e moralidade. Nessa mesma toada — e nem poderia ser diferente —, é o que determina, no âmbito dos processos administrativos federais, o artigo 31 do Decreto nº 70.235/72 [1], devidamente integrado [2] pelos artigos 2º e 50, §1º A da Lei nº 9.784/99 e pelo artigo 489, §1º do CPC.
Ademais, toda e qualquer decisão em processo administrativo deve ser fundamentada, pois só assim é possível realizar o seu controle externo (função macroscópica da garantia), bem com o seu controle interno (função microscópica do princípio), esse último pautado pela ideia de recorribilidade [3] [4].
Apesar de todas essas relevantes questões aqui sumarizadas, a respeito das quais — repita-se — não há maior divergência no plano teórico, o valor “motivação” é reiteradamente maltratado no âmbito da realização prática do direito, o que decorre de uma jurisprudência defensiva e, de certo modo, “econômica de esforços”, capitaneada pelos nossos Tribunais judiciais e repetida pelos tribunais administrativos. Aliás, foi exatamente por detectar esse sintomático problema na práxis que o legislador do CPC/2015 detalhou, de forma analítica, um rol exemplificativo de decisões imotivadas no §1º do seu artigo 489, de modo a tentar remediar essa patologia.
Pois bem. Um dos problemas recorrentemente detectados pelo legislador, a respeito da motivação, é aquele retratado no inciso IV do já referido §1º do artigo 489 do CPC (não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador), isto é, aquelas decisões que, pautadas pela distorcida ideia do “livre convencimento motivado” [5], deixa de analisar todos os fundamentos trazidos pelos litigantes ao longo do processo.
Em regra, a típica decisão a ser combatida por tal prescritivo é aquela que se apoia nas seguintes muletas retóricas: (1) o julgador não está obrigado a responder todas as questões desenvolvidas pelo jurisdicionado e (2) não há nulidade da decisão supostamente imotivada, pois não houve prejuízo à defesa do jurisdicionado. Ilustrando tal ponto, destaca-se a ementa do Acórdão Carf nº 1201-005.137 [6], in verbis:
“OBRIGATORIEDADE DE ANALISAR TODOS ARGUMENTOS CARREADOS AOS AUTOS. NULIDADE. NÃO OCORRÊNCIA.
Conforme jurisprudência sedimentada no Superior Tribunal de Justiça, já na vigência do CPC/2015, o julgador não está obrigado a responder a todas as questões suscitadas pelas partes quando já tenha encontrado motivo suficiente para proferir a decisão; é dever do julgador apenas enfrentar as questões capazes de infirmar a conclusão adotada na decisão recorrida.
CERCEAMENTO DE DIREITO DE DEFESA. NULIDADE. NÃO OCORRÊNCIA.
No âmbito do processo administrativo tributário prevalece o entendimento de que não há nulidade sem prejuízo. A nulidade não decorre especificamente do descumprimento de requisito formal, mas sim do efeito comprometedor do direito de defesa assegurado ao contribuinte pelo art. 5º, LV, da Constituição Federal. As formalidades não são um fim em si mesmas, mas instrumentos que asseguram o exercício da ampla defesa. A declaração de nulidade, portanto, é excepcional, só tendo lugar quando o processo não tenha tido aptidão para atingir os seus fins sem ofensa aos direitos do contribuinte.
(…)” (grifos nosso).
Nesse mesmo sentido destacamos, também exemplarmente, os Acórdãos nº 3401-010.480, 2402-009.896. Tais decisões se limitam a afirmar — de forma retórica — que o julgador não está obrigado a enfrentar todas as questões trazidas pelas partes se ele já tem motivo suficiente para sustentar sua conclusão. Em outros termos, todos os acórdãos aqui citados partem da mesma premissa: se a motivação adotada na decisão for suficiente para a sua conclusão, é despiciendo que o julgador analise os demais fundamentos desenvolvidos pelo administrado.
Em verdade, tal entendimento é um reflexo da jurisprudência judicial, em especial do Superior Tribunal de Justiça, conforme se observa do seguinte exemplar que retrata a posição daquela Corte:
“PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO EM MANDADO DE SEGURANÇA ORIGINÁRIO. INDEFERIMENTO DA INICIAL. OMISSÃO, CONTRADIÇÃO, OBSCURIDADE, ERRO MATERIAL. AUSÊNCIA.
(…)
2. O julgador não está obrigado a responder a todas as questões suscitadas pelas partes, quando já tenha encontrado motivo suficiente para proferir a decisão. A prescrição trazida pelo art. 489 do CPC/2015 veio confirmar a jurisprudência já sedimentada pelo Colendo Superior Tribunal de Justiça, sendo dever do julgador apenas enfrentar as questões capazes de infirmar a conclusão adotada na decisão recorrida.
(…)
5. Embargos de declaração rejeitados.”
(EDcl no MS n. 21.315/DF, relatora ministra Diva Malerbi, desembargadora convocada TRF 3ª Região, 1ª Seção, julgado em 8/6/2016, DJe de 15/6/2016.) (g.n.).
Tal precedente do STJ, inclusive, chega ao absurdo de afirmar que o sobredito artigo 489 do CPC/2015 reforçaria tal conclusão, todavia, sem desenvolver no voto uma única linha sequer a justificar tal assertiva. Ao assim proceder, tal decisão potencializa a carência motivacional que se visava combater, haja vista o teor do inciso I do §1o do artigo 489 do CPC [7].
