Por João Henrique Gonçalves Domingos
Tese fixada pelo STF no Tema 725
Passados cinco anos exatos da primeira análise do tema nesta coluna Direto do Carf, em 3 de abril de 2019, [1] momento no qual apareciam os primeiros acórdãos com citação aos julgamentos da ADPF n 324 e do RE 958.252 pelo STF, voltaremos a tratar na coluna de hoje de um tema riquíssimo e que dá ensejo a inflamadas discussões [2]: o da terceirização das relações do trabalho e seus reflexos tributários.
A ideia é abordar esse tema a partir de um cotejo entre os precedentes do STF e do Carf (nos últimos cinco anos) para a matéria.
Uma premissa fundamental para a análise a ser aqui feita é o julgamento da ADPF nº 324 e do RE nº 958.252 (Tema 725), oportunidade em que o STF declarou ser constitucional a terceirização trabalhista, tanto das atividades meio, como também das atividades fins, resultando na seguinte tese:
“É lícita a terceirização ou qualquer outra forma de divisão do trabalho entre pessoas jurídicas distintas, independentemente do objeto social das empresas envolvidas, mantida a responsabilidade subsidiária da empresa contratante.”
Em 2020 também houve o julgamento conjunto da ADC nº 48 e da ADI nº 3.961, quando se reconheceu a constitucionalidade da Lei nº 11.442/2007 e, por fim, em 2021 houve o julgamento da ADI nº 5.625, que fixou a tese pela constitucionalidade do contrato civil de parceria entre salões de beleza e profissionais do setor, não podendo, contudo, haver dissimulação. [3]
Apesar desses precedentes pretorianos, a discussão ainda está longe de terminar, na medida em que há casos em que o arranjo fático é qualificado pelo contribuinte como terceirização, mas é tratado pela fiscalização em lançamento como “pejotização”, a qual é aqui entendida como o ato de substituir, de forma fraudulenta, a contratação de pessoas físicas e com incidência de encargos previdenciários, por pessoas jurídicas, sob pretensa relação de direito privado.
Convém nesse instante abrir um parêntese para estabelecer as diferenças entre terceirização e “pejotização”, partindo, ainda, do pressuposto de que todas as atividades de uma determinada pessoa jurídica podem ser delegadas a outra pessoa jurídica, nos termos da Lei nº 13.429/2017 e como já decidido pelo STF.
Desse modo, a “pejotização” se caracteriza pela contratação sob o regime de direito privado de uma pessoa jurídica para a realização de uma atividade que, em verdade, está sendo realizada por alguém (pessoa física) que possui relação de subordinação e habitualidade, própria do regime jurídico-trabalhista, com seu contratante, o que se dá com um intuito fraudulento: o de burlar a legislação, seja ela trabalhista e/ou fiscal.
O principal reflexo tributário acerca da “pejotização” decorre do intuito dessa estrutura em afastar incidências exacionais próprias da relação de emprego, com o retorno aos sócios do dinheiro economizado por meio da distribuição de dividendos.
Nesse contexto, a terceirização deve corresponder a uma situação real, onde a prestadora do serviço exerce, por conta própria, a atividade contratada, com alocação de seus funcionários, sem relação de subordinação e habitualidade face ao contratante, tendo por obrigação a consecução de uma atividade previamente estabelecida em contrato firmado pelas partes e sujeita ao regime jurídico do direito privado. Percebe-se, portanto, que a questão é de caráter fático-probatório.
Como o STF tem aplicado a tese do Tema 725
O STF, por sua vez, tem sido enfático na defesa da tese veiculada no já citado Tema 725, ou seja, reconhecendo a validade dos contratos firmados sob a égide do direito privado, partindo do pressuposto quanto a existência de liberdade negocial por parte dos agentes econômicos e o primado da livre iniciativa, conforme previsto no artigo 170 da CF.
A título de exemplo, destaca-se a decisão da 1ª Turma do STF no Agravo Regimental na Reclamação nº 58.853, caso de relatoria do ministro Luís Roberto Barroso. Aqui se alegava a existência de fraude à terceirização em relação a atividades de engenharia. Ao decidir pela idoneidade da terceirização, o relator do caso destacou a existência de questões fáticas no caso a sustentar a incidência do Tema 725 do STF, o que se deu nos seguintes termos:
Inexiste na decisão reclamada qualquer evidência de que tenha havido coação na contratação celebrada. Há, ademais, referência à realização de um outro negócio com terceiro, à participação em outras sociedades e ao ajuizamento de ação na Justiça comum, na qual autor “(…) pretende a obtenção de escritura pública de um imóvel que alega ser o resultado de parte do pagamento de valores oriundos de obrigação ajustada no contrato de prestação de serviços referente a remuneração da renda variável de 1% sobre o lucro líquido desde 2015″.
