Por Carlos Augusto Daniel Neto – Doutor em Direito Tributário pela USP
“It matters how judges decide cases.”[1] Com essa frase, Ronald Dworkin inicia o primeiro capítulo do seu Law’s Empire, ao tratar sobre o que é o Direito, em exercício exemplar de síntese, deixando claro que ele não é simplesmente um objeto a ser conhecido, mas um produto da interpretação e aplicação das leis pelos juízes.
Por um lado, a feliz expressão de Dworkin ressalta o conteúdo do Direito, pois da mesma forma que o significado de uma palavra, em uma língua, é determinado pelas formas como ela é utilizada por uma comunidade de falantes, em contextos específicos, as normas jurídicas somente concretizam seu conteúdo por meio da sua aplicação aos casos concretos, postos sub judice. Por outro lado, ela deixa claro que não basta apenas saber “o que é que os juízes decidem”, mas é preciso também que se identifique como se chegou a tal conclusão, quais os argumentos e razões foram relevantes para a tomada de decisão, para que se possa controlar a coerência do resultado.
Ainda que o Direito brasileiro tenha sido desenvolvido na esteira da tradição jurídica do civil law, com o reconhecimento do Direito como proveniente exclusivamente dos textos legislativos, o modelo atualmente vigente se distancia desse extremismo[2], para reconhecer a necessidade de interpretação das regras jurídicas pelos julgadores, densificando o seu conteúdo semântico à luz de circunstâncias concretas. O próprio CPC/2015, em seu artigo 927[3], deixa clara a normatividade da jurisprudência resultante do conjunto de aplicações da legislação e estabelece, em seu artigo 926, o dever dos tribunais de mantê-la estável, íntegra e coerente, dando relevo à necessidade de compreensão das razões de decidir prevalentes em cada caso.
Paralelamente ao desenvolvimento de uma jurisprudência judicial, no âmbito administrativo se verifica uma progressiva modificação na forma como a legalidade é compreendida, reconhecendo-se a sua indeterminação natural e estabelecendo um modelo de determinação “autovinculativo” do conteúdo das regras a serem aplicadas.
Essa autovinculação da administração pública, explica Gustavo Marinho de Carvalho, possibilita o estabelecimento de pautas decisórias gestadas internamente, por meio de órgãos próprios, que passam a delimitar o seu âmbito de atuação, como a edição de regulamentos, súmulas, instruções normativas e, também, decisões de órgãos de julgamentos administrativos (Precedentes administrativos no direito brasileiro. São Paulo: Contracorrente, 2015, p. 115-119).
Da mesma forma que os precedentes judiciais constroem uma jurisprudência que deverá servir de orientação para os juízes e, sobretudo, para os cidadãos e o Estado pautarem suas ações, os precedentes administrativos — enquanto manifestações de autovinculação da administração — devem construir uma jurisprudência (esta de natureza administrativa), cuja integridade, estabilidade e coerência deverão ser mantidas pelo órgão de julgamento, mormente em razão da aplicação subsidiária e suplementar do CPC/2015 aos processos administrativos, por força de seu artigo 15.
Há muito o STF, no julgamento do Agravo de Instrumento 62.811/RJ, em erudito voto do ministro Bilac Pinto, já reconhecera a relevância dos órgãos administrativos com funções decisórias, muito semelhantes à jurisdicional[4], em razão não apenas de certas decisões tomadas nesse âmbito exigirem conhecimentos técnicos altamente especializados, os quais não são usuais em juízes de carreira[5], mas também por exercerem uma função de redução do arbítrio na aplicação da lei, aprimorando a segurança jurídica nas relações entre Estado e administrado.
No âmbito tributário federal, área do Direito cuja tecnicidade é notória (a exemplo do recente Decreto 9.580/2018, o “Regulamento do Imposto de Renda”, com mais de mil artigos), essa função administrativa decisória é realizada no plano federal, em última instância[6], pelo Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), órgão colegiado e de composição paritária, integrante da estrutura do Ministério da Economia, e com competência para o julgamento de recursos voluntários e recursos de ofício relativos às decisões das Delegacias Regionais de Julgamento da Receita Federal (DRJ).
A estrutura atual do Carf conta com três seções de julgamento temáticas, compostas de câmaras e turmas: i) a 1ª Seção julga principalmente matérias relativas ao IRPJ, CSLL e lançamentos reflexos a estes, lançamentos decorrentes do Simples Nacional, e detém competência residual; ii) a 2ª Seção julga questões envolvendo IRPF, IRRF, ITR e contribuições previdenciárias; e iii) à 3ª Seção cabe o julgamento de processos envolvendo PIS/Cofins, IPI, IOF, Cide, tributos e multas aduaneiros e normas antidumping.
