A tributação da alienação indireta de ativos no Carf

Por Carlos Augusto Daniel Neto

Por Laura Kurth

Um dos temas mais badalados no Direito Tributário Internacional (além do onipresente Pilar 2), é a tributação do ganho de capital do não residente na alienação indireta de ativos. Nos últimos anos, diversas organizações internacionais — incluindo a Plataforma de Colaboração sobre Tributação (PCT), formada pela OCDE, ONU, FMI e Banco Mundial — publicaram estudos sobre este assunto, direcionados especialmente para países em desenvolvimento [1].

A transferência indireta de ativos consiste, basicamente, na alienação de participação societária de entidade no exterior, que detém direta ou indiretamente ativos localizados em outro país, que passarão a ser controlados direta ou indiretamente pela adquirente. E.g. uma empresa no Canadá aliena participação de uma empresa em Luxemburgo, que, por sua vez, controla os ativos “alvos” no Brasil.

A complexidade desse arranjo decorre de uma única operação resultar em transferências de ativos em diversos países. Utilizando o exemplo acima: a alienação realizada pelo residente canadense resultaria na (1) transferência direta da participação na empresa luxemburguesa; e (2) na transferência indireta dos ativos subjacentes brasileiros.

A tributação do ganho de capital do não residente em alienações indiretas significa que o país onde estão os ativos subjacentes (de interesse na operação) exerceria seu poder de tributar por representarem eles elemento de conexão suficiente entre o fato econômico e o seu território. Este é um fenômeno que vem crescendo em diversos países no exterior [2]. No entanto, conforme alerta o estudo publicado pelo PCT, esta tributação depende de legislação doméstica apropriada que estabeleça a incidência tributária [3].

Atualmente, a legislação brasileira não trata expressamente da tributação da alienação indireta de ativos. O que há é o artigo 26 da Lei nº 10.833/03, que determina que o adquirente (ou seu procurador, se não residente), é responsável pelo recolhimento do IRRF incidente sobre o ganho de capital auferido pelo não residente que alienar bens localizados no Brasil. Na literalidade do dispositivo, o ganho de capital auferido pelo não residente neste tipo de operação não está sujeito ao IRRF, pois, na operação em análise, o bem juridicamente alienado não é o ativo localizado no Brasil, mas a participação societária da empresa domiciliada no exterior.

Para que o ganho de capital do não residente em uma operação de alienação indireta esteja sujeito ao IRRF no Brasil, o Fisco teria que desconsiderar o negócio jurídico realizado pelas partes e tratá-lo como uma alienação direta de ativos localizados em território nacional, o que demanda a inequívoca comprovação de vícios como dolofraude ou simulação.

Este entendimento sobre a necessidade de comprovação de atos ilícitos para a desconsideração do negócio jurídico privado, pela autoridade fiscal, foi recentemente reforçado pelo STF na ADI 2.446 em 11/4/2022, quando se julgou constitucional o parágrafo único do artigo 116 do CTN. Nos termos do voto da relatora, ministra Carmen Lúcia, a “desconsideração autorizada pelo dispositivo está limitada aos atos ou negócios jurídicos praticados com intenção de dissimulação ou ocultação do fato gerador“, sem vedar planejamentos tributários legítimos.

A despeito da ausência de regra específica no direito doméstico, o Carf já analisou pelo menos três casos de alienação indireta, decorrentes da desconsideração do negócio jurídico para cobrar IRRF sobre o ganho de capital do não residente. Em dois deles: Caso Mineração Tijuca (acórdão 2202-00.346 [4]) e Caso Cosan (acórdão 2201 002.666 [5]), o tribunal confirmou a alegação das autoridades fiscais no sentido de ter havido simulação por parte do contribuinte.

Por outro lado, recentemente foi julgado o Caso CPFL (acórdão 2402-011.061 [6]), em que o entendimento do Fisco foi novamente confirmado, mas, dessa vez, permitindo a desconsideração do negócio jurídico sem fundamento em ilicitudes. Vejamos adiante, com maior vagar, os precedentes mencionados.

No Caso Mineração Tijuca, os sócios brasileiros venderam uma empresa brasileira, Mineração Marulis Ltda. (“Marulis”), que era titular de uma jazida de calcário relevante, a uma entidade uruguaia por pouco mais de R$ 1 milhão. No dia seguinte, a empresa uruguaia foi vendida a um comprador brasileiro, a “Mineração Tijuca” por R$ 30 milhões, resultando na transferência indireta da Marulis e sua jazida de calcário. A Mineração Tijuca foi autuada para pagar o IRRF, acrescido de multa qualificada de 150%.

O Carf endossou a existência de simulação e que, portanto, a operação deveria ser considerada uma alienação direta entre os sócios originários da Marilus e a Mineração Tijuca. Contudo, como os sócios originários da Marulis eram residentes no Brasil, o imposto sobre o ganho de capital deveria ser cobrado de tais sócios, na condição de alienantes, e não a Mineração Tijuca. Como resultado, embora comprovada a simulação, o lançamento foi cancelado pelo Carf por erro na sujeição passiva.