Tratando do tema, mas já sob o viés dos reflexos tributários, o ministro Alexandre de Moraes, na Reclamação nº 64.608, por meio de decisão monocrática, deu provimento à reclamação apresentada com o fito de afastar decisão da DRJ que manteve incidências tributárias objeto de lançamento de ofício em caso cuja acusação seria calcada na figura da pejotização. [4]
Ao assim concluir, também amparado nas premissas fáticas do caso, o relator reforçou que o texto constitucional “não permite, ao poder estatal — executivo, legislativo ou judiciário — impor um único e taxativo modelo organizacional para as empresas, sob pena de ferimento aos princípios constitucionais da livre iniciativa e livre concorrência” e, com isso, cassou o acórdão proferido pela DRJ no processo administrativo nº 16327.721202/2021-89, julgando procedente a impugnação então interposta pelo contribuinte.
Os precedentes do Carf para a matéria
De outro lado, questões da mesma natureza têm sido submetidas ao Carf. Com relação à atividade médica, o Acórdão de nº 2402-012457, [5] por exemplo, afastou a autuação pautada pela alegação de pejotização partindo das seguintes circunstâncias fático-probatórias no caso concreto:
(i) não houve constrangimento ou coação para imposição pelo tomador na adoção do modelo de terceirização;
(ii) ficou comprovada a liberdade e a autonomia dos médicos contratados, inclusive para fins de definição de agenda, [6] muito embora tais profissionais tivessem que cumprir um regimento mínimo para o bom funcionamento do hospital;
(iii) as empresas terceirizadas existiam antes de serem contratadas pelo tomador dos serviços, [7] bem como emitiram notas fiscais para outros tomadores durante o período fiscalizado;
(iv) houve a comprovada retenção, por parte do tomador, de um percentual dos honorários contratados a título de repasse com custos ambulatoriais, o que seria inadmissível na hipótese de uma relação de emprego.
Em outro caso envolvendo sociedades médicas, o Acórdão nº 2402-012439, [8] da mesma turma julgadora, aduz que para se considerar a relação como empregatícia seria necessário demonstrar que os serviços foram prestados por pessoa física, mediante subordinação e habitualidade, o que não teria ocorrido no caso julgado, já que os serviços teriam sido prestados com eventualidade e onerosidade por pessoa jurídica, sob o regime de direito privado.
No acórdão nº 2201.011057, [9] por maioria de votos, o Carf concluiu que é possível a terceirização das atividades fins, exceto quando preenchidos os requisitos da legislação trabalhista, sublinhando que o ônus de referida prova é da autoridade lançadora.
Tal acórdão promove, ainda, uma relevante distinção entre subordinação subjetiva, típica da relação de emprego, e a subordinação jurídica, também denominada estrutural, que decorre da relação contratual existente entre o tomador e o prestador do serviço. [10]
Cita-se também o acórdão de nº 2401-011244, [11] oportunidade em que o tribunal decidiu pela necessidade de a fiscalização demonstrar a existência de relação de emprego entre o prestador e a tomador do serviço, ônus probatório esse que não teria sido cumprido pela fiscalização, mesmo no caso citado, onde os serviços prestados foram destinados exclusivamente à contratante.
Conclusão
Diante desse mosaico jurisprudencial, é possível perceber que o Carf tem seguido um padrão decisório: o de aplicar a tese veiculada pelo STF no tema 725, só se distanciando do entendimento ali veiculado naquelas hipóteses em que resta comprovado inexistir uma relação de terceirização, mas sim uma substancial relação empregatícia, demarcada pela habitualidade e subordinação, nos termos do artigo 3º da CLT, [12] acusação essa que demanda prova, cujo ônus, ainda segundo a jurisprudência do Tribunal administrativo, é da autoridade lançadora.
Apesar dessa uniformidade, convém alertar que, para fins de integridade da sua jurisprudência (artigo 926 do CPC), é fundamental que o Tribunal dê um passo além na discussão, para que também atribua uma mesma valoração jurídica para provas idênticas a respeito do tema aqui analisado, de modo a evitar que uma eventual divergência na valoração probatória possa implicar uma indevida subversão do tema 725 do STF.
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[1] Carf analisa fenômeno da pejotização e sua tributação (conjur.com.br). Acessado em 01.04.2024.
