Contribuição adicional para o FAE e a neutralização dos riscos para o trabalhador

Por Diego Diniz Ribeiro

João Henrique Gonçalves Domingos

Mayara Gregoruti

A contribuição para o Financiamento de Aposentadorias Especiais (FAE) é um adicional pago pelas empresas para o custeio de aposentadorias especiais de seus trabalhadores, particularmente dos segurados (1) portadores de deficiência e daqueles que (2) exerçam atividades com efetiva exposição a agentes prejudiciais à saúde, nos termos do artigo 201, §1º da Constituição.

Por sua vez, o artigo 195, inciso I da CF prescreve que a seguridade social será financiada pela sociedade como um todo, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios, e das contribuições do empregador e da empresa que incidirão sobre a folha de salários e demais rendimentos, a receita ou faturamento, o lucro, além dos segurados da previdência, receita de concursos de prognósticos e do importador de bens e sobre bens e serviços.

Para o financiamento da aposentadoria especial a Lei nº 8.213/91 estabeleceu em seu artigo 57, §6º e §7º, que esse benefício será financiado com recursos provenientes da contribuição de que trata o artigo 22, II da Lei nº 8.212/91, cujas alíquotas serão acrescidas de percentuais a depender do tipo de atividade exercida pelo segurado, sendo permitida a concessão de aposentadoria especial após 15, 20 ou 25 anos de contribuição.

A tese fixada pelo Supremo Tribunal Federal no Tema 555 e seus reflexos tributários

Em sede de repercussão geral, o STF proferiu decisão vinculante por meio do ARE 664.335 (Tema 555), oportunidade em que fixou as seguintes teses:

“ I – O direito à aposentadoria especial pressupõe a efetiva exposição do trabalhador a agente nocivo à sua saúde, de modo que, se o EPI for realmente capaz de neutralizar a nocividade não haverá respaldo constitucional à aposentadoria especial;

II – Na hipótese de exposição do trabalhador a ruído acima dos limites legais de tolerância, a declaração do empregador, no âmbito do Perfil Profissiográfico Previdenciário (PPP), no sentido da eficácia do Equipamento de Proteção Individual – EPI, não descaracteriza o tempo de serviço especial para aposentadoria.”

Com suposto respaldo nas teses supracitadas, a Receita Federal, por meio do Ato Declaratório Interpretativo RFB nº 02/19, passou a interpretar a questão da neutralização com base na utilização de equipamento de proteção individual (EPI).  Segundo a Receita, a contribuição adicional ao FAE é devida independentemente de adoção pela empresa de medidas aptas a neutralizar[1] o grau de risco do trabalhador [2].

Referida questão chegou ao Carf, onde a discussão preponderantemente gravita em torno do seguinte ponto: a ação do contribuinte no sentido de neutralizar ou mitigar o risco aos trabalhadores é suficiente para afastar o adicional à contribuição previdenciária destinada ao FAE, quando esse mesmo contribuinte declara no Perfil Profissiográfico Previdenciário (PPP) a exposição do trabalhador a limites superiores àqueles estabelecidos pela lei?

Uma primeira corrente no Carf é no sentido de afastar a incidência do referido adicional naqueles casos em que há efetiva comprovação da neutralização do risco com base no uso dos EPIs, não bastando a mera indicação pelo contribuinte de tais itens no PPP [3]. Tal corrente pauta-se na ideia de proteção limitada do segurado, ou seja, a depender da comprovada efetividade ou não do EPI, caso em que o deslinde da controvérsia está no plano probatório.

Por sua vez, a segunda corrente é no sentido de sempre existir o dever de pagar o adicional para a aposentadoria especial, independentemente de qualquer medida adotada pelo contribuinte, conclusão essa que se desdobra em duas vertentes, sendo elas: (1) porque os empregados sujeitos ao ambiente prejudicial à saúde sempre fazem jus à tal aposentadoria especial ou (2) porque parte do pressuposto apriorístico de que inexistem meios tecnicamente eficazes de neutralização ou mitigação dos danos causados pela exposição do trabalhador. Essa corrente, por turno, parte da existência de uma proteção ilimitada do segurado, i.e., independentemente de o EPI elidir a nocividade a que estão submetidos os empregados, a aposentadoria especial continuaria sendo devida, o que torna a solução da questão um problema hermenêutico e não probatório.

Atualmente, prepondera no Carf a corrente que entende que a exposição do trabalhador a agente nocivo acima dos limites legais de tolerância, mesmo com o fornecimento de EPI, implica a incidência do adicional da contribuição previdenciária ao FAE [4]. Nesse sentido, destaca-se exemplarmente o Acórdão Carf nº 2301-010.636, de relatoria da conselheira Fernanda Melo Leal e assim ementado:

“LANÇAMENTO FISCAL. ADICIONAL PARA CUSTEIO DE APOSENTADORIA ESPECIAL.
A existência de segurados que prestam serviço em condições especiais e prejudiciais à saúde ou à integridade física obriga a empresa ao recolhimento do adicional para financiamento do benefício da aposentadoria especial, nos termos do art. 57, § 6o, da Lei nº 8.213/91 c/c art. 22, inciso II, da Lei nº 8.212/91.

