Por Carlos Augusto Daniel Neto
Hoje trataremos do tema que toca um ponto central da jurisprudência do Carf: o limite entre o que é e o que não é planejamento tributário. Essa distinção, básica à análise de qualquer operação realizada pelo contribuinte que tenha gerado economia tributária, tem uma enorme relevância prática, pois a premissa assumida sobre o ato ou negócio analisado irá impactar diretamente os parâmetros de sua validade e oponibilidade à fiscalização.
Na temática do planejamento tributário — utilização de atos e negócios jurídicos com a finalidade de buscar meios lícitos de pagar menos tributos —, Marco Aurélio Greco, em sua clássica obra sobre o tema[1], identifica três conjuntos de situações que não se enquadram como tal: a) condutas repelidas — aquelas condutas alçadas à categoria de atos ilícitos pelo legislador, e sujeitas a sanções; b) condutas desejadas (induzidas) — aquelas assumidas em razão de estímulos decorrentes da utilização extrafiscal do tributo ou de regimes fiscais diferenciados; c) condutas positivamente autorizadas pelo ordenamento — são as chamadas opções fiscais, alternativas criadas pelo ordenamento jurídico, colocadas à disposição para que o contribuinte delas se utilize.
O caso que utilizaremos aqui para estressar os limites desse contraste é a devolução de participação no capital social, por meio da entrega de bens e direitos do ativo da pessoa jurídica, avaliados a valor contábil, com posterior alienação deles pela pessoa física.
Em um breve histórico, o Decreto-lei 1.598/77 estabeleceu em seu artigo 60 o regime de distribuição disfarçada de lucros (DDL), por meio do qual se buscava evitar que a pessoa jurídica transferisse lucros para partes ligadas, através de negócios em condições favorecidas. Nesse contexto, a devolução de bens e direitos incorporados ao capital social, aos sócios, era frequentemente objeto de autuação com base nas regras de DDL, com cobrança do IR sobre a diferença entre o valor contábil do bem/direito e o seu valor de mercado ou com base na alegação de simulação, para encobrir o pagamento de dividendos (lembrando-se que, à época, a distribuição de dividendos era tributada na fonte).
Em razão do rechace do Judiciário à possibilidade de tratar a devolução de bens do capital social aos sócios como hipótese de incidência do IR, foi editada a Lei 9.429/95, que estabeleceu em seus artigos 22 e 23[2] um regime simétrico que autorizou tanto a devolução quanto a incorporação de bens e direitos ao capital social pelo valor registrado ou pelo valor de mercado, estabelecendo a apuração do ganho de capital nos casos em que a operação se dê por valor superior ao contábil. Trata-se, portanto, de uma exceção expressa às regras de DDL.
Diante desse contexto, tem sido objeto de autuação a redução do capital social[3], mediante deliberação da assembleia, nos casos em que posteriormente o sócio alienou o bem, tributando o ganho de capital na pessoa física, sob o fundamento de que seria um planejamento tributário sem propósito negocial além da economia dos tributos.
Em um dos primeiros casos em que a matéria foi analisada, no ano de 2002, pelo Acórdão 101-94.008[4], a posição vencedora foi no sentido de que o artigo 22 da Lei 9.429/95 trouxe uma opção fiscal ao contribuinte, ao excepcionar o regime de DDL para as devoluções de bens e direitos a valor contábil, com a ressalva que as primeiras autuações se fundamentavam no alcance do artigo 22, em relação a operações que operavam a alienação de bens ou direitos da pessoa jurídica aos sócios — discutiram-se, na época, quais operações seriam “devoluções”.
Entretanto, nos julgamentos seguintes, as autuações passaram a se basear na ausência de motivação e propósito negocial das operações — provavelmente em razão do desenvolvimento desses conceitos na jurisprudência administrativa. No Acórdão 1402-001.472[5], posterior a essa reorientação nos fundamentos da autuação, o voto vencedor entendeu estar “diante da hipótese de elisão fiscal”, apontando motivos extratributários do caso concreto que justificassem a devolução dos bens e direitos.
No Acórdão 1402-001.341[6], o relator analisa uma série de operações jurídicas para concluir que elas tiveram como finalidade tributar os ganhos com alienação das ações da BM&F S/A e Bovespa nas pessoas físicas, sendo que o mesmo poderia ter sido feito diretamente, com o respaldo do artigo 22 da Lei 9.249/95, que o autorizava. Não haveria, na opinião do relator, distorção em utilizar a opção fiscal, mas sim “nas próprias normas tributárias que estabelecem alíquota de 15% para o ganho de capital na pessoa física e de até 34% de IRPJ/CSLL sobre os ganhos de mesma natureza das pessoas jurídicas”. Seguindo essa mesma linha de raciocínio, baseada na legalidade da opção, o Acórdão 1402-001.477[7] reconheceu a validade da redução mesmo diante da constatação que as tratativas para a venda das participações pelos sócios haviam sido iniciadas antes da redução do capital social.
Em sentido contrário, analisando caso similar, o Acórdão 1401-002.835[8] se baseou justamente no fato do interesse pela aquisição dos direitos ser anterior à redução de capital, para aduzir que o único motivo da operação era o enquadramento da venda na tributação na pessoa física dos sócios, mantendo a autuação. O dado de a negociação ter sido feita pela pessoa jurídica ou pelas pessoas físicas foi reputado relevante pela 1ª Turma da 4ª Câmara da 1ª Seção (turma 1401[9]), que no Acórdão 1401-002.347[10] afastou a autuação, ressaltando que foi comprovado que a negociação e a venda foram realizadas pelas pessoas físicas, afastando a ideia de simulação.