Além disso, a composição das turmas de julgamento é paritária: quatro conselheiros representantes da Fazenda Nacional, auditores-fiscais da Receita Federal, e quatro conselheiros representantes dos contribuintes, com exigência de notório conhecimento técnico e experiência prática nas áreas de Direito Tributário, processo administrativo fiscal e tributos federais.
Verifica-se, pois, que a especialização no trato de questões tributárias federais, aliada à sucessiva repartição da matéria em seções temáticas, implica o tratamento especialmente qualificado na resolução das questões, o qual somente é viabilizado por um corpo de julgadores altamente técnico.
Historicamente, os estudos tributários no Brasil passaram a se desenvolver, também, com o trabalho dos conselhos de contribuintes, a exemplo de Tito Vieira de Rezende, um pioneiro nos estudos fiscais, que foi membro desses conselhos (Cf. http://idg.carf.fazenda.gov.br/acesso-a-informacao/institucional/memoria-institucional).
Seguiu-se, daí, um ciclo virtuoso: sobre os acórdãos proferidos administrativamente foram escritos diversos trabalhos acadêmicos, e as próprias turmas julgadoras passaram a trazer para seus debates posições construídas no âmbito doutrinário — basta ver, contemporaneamente, a constante produção e participação acadêmica de membros do Carf e a quantidade de artigos científicos voltados à análise de decisões lá proferidas.
Por outro lado, as decisões do Carf também se tornaram relevantes para os tribunais superiores, que se valem delas para fundamentar decisões em matéria tributária. Por exemplo, menciono o recente acórdão do STJ, sob sistemática de recursos repetitivos, no REsp 1.221.170/PR, que definiu o conceito de insumos para fins de creditamento de PIS/Cofins não cumulativos, adotando a posição construída e consolidada no âmbito da 3ª Seção.
Do que foi dito acima, ainda que de forma absolutamente breve, fica clara não apenas a existência de uma jurisprudência administrativa, construída por precedentes do Carf, mas também a relevância dessa construção, que impacta diretamente a atividade doutrinária e judicial, e indiretamente fornece linhas de orientação para o contribuinte, que procura balizar suas atividades pelas decisões desse órgão, construindo uma base de confiança.
Dessa relevância surgiu a proposta de criação da coluna “Direto do Carf”: um espaço para a exposição técnica e imparcial da jurisprudência do Carf, não se limitando a dizer o que foi decidido, mas descer à análise dos fundamentos determinantes da decisão, inclusive cotejando decisões conflitantes entre colegiados diversos, sobre os mesmos temas, com a finalidade de expor aos leitores esse conteúdo de uma forma acessível e confiável.
Para essa empreitada, temos uma equipe de colunistas formada por mim e pelos colegas Alexandre Evaristo Pinto, Diego Diniz Ribeiro e Fernando Brasil de Oliveira Pinto, todos exercendo atualmente o cargo de conselheiros do órgão, que escreverão sobre os temas de sua especialidade funcional.
Seguro de que esta coluna será canal qualificado e relevante de informação acerca da jurisprudência do Carf, que servirá de instrumento de consulta para todos aqueles que se interessem pelo Direito Tributário, desejo um feliz 2019 para todos os leitores!
[1] Importa como os juízes decidem os casos, em tradução livre.
[2] Que teve como um dos seus principais momentos o advento da Emenda Constitucional 45/04, por meio do qual se criaram até então novos institutos de uniformização da jurisprudência, tais como a súmula vinculante, a repercussão geral e técnica de julgamento de recursos sob o rito de repetitividade.
[3] “Art. 927. Os juízes e os tribunais observarão:
I – as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade;
II – os enunciados de súmula vinculante;
III – os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos;
IV – os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional;
V – a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados”.
[4] Há, inclusive, quem defenda que as decisões proferidas por tribunais administrativos em matéria tributária de fato configuram atividade jurisdicional, ainda que exercida de forma atípica pelo Poder Executivo. Nesse sentido: CONRADO, Paulo César. PRIA, Rodrigo Dalla. “Aplicação do Código de Processo Civil ao processo administrativo tributário”. In: O novo CPC e seu impacto no direito tributário. 2ª. ed. São Paulo: Fiscosoft, 2016. p.255.
[5] Haja vista a forma como está estruturado o Poder Judiciário nacional, pautado por uma atividade jurisdicional preponderantemente marcada pela competência residual e, portanto, de índole generalista.
[6] Com a possibilidade ainda da interposição de recurso especial para a Câmara Superior de Recursos Fiscais, no caso de divergência de entendimento entre os colegiados do órgão.
Revista Consultor Jurídico, 9 de janeiro de 2019, 7h00