Trata-se, em verdade, de típico exemplar do odioso “discurso de autoridade”, esse ainda desdobramento do LIVRE (ou seria libertino?) convencimento motivado. É fruto, ainda, de um ultrapassado sistema substitutivo/impositivo de jurisdição, em detrimento de um modelo cooperado [8] [9], pautado na figura do julgador solipsista [10] que, ensimesmado de suas convicções e dogmas, pode se dar ao luxo de fazer ouvidos moucos para o que as partes têm a dizer.
Em verdade, todas as citadas decisões ignoram não só as disposições constitucionais e infraconstitucionais aqui mencionadas, mas lição comezinha do Processo Civil: o principal interesse do vencedor em uma demanda é pela parte dispositiva do julgado, já que dimensiona o tamanho do seu êxito, enquanto para o sucumbente o ponto nevrálgico da decisão é a motivação, pois é ali que devem estar analiticamente expostas TODAS as razões para a sua derrota.
Amparado nas lições de Michele Taruffo, em obra seminal a respeito do tema, conclui-se que o objetivo do dever de motivação não se trata de um controle de mera logicidade ou validade formal do raciocínio do juiz, mas sim e principalmente de uma verificação de congruência das escolhas do juiz com os valores da sociedade [11], o que, acrescentamos nós, pressupõe que a decisão promovida seja fruto de um substancial diálogo entre o julgador e as partes envolvidas, em que o primeiro ouve com atenção e substancialmente responde as considerações dos interlocutores, de modo que a decisão proferida conteudisticamente sintetize esse debate construído de forma democrática e não se trate apenas de um formal monólogo imposto de forma autoritária.
Em suma, diante da tamanha importância da garantia processual aqui tratada, não pode a motivação continuar sendo alvo de muletas retóricas, como as aqui denunciadas.
[1] Art. 31. A decisão conterá relatório resumido do processo, fundamentos legais, conclusão e ordem de intimação, devendo referir-se, expressamente, a todos os autos de infração e notificações de lançamento objeto do processo, bem como às razões de defesa suscitadas pelo impugnante contra todas as exigências.
[2] Já defendi no âmbito acadêmico que a convocação subsidiária de disposições normativo-processuais integradoras, como é o papel desempenhado pela Lei nº 9.784/99 e pelo CPC no âmbito dos processos administrativos federais, deve ser empregada não só nas hipóteses de típica lacuna legislativa, mas em especial quando servir para potencializar garantias constitucionais do processo, tal como ocorre com a ideia de motivação das decisões. Nesse sentido: RIBEIRO, Diego Diniz. O CPC 2015 e seus reflexos no processo administrativo tributário. In: XIV Congresso Nacional de Estudos Tributários – Racionalização do sistema tributário. SOUZA, Priscila (org.). CARVALHO, Paulo de Barros (coord.). São Paulo: Noeses, 2017. pp. 219-240.
[3] Com isto o princípio assegura não só a transparência da atividade judiciária, mas também viabiliza que se exercite o adequado controle de todas e quaisquer decisões jurisdicionais. (BUENO, Cássio Scarpinella. Curso sistematizado de direito procesual civil. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 165.) (grifos nosso).
[4] A motivação também é um instrumento que se põe a serviço da já trabalhada ideia de recorribilidade — só é possível recorrer, convenhamos, de decisão judicial cujos fundamentos sejam conhecidos, permitindo-se, assim, o controle da atividade jurisdicional. (CONRADO, Paulo César. Introdução à teoria geral do processo civil. 2ª ed. São Paulo: Max Limonad, 2003. p. 71-72).
[5] Desenvolvido críticas certeiras a respeito do tema, vide: ConJur – Streck: A jurisprudência prêt-à-porter e o livre convencimento; ConJur – Contra claro texto do CPC, STJ reafirma o livre convencimento; ConJur – O livre convencimento só vale para as decisões e não para concursos?; ConJur – Dilema de dois juízes diante do fim do Livre Convencimento do NCPC; ConJur – Livre convencimento no NCPP: mas, já não apanha(ra)m o suficiente?
[6] Conselheiro relator Francisco Efigênio de Freitas Júnior, j. em 20/8/2021.
[7] Art. 489 (…).
I – se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida;
(…).
[8] Por todos: NUNES, Dierle. BAHIA, Alexandre. PEDRON, Flávio Quinaud. Teoria Geral do Processo. Salvador: JusPodivm, 2020. pp. 298/359.
[9] Torna-se, assim, imperativa, ao se pensar o sistema processual, a criação de mecanismos de fiscalidade ao exercício dos micropoderes exercidos ao longo do “iter” processual, além da criação de espaços de interação (comparticipação) que viabilizem consensos procedimentais aptos a ensejar, no ambiente real do debate processual, a prolação de pronunciamentos que representem o exercício de poder do participado, com a atuação e influência de todos os envolvidos, inclusive criando-se contramedidas (com as decorrentes da boa-fé processual e dos sistema recursal) aptas a impedir ou mitigar o aludido uso estratégico do processo. (THEODORO JÚNIOR, Humberto. NUNES, Dierle. BAHIA, Alexandre. PEDRON, Flávio Quinaud. Novo CPC: fundamentos e sistematização. 2ª ed. Salvador: JusPodivm, 2015. p. 301.).
[10] A respeito do tema: ConJur – Notícia de última hora: CNJ autoriza a cura de juiz solipsista!; ConJur – Opinião: A superação do modelo solipsista judicial; ConJur – Juiz, umbanda e solipsismo: são possíveis discursos de ódio?.
[11] P. 347.