[2] Em especial entre os defensores de uma maior liberdade contratual e aqueles que entendem existir uma verdadeira desmobilização das regras trabalhistas e, em ultima ratio, também das regras tributárias.
[3] AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI FEDERAL N. 13.352, DE 27 DE OUTUBRO DE 2016, CONHECIDA COMO LEI DO SALÃO-PARCEIRO. CONSTITUCIONALIDADE.
- São válidos os contratos de parceria celebrados entre trabalhador do ramo da beleza (cabeleireiro, barbeiro, esteticista, manicure, pedicure, depilador e maquiador), denominado “profissional-parceiro”, e o respectivo estabelecimento, chamado “salão-parceiro”, em consonância com as normas contidas na Lei federal n. 13.352/2016.
- A higidez do contrato é condicionada à conformidade com os fatos, de modo que é nulo instrumento com elementos caracterizadores de relação de emprego.
- Estando presentes elementos que sinalizam vínculo empregatício, este deverá ser reconhecido pelo Poder Público, com todas as consequências legais decorrentes, previstas especialmente na Consolidação da Leis do Trabalho.
- Pedido julgado improcedente.
(ADI 5625, Relator: EDSON FACHIN, Relator p/ Acórdão: NUNES MARQUES, Tribunal Pleno, julgado em 28-10-2021, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-059 DIVULG 28-03-2022 PUBLIC 29-03-2022).
[4] Nesse caso um dos dirigentes de determinada pessoa jurídica criou uma empresa com o fito de prestar determinadas atividades administrativas de menor complexidade para a PJ com a qual possuía vínculo, sendo este o objeto da terceirização.
[5] Relator Rodrigo Rigo Pinheiro.
[6] Apesar de se reconhecer no voto a existência de uma certa administração dessa agenda pelo hospital contratante, a conclusão foi de qual “ingerência” não desnaturaria a relação de terceirização, já que tal atuação do tomador do serviço tinha por fito evitar que diferentes médicos terceirizados agendassem, ao mesmo tempo, o uso de um mesmo espaço do hospital contratante.
[7] Algumas, inclusive, antes da própria existência do hospital contratante.
[8] Assim ementado:
PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS POR INTERMÉDIO DE PESSOA JURÍDICA. POSSIBILIDADE. LIMITES. CARACTERIZAÇÃO DA RELAÇÃO DE EMPREGO. NECESSIDADE.
Tratando-se de exigência fiscal embasada na caracterização de segurados empregados, imprescindível a caracterização dos pressupostos fáticos habitualmente existentes nas relações entre empregadores e segurados empregados, quais sejam: serviços prestados por pessoa física, subordinação, habitualidade / não eventualidade e onerosidade.
Não tendo a fiscalização demonstrado a caracterização da relação empregatícia para a constituição do crédito tributário, impõe-se o cancelamento do mesmo.
(PAF n. 19839.010151/2010-21; Relator Gregorio Rechmann Junior; Recurso Voluntário; Sessão: 17/01/2024; v.u.).
[9] Redator designado para o voto Conselheiro Douglas Kakazu Kushiyama.
[10] De forma mais aprofundada nessa distinção, assim é o teor do voto:
A primeira se observa quando o empregador, no nosso caso o contratante da prestação de serviços conduz, ordena, determina a prestação de serviços. É a chamada subordinação subjetiva onde o prestador de serviços, o trabalhador, recebe ordens específicas sobre seu trabalho, assim entendida a determinação de como trabalhar, de como executar as tarefas a ele, trabalhador, atribuídas. É a subordinação típica, aquela
presente no modelo fordista-taylorista de produção.
Modernamente, encontramos o segundo modelo de subordinação, erroneamente chamado por muitos de subordinação jurídica. Não se pode admitir tal denominação, quanto mais a afirmação que esta subordinação decorre do contrato. Ora, qualquer contrato imputa direitos e deveres e por certo, desses decorre subordinação jurídica, posto que derivada de um negócio jurídico que atribui obrigações.
[11] Conselheiro Relator Wilsom de Moraes Filho.
[12] O que não significa dizer que a fiscalização declara a existência de uma relação de emprego, sob pena, inclusive, de uma indevida usurpação de competência. O que a fiscalização faz é interpretar os fatos fiscalizados a partir dos critérios estabelecidos na legislação trabalhista (habitualidade e subordinação), em especial o disposto no art. 3º da CLT. Tratando desse ponto, mas partindo da análise de outro tema, destacamos o preciso texto de Ludmila Mara Monteiro de Oliveira, também para essa coluna: De olhos bem fechados? A ADPF nº 647 e o Carf (conjur.com.br). Acessado em 01.04.2024.