O Acórdão 1201-001.809[11] manifestou-se no sentido de que a devolução do capital a valor contábil é direito do contribuinte, expressamente autorizado, e que corresponde à adoção do mesmo critério da integralização de bens e direitos, imprimindo coerência ao sistema jurídico, não havendo que se qualificar a operação como simulada pelo fato da subsequente alienação a terceiros (nesse mesmo sentido, v. Acórdão CARF 1201-002.584[12]).
No julgamento do Acórdão 1302-003.286[13], o colegiado decidiu que a devolução do bem ao sócio para alienação seria um planejamento tributário abusivo, pois o artigo 22 da Lei 9.249/95 seria voltado aos casos de dissolução da sociedade com devolução do capital em bens e direitos ao titular, sócio ou acionista. Entretanto, no acórdão não fica claro se a autuação foi mantida pela ausência de propósito negocial ou por se tratar de simulação subjetiva, o que é relevante juridicamente, por se tratarem de situações jurídicas distintas, e pela configuração da simulação não ser incompatível com a premissa da opção fiscal.
No Acórdão 1301-003.023[14], o colegiado adotou a premissa da opção fiscal, manifestando-se no sentido de que a Assembleia Geral é o órgão competente para deliberar sobre a redução do capital, desde que respeitados os direitos de credores, não cabendo o Fisco questionar a operação societária, salvo se comprovada simulação. Essa mesma turma decidiu, por meio do Acórdão 1301-003.728[15], pela manutenção da autuação no caso em que a redução do capital ocorreu posteriormente à alienação dos bens e direitos, evidenciando a simulação no caso concreto, sem, contudo, negar a premissa de que o artigo 22 da Lei 9.249/95 traz uma opção fiscal ao contribuinte.
Nos acórdãos analisados pode-se verificar que a jurisprudência da 1ª Seção do Carf tem, majoritariamente, considerado o artigo 22 da Lei 9.249/95 como uma opção fiscal do contribuinte, que pode escolher o momento que quer realizar o ganho de capital de bens e direitos que estão incorporados ao capital de pessoas jurídicas.
Em pouquíssimos casos, há precedentes que analisam a questão como um planejamento tributário, buscando identificar a presença ou a ausência de um propósito negocial para validar a devolução dos bens e direitos — entretanto, em alguns dos precedentes compulsados, o voto faz referência tanto a motivos extratributários como a indícios de simulação.
De uma forma geral, a jurisprudência do conselho se desenha no sentido de reconhecer que o contribuinte pode escolher o momento em que apurará o ganho de capital sobre os bens e direitos incorporados ao capital social (na incorporação, na devolução ou em posterior alienação), ressalvados os casos em que a fiscalização comprove a ocorrência de simulação, como nos casos em que a alienação é anterior à devolução de capital.
Trata-se de um tema cujo desenvolvimento contribui para trazer segurança jurídica ao contribuinte no tocante à margem que dispõe de auto-organização de seus negócios, com a finalidade de reduzir o montante de tributos devidos, mormente diante de regras tributárias expressas que lhe estabelecem alternativas de ação, como a opção pelo lucro real ou presumido ou a opção por remunerar o capital investido na empresa por meio do JCP ou dividendos.
[1] GRECO, Marco Aurélio. Planejamento Tributário, 2ª ed. São Paulo: Dialética, 2008, p.83-86.
[2] Art. 22. Os bens e direitos do ativo da pessoa jurídica, que forem entregues ao titular ou a sócio ou acionista. a título de devolução de sua participação no capital social, poderão ser avaliados pelo valor contábil ou de mercado.
Art. 23. As pessoas físicas poderão transferir a pessoas jurídicas, a título de integralização de capital, bens e direitos pelo valor constante da respectiva declaração de bens ou pelo valor de mercado.
[3] É de frisar que a redução de capital, regida pelos artigos 173 e 174 da Lei 6.404/76 é apenas uma das hipóteses de devolução de capital a que alude o artigo 22 da Lei 9.249/95, abrangendo outras operações como resgate e reembolso de ações, cisão etc.
[4] Relator cons. Sebastião Rodrigues Cabral, julgado em 6/11/2002.
[5] Relator cons. Carlos Pelá, julgado em 9/10/2013.
[6] Relator cons. Antônio José Praga, julgado em 5/3/2013.
[7] Relator cons. Moisés Giacomelli Nunes, julgado em 9/10/2013.
[8] Relator cons. Daniel Ribeiro Silva, julgado em 15/8/2018.
[9] Os quatro primeiros dígitos do número do acórdão identificam qual a turma que proferiu aquela decisão: o primeiro dígito identifica a seção, o seguinte identifica a câmara e os últimos identificam a turma — pro exemplo, Acórdão 1302-002.221, proferido pela 2ª Turma da 3ª Câmara da 1ª Seção.
[10] Relatora cons. Livia de Carli Germano, julgado em 10/4/2018.
[11] Relatora cons. Eva Maria Los, julgado em 25/7/2017.
[12] Relatora cons. Gisele Barra Bossa, julgado em 21/9/2018.
[13] Voto vencedor da cons. Maria Lúcia Miceli, julgado em 12/12/2018.
[14] Relatora cons. Amélia Yamamoto, julgado em 16/5/2018. No mesmo sentido, Acórdão 1301-002.582 e 1301-003.370.
[15] Relatora cons. Giovana Leite, julgado em 20/2/2019.
Carlos Augusto Daniel Neto é doutor em Direito Tributário pela USP, mestre em Direito Tributário pela PUC-SP, conselheiro titular da 1ª Seção do Carf, ex-conselheiro da 3ª Seção do Carf e professor do IBDT e Cedes.
Revista Consultor Jurídico, 13 de março de 2019, 8h05