O Caso Cosan tratou da alienação indireta da empresa brasileira “Esso”, por empresas holandesas do Grupo Exxonmobil, para outra empresa brasileira, do Grupo Cosan. De acordo com o Fisco, para viabilizar uma alienação indireta da “Esso” foram interpostas novas entidades holandesas entre as empresas holandesas do Grupo Exxonmobil e a “Esso”. Tais entidades foram constituídas e encerradas em um período de dois meses. A empresa do Grupo Cosan foi autuada para pagar o IRRF, acrescido de multa qualificada de 150%.

Por voto de qualidade, o Carf manteve o lançamento, afirmando que “devem ser desconsideradas as interposições de empresas no exterior, por meio de conduta planejada, para simular uma situação diferente da real alienação“. Atualmente, a Cosan discute esse lançamento no Judiciário, em sede de Embargos à Execução, que se encontra em fase de perícia [7].

Feitas as breves considerações sobre os Casos Mineração Tijuca e Cosan, passamos então à análise do recente Caso CPFL.

Este caso envolveu a alienação indireta de duas empresas brasileiras de energia eólica (SIIF Energies Brasil Ltda e SIIF Desenvolvimento de Projetos Eólicos Ltda) por residentes domiciliados em diversos países no exterior, como Estados Unidos, Reino Unido e Luxemburgo. Tais investidores estrangeiros alienaram a uma empresa brasileira do Grupo CPFL a totalidade da participação na empresa espanhola (Jantus SL), que controlava as duas empresas brasileiras de energia eólica.

A empresa adquirente do Grupo CPFL foi atuada para pagar IRRF, acrescido de multa de ofício de 75%. As autoridades fiscais alegaram que “a JANTUS SL não passava de uma empresa de caixa postal sem qualquer empregado ou mesmo dirigente e somente tinha em seus balancetes os investimentos nas empresas sediadas no Brasil“. A autuação não apontou dolo, fraude ou simulação, mas somente o entendimento de que “a essência da operação se tratou de aquisição das duas empresas brasileiras, e não de uma empresa espanhola“.

Outro argumento utilizado pelas autoridades fiscais foi de que houve um planejamento tributário abusivo por meio de treaty shopping, com a constituição de um holding que funcionaria como empresa-veículo. De acordo com suas alegações, os investidores estrangeiros (não domiciliados na Espanha) teriam constituído uma holding espanhola para controlar as empresas brasileiras apenas com o intuito de permitir, com base no Tratado para Evitar Dupla Tributação entre Brasil e Espanha, que eventual venda estivesse fora da competência tributária dos dois países.

A despeito da ausência de evidências de ilegalidade e de regra antielisiva específica, o Carf, por voto de qualidade, negou provimento ao recurso do contribuinte, por entender que formalidades legais não garantem o afastamento da incidência tributária, conforme se observa de trecho da ementa abaixo:

“PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO ABUSIVO. NEGÓCIO JURÍDICO TUTELADO. FINALIDADE TRIBUTÁRIA. DESCONSIDERAÇÃO. POSSIBILIDADE.
Tão somente o fato das operações societárias sucederem-se dentro das formalidades legais não garante, por si só, o afastamento da incidência tributária supostamente tutelado pela respectiva operação. Afinal, sem prejuízo da transação comercial propriamente, bem como dos demais efeitos jurídicos que lhes são próprios, ditos negócios poderão ser desconsiderados, para fins do restabelecimento da incidência tributária, deles excluídos indevidamente.”

Em sentido oposto ao entendimento prevalecente, o relator destacou que, como a Fiscalização não apontou a ocorrência de fraude, dolo e/ou simulação por parte do contribuinte, o negócio jurídico não poderia ter sido tratado como uma alienação direta de ativos no Brasil. Ele detalhou a sucessão cronológica dos acontecimentos para demonstrar que a holding Jantus fora criada em 2006, por terceiros não relacionados ao Grupo CPFL, e que apenas em 2011 houve a sua aquisição, afastando qualquer relação entre a sua constituição na Espanha e a sua aquisição pelo Grupo CPFL.

Além disso, o fato de a Jantus não ter empregados está em linha com a sua condição não operacional e, ainda que entendida como uma empresa-veículo, isso não torna a estrutura ilegal. Há diversas decisões da CSRF no sentido de que o simples emprego de holdings em estrutura de aquisição de investimento não basta para caracterizar fraude ou seu intuito, ou qualquer outro ilícito (acórdãos 9101-005.872 e 9101-005.876) — ora, sequer faz sentido exigir que uma holding tenha funcionários, visto que o seu escopo social é deter investimentos em seu patrimônio.