ADICIONAL DESTINADO AO FINANCIAMENTO DO BENEFÍCIO DE APOSENTADORIA ESPECIAL. PRÉVIA INSPEÇÃO ‘IN LOCO’. DESNECESSIDADE.

A legislação tributária não impõe a verificação ‘in loco’ para a constatação da efetiva exposição dos empregados aos agentes nocivos, como requisito necessário, indispensável e prévio à constituição do crédito tributário relativo ao adicional destinado ao financiamento do benefício de aposentadoria especial.

AGENTE NOCIVO RUÍDO ACIMA DO LIMITE LEGAL. INEFICÁCIA DE UTILIZAÇÃO DE EPI. EXIGIBILIDADE DO ADICIONAL DE CONTRIBUIÇÃO.

As empresas que tenham empregados expostos ao agente nocivo ‘ruído’ acima dos limites de tolerância não têm elidida, pelo fornecimento de EPI, a obrigação de recolhimento da Contribuição Social para o Financiamento da Aposentadoria Especial.

Hipótese em que se aplica entendimento esposado na Súmula 9 da Turma Nacional dos Juizados Especiais Federais e de julgado do pleno do STF no ARE 664335, sessão 09/12/2014, em sede de Repercussão Geral.”

Interessante destacar nesse acórdão que o Carf parte do pressuposto que o precedente vinculante do STF, exarado no Tema 555, daria lastro para a posição alcançada, i.e., de que o simples fornecimento de EPI não afastaria a incidência do adicional previdenciário, ou seja, na linha da Súmula 09 da Turma Nacional de Uniformização dos Juizados Especiais Federais [5]

Tal posição, todavia, merece uma análise crítica.

Crítica à jurisprudência dominante do Carf para a matéria

A crítica a ser feita à linha jurisprudencial predominante no Carf é no sentido de haver uma distorção em relação a ratio do precedente vinculante formado pelo STF. Explicamos.

Ao se analisar tal precedente o primeiro fundamento relevante que dele se desdobra é no sentido de que simples fornecimento do EPI pelo empregador não exclui a hipótese de exposição do trabalhador aos agentes nocivos à saúde, na linha do voto do Relator do caso no STF, o ministro Luiz Fux. Essa conclusão, entretanto, não coloca o citado relator ao lado daqueles que defendem a proteção ilimitada do empregado. Ao contrário, pois o voto condutor do citado ministro assim prevê:

“Conforme será demonstrado, entendemos que os argumentos que militam a favor da verificação da nocividade laboral para caracterizar o direito à aposentadoria especial – desde que presentes todos os requisitos que serão justificados -, constituem a melhor interpretação do instituto à luz da Constituição da República.”

Segundo a posição do relator, acompanhado pela maioria dos seus pares [6], o mero risco potencial existente no ambiente em que inserido o segurado não seria suficiente para ensejar o direito à aposentadoria especial quando tal risco é comprovadamente neutralizado em concreto, ou seja, em explícita oposição ao teor da citada súmula 09 da Turma Nacional de Uniformização dos Juizados Especiais Federais. Daí, inclusive, a primeira tese fixada pelo STF nesse caso, no seguinte sentido:

“I – O direito à aposentadoria especial pressupõe a efetiva exposição do trabalhador a agente nocivo à sua saúde, de modo que, se o EPI for realmente capaz de neutralizar a nocividade não haverá respaldo constitucional à aposentadoria especial;” (g.n.).

Acontece que, ao se analisar o particular caso em concreto sob julgamento, o STF decidiu que, na específica hipótese de ruídos, a submissão do trabalhador a tal agente nocivo não seria neutralizada apenas com materiais de EPI antirruído, uma vez que nessa situação os danos ao trabalhador não se limitariam a problemas de audição, mas também implicariam disfunções cardiovasculares, digestivas e psicológicas. Daí a razão de ser da segunda tese (com caráter transcendente [7]) fixada pelo Pretório Excelso, in verbis:

“II – Na hipótese de exposição do trabalhador a ruído acima dos limites legais de tolerância, a declaração do empregador, no âmbito do Perfil Profissiográfico Previdenciário (PPP), no sentido da eficácia do Equipamento de Proteção Individual – EPI, não descaracteriza o tempo de serviço especial para aposentadoria.”