É importante ressaltar que, ao analisar o Caso CPFL, não restam dúvidas de que o objetivo com a aquisição da holding Jantus era deter o controle das empresas brasileiras subjacentes. Contudo, para que houvesse a incidência do IRRF no ganho de capital auferido pelos alienantes, uma das seguintes condições precisaria estar presente:

(1) o contribuinte teria que ter praticado atos ilegais (dolo, fraude ou simulação) que permitissem a desconsideração do negócio jurídico; ou

(2) a legislação brasileira teria que prever a incidência do IRRF sobre o ganho de capital do não residente auferido em alienações indiretas à época do fato gerador.

Nenhuma delas, entretanto, restou atendida, evidenciando a diferença desse caso em relação aos anteriores.

Em 2021, houve uma tentativa inédita de mudança legislativa para prever a tributação do ganho de capital do não residente auferido em alienações indiretas. Por meio do Projeto de Lei (PL) 2.337/2021, o governo federal propôs a inclusão de artigo que estabelecia que o residente ou domiciliado no exterior que alienasse indiretamente ativos localizados no país ficaria sujeito à tributação do ganho de capital.

Para que uma transação fosse considerada uma alienação indireta tributável na proposta do PL 2.337/2021, dois testes teriam que ser cumpridos: (1) o não residente teria que transferir ao menos 10% da participação na entidade estrangeira; e (2) o valor de mercado dos ativos brasileiros indiretamente transferidos teriam que (a) corresponder a 50% ou mais do valor de mercado da entidade estrangeira; ou (b) ser superior a US$ 100 milhões.

O PL 2.337/2021 foi aprovado pela Câmara dos Deputados, mas excluiu a previsão acima já nas primeiras emendas. Se uma previsão semelhante à proposta original do PL 2.337/2021 existisse à época do fato gerador de qualquer um dos três casos do Carf analisados neste artigo, o IRRF seria devido sobre o ganho de capital do alienante não residente, independentemente de qualquer evidência de ilegalidade.

A adoção desse tipo de previsão é uma questão de política fiscal e precisa ser debatida no Congresso Nacional. Na medida em que o Brasil tributa o ganho de capital do não residente apenas em alienações diretas, o país fica mais exposto a estratégias envolvendo a interposição de entidades no exterior. Desta forma, a expansão do escopo de incidência do IRRF promoveria uma neutralidade entre transferências diretas e indiretas.

Além disso, a adoção de uma previsão específica com critérios objetivos pode ser benéfica aos contribuintes do ponto de vista da segurança jurídica, reduzindo as chances de questionamento por parte das autoridades fiscais. Por outro lado, dificuldades na apuração e recolhimento do imposto, incluindo o cálculo do custo fiscal e ganho de capital, podem criar entraves na aplicação de uma regra dessa natureza.

No âmbito internacional, é inegável que a tributação do ganho de capital se tornou um fenômeno crescente. Não à toa, países latino-americanos (como Chile e Peru), os gigantes asiáticos (China e Índia) e países desenvolvidos (como Austrália e Canadá) já tributam esse tipo de operação.

É possível que, em breve, o debate sobre a tributação do não residente em alienações indiretas, do ponto de vista da política fiscal, fique mais intenso no Brasil. Mas, enquanto isso, no Carf, a discussão que deverá ser enfrentada se refere aos requisitos para desconsideração do negócio jurídico do contribuinte.


[1] Platform for Collaboration on Tax (PCT): The Taxation of Offshore Indirect Transfers Toolkit. Disponível em https://www.oecd.org/tax/taxation-of-offshore-indirect-transfers.htm. Outros trabalhos relevantes sobre o assunto foram publicados pela Oxfam (ALENCAR, Henrique; NECK, Judith van. Capital gains taxes and indirect offshore transfers. In: Finance Uncovered, Oxfam, 2020. Disponível em: <https://policy-practice.oxfam.org/resources/capital-gains-taxes-and-indirect-offshore-transfers-621031/>) e pelo Intergovernmental Forum on Mining, Minerals, Metals, and Sustainable Development (READHEAD, Alexandra; TAQUIRI, Jaqueline. Protecting the right to tax mining income: tax treaty practice in mining countries. IGF, 2021. Disponível em: <https://www.iisd.org/system/files/2021-11/protecting-tax-income-mining-countries.pdf>).

[2] KANE, Mitchell. Offshore transfers: policies and divergent views. In: Bulletin for International Taxation. Amsterdam: IBFD, 2018, p. 331.

[3] Platform for Collaboration on Tax (PCT): The Taxation of Offshore Indirect Transfers Toolkit, pg. 7.

[4] Publicado em 30/06/2010.

[5] Publicado em 02/04/2015.

[6] Publicado em 03/04/2023.

[7] Embargos à Execução Fiscal nº 5055620-39.2020.4.02.5101, em trâmite na 12ª Vara Federal de Execução Fiscal do Rio de Janeiro.

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