Tomando a liberdade para unificar as duas teses fixadas em um único enunciado, de modo a evitar confusões, tais manifestações poderiam ser resumidas da seguinte forma: a simples declaração do empregador, no âmbito do Perfil Profissiográfico Previdenciário (PPP), no sentido da eficácia do Equipamento de Proteção Individual – EPI, não descaracteriza o tempo de serviço especial para aposentadoria, exceto se ficar comprovada em concreto a capacidade de tal EPI neutralizar a nocividade no ambiente de trabalho do segurado.

Nesse esteio, o que se observa do julgado do STF e que vem sendo ignorado pelo Carf é que referido precedente vinculante adota como premissa a ideia da proteção limitada do segurado e não a sua proteção ilimitada, como prevalecente no Tribunal Administrativo.

Logo, convocando a ratio desse precedente pretoriano vinculante, deveria o Carf, nos casos em que se discute o adicional da contribuição ao FAE, avaliar se há ou não prova da efetiva neutralização do agente nocivo pelos materiais de EPI, sob pena de ofensa a tal precedente.

Quando muito, deveria o tribunal converter tais julgamentos em diligência para apurar tal fato, mas jamais pressupor aprioristicamente a incapacidade do EPI para neutralizar o agente nocivo ao trabalhador, sob pena de ofensa a tal precedente vinculante e, por conseguinte, desrespeito ao art. 99, caput do Ricarf [8].


[1] Nos termos do art. 64 do Decreto nº 10.410/2020, ocorre a neutralização do risco ao trabalhador quando:

Art. 64 (…).

§1º A efetiva exposição a agente prejudicial à saúde configura-se quando, mesmo após a adoção das medidas de controle previstas na legislação trabalhista, a nocividade não seja eliminada ou neutralizada.

§1º-A Para fins do disposto no § 1º, considera-se:

(…).

II – neutralização – a adoção de medidas de controle que reduzam a intensidade, a concentração ou a dose do agente prejudicial à saúde ao limite de tolerância previsto neste Regulamento ou, na sua ausência, na legislação trabalhista.

[2] Esse é o teor do art. 1º do ADI RFB n. 02/2019, in verbis:

Art. 1º Ainda que haja adoção de medidas de proteção coletiva ou individual que neutralizem ou reduzam o grau de exposição do trabalhador a níveis legais de tolerância, a contribuição social adicional para o custeio da aposentadoria especial de que trata o art. 292 da Instrução Normativa RFB nº 971, de 13 de novembro de 2009, é devida pela empresa, ou a ela equiparado, em relação à remuneração paga, devida ou creditada ao segurado empregado, trabalhador avulso ou cooperado de cooperativa de produção, sujeito a condições especiais, nos casos em que não puder ser afastada a concessão da aposentadoria especial, conforme dispõe o § 2º do art. 293 da referida Instrução Normativa.

[3] Nesse sentido, destaca-se o trecho de voto vencido do conselheiro Thiago Sorrentino, inclusive amparado em interpretação do precedente do STF no Tema 555, in verbis:

A meu sentir, o órgão julgador de origem destoou da orientação fixada pelo STF, na medida em que ela não é linear, de modo a considerar inútil a utilização de meios para calibração dos danos causados pela exposição ao ruído, para fins previdenciários (e, por extrapolação, tributários, dada a ideia adaptada de WICKSELL). O que o STF reconheceu como insuficiente foi a declaração no PPP, tão-somente.

Desse modo, a autoridade lançadora não poderia ter desconsiderado os laudos apresentados pelo sujeito passivo, que não se limitassem a replicar o quanto declarado no PPP. (Acórdão Carf nº 2202-010.507 – grifos no original).

[4] Nesse diapasão, por exemplo, é o próprio Acórdão Carf nº 2202-010.507, já citado, quando assim prevê:

AGENTE NOCIVO BENZENO. ANÁLISE QUALITATIVA.

A avaliação de riscos do agente nocivo do benzeno é qualitativa, com nocividade presumida e independente de mensuração, constatada pela simples presença do agente no ambiente de trabalho. Havendo exposição a agente nocivo reconhecidamente cancerígeno para humanos, a mera presença no ambiente de trabalho já basta à comprovação da exposição efetiva do trabalhador, sendo suficiente a avaliação qualitativa e irrelevante, para fins de contagem especial, a utilização de EPI eficaz(g.n.). (Redatora designada: Conselheira Sara Maria de Almeida Carneiro Silva; Data da Sessão: 06/03/2024).

[5] O uso de Equipamento de Proteção Individual (EPI), ainda que elimine a insalubridade, no caso de exposição a ruído, não descaracteriza o tempo de serviço especial prestado.

[6] Restou vencido apenas o ministro Marco Aurélio Mello que sequer conhecia o recurso interposto.

[7] O que, inclusive, é objeto de debate dos ministros.

[8] Art. 99. As decisões de mérito transitadas em julgado, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, ou pelo Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional, na sistemática da repercussão geral ou dos recursos repetitivos, deverão ser reproduzidas pelos conselheiros no julgamento dos recursos no âmbito do Carf.

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