Responsabilidade tributária no roubo da carga em trânsito aduaneiro: ficção?

Por Diego Diniz Ribeiro

Existem certas discussões jurídicas que causariam espécie até ao despreocupado Herr Huld, o advogado do romance kafkiano “O Processo”, se a realidade não as impusesse à necessária consideração de todos. E uma dessas discussões é a possibilidade de incidência tributária, mediante responsabilidade do transportador, na hipótese do roubo da carga sob condição de trânsito aduaneiro.

Antes, todavia, de seguir adiante no tema, mister se faz, nesse momento, conformar as disposições jurídicas que gravitam em torno da questão analisada, começando pela figura do trânsito aduaneiro, capitulado no artigo 315 do Regulamento Aduaneiro [1] e que prevê, após o desembaraço de uma mercadoria estrangeira, a possibilidade de suspensão dos tributos incidentes na sua importação, enquanto o bem importado esteja em trânsito no território aduaneiro.

Nesse caso, a transportadora fica responsável pelo recolhimento dos tributos suspensos, nos termos do artigo 136 do CTN [2], c/c. com o artigo 32, inciso I do Decreto-Lei 37/66 [3]. Não obstante, os artigos 60, do mesmo Decreto-Lei 37/66 [4] e o artigo 664 do Decreto 6.759/09 [5], preveem excludentes dessa responsabilidade, nas hipóteses em que a mercadoria transportada sofre danos, avarias ou é extraviada, competindo ao responsável (transportadora) provar a ocorrência de caso fortuito ou força maior.

Pois bem. Feitas essas considerações preambulares, já é possível analisar alguns julgamentos realizados pelo Carf, bem como traçar um paralelo com precedentes do STJ a respeito do tema. Em regra, a questão aqui tratada apresenta as seguintes circunstâncias fáticas: uma transportadora discute a sua responsabilidade tributária na hipótese em que transporta mercadorias sob trânsito aduaneiro e que, durante esse deslocamento, são objeto de furto ou roubo.

O Acórdão Carf nº 3401-008.681 [6], por exemplo, parte da premissa quanto a existência de uma distinção entre caso fortuito interno e externo. O primeiro seria um risco inerente a consecução da atividade empresarial, enquanto o segundo seria algo completamente alheio a tal atividade. Com base em tal distinção, inexistente na lei, a turma julgadora, por unanimidade de votos, concluiu que somente nas hipóteses de caso fortuito externo seria excluída a responsabilidade da transportadora, arrematando suas considerações nos seguintes termos:

“…Se a violência nas estradas é circunstância de conhecimento geral, não haveria como se alegar que, máxime para uma empresa transportadora, o roubo de carga é um fato imprevisível e cujos efeitos seria impossível evitar. Como é cediço, há meios para se conferir maior segurança ao transporte e, consequentemente, minimizar os riscos do evento e, caso se concretize, seus efeitos”.

No mesmo sentido é a decisão proferida pelo Carf no Acórdão Carf nº 9303-007.712 [7] que, por maioria de votos, também conclui pela manutenção da responsabilidade da transportadora, ao fundamento de existir uma distinção entre caso fortuito interno e externo. No mesmo diapasão: Acórdãos Carf nº 9303-008.382 [8] e nº 9303-006.478 [9].

Tais decisões, todavia, não são uma invenção do Carf, mas, sim, uma repetição de um antigo — e já superado — julgado do STJ (REsp nº 1.172.027/RJ) que, também fazendo uma distinção entre caso fortuito interno e externo, assim decidiu por maioria de votos:

“Tributário – imposto de importação – ação anulatória de auto de infração – roubo de mercadoria durante transporte terrestre – caso fortuito interno – responsabilidade do transportador.
1. O roubo de veículo e de carga sujeita a imposto de importação ocorrido no transporte de mercadoria já desembaraçada não elide a responsabilidade de transportadora pelo pagamento do valor apurado em auto de infração, nos termos dos arts. 136 do CTN, 32 e 60 do Decreto-lei 37/66.
2. Recurso especial não provido” (REsp 1172027/RJ, relatora ministra Eliana Calmin, 2ª Turma, julgado em 26/8/2010, DJe 30/09/2010).

Acontece que esse entendimento já foi superado pelo próprio STJ, que, em casos mais recentes, passou a tratar o roubo como situação subsumível ao conceito de caso fortuito para afastar a incidência de tributos, mais particularmente para afastar a incidência de II. Nesse sentido [10]:

“Tributário. Impostos de importação. Transporte de carga. Roubo. Força maior. Situação previsível, porém inevitável. Ausência de comprovação do descuido por parte do transportador. Causa de exclusão da responsabilidade.
1. O roubo, na linha do que vem professando a jurisprudência desta Corte, é motivo de força maior a ensejar a exclusão da responsabilidade do transportador que não contribuiu para o evento danoso, cuja situação é também prevista pela legislação aduaneira.
2. Assim, a responsabilidade, mesmo que tributária, deve ser afastada no caso em que demonstrada a configuração da força maior dosada com a inexistência de ato culposo por parte do transportador ou seu preposto.
3. Embargos de divergência conhecidos e providos”. (EREsp nº 1.172.027/RJ; relatora ministra Maria Thereza de Assis Moura; Corte Especial; j. em 18/12/2013.)

A sobredita decisão, inclusive, foi veiculada em sede de embargos de divergência, isto é, por meio da Corte Especial do STJ, o que o torna uma precedente vinculante [11], nos termos do artigo 927, inciso V, do CPC [12] [13].

Ao que parece, para os precedentes administrativos aqui analisados, divorciados da realidade fática e descolados da atual jurisprudência vinculante do STJ, situações como o roubo de cargas ou acidentes de trânsito a implicar a avaria da mercadoria transportada, não se enquadrariam no conceito de caso fortuito, o que nos remete então a seguinte indagação: quais seriam as hipóteses de caso fortuito aptas a afastar a responsabilidade da transportadora na situação aqui estudada? Se o entendimento do tribunal administrativo for levado ao extremo, só seriam excludentes de responsabilidade situações teratológicas, como o extravio da carga em razão da sua abdução por extraterrestres ou, quem sabe, na hipótese das mercadorias transportadas serem avariadas em razão de um maremoto nas estradas de Minas Gerais.

O mais chocante nesse debate, a suscitar uma pretensa diferença entre caso fortuito interno e externo, são afirmações retóricas depreendidas dessas decisões no sentido de que o roubo de carga no país é uma situação corriqueira e, portanto, “previsível”, o que imputaria ao transportador o ônus, inclusive econômico, de impedir essa ocorrência. Diriam: “Transportador de bem não trafega na rodovia ‘X’, tão mal frequentada! Se andou lá, é porque queria ser assaltado!”… Tal discurso lamentavelmente se assemelha àquele, também abjeto, que quer imputar à vítima de um estupro a responsabilidade pelo crime por ela sofrido, em razão das vestimentas que trajava ou do horário e local em que se encontrava. É a cultura da “culpa da vítima”, transplantada para a seara fiscal!

Voltando-se ao caso aqui analisado, afirmações de que o roubo de carga no país é algo previsível é um atestado, oficial, de que falhamos enquanto Estado, pois, em razão da incompetência estatal em oferecer segurança pública, a vítima de um crime é duplamente penalizada, já que responde pelos inúmeros prejuízos desse crime e, também, pelas exigências tributárias.

Espera-se, em algum momento, que o Direito realizado no Carf nessa temática tenha uma maior sensibilidade com a realidade, de modo que as decisões aqui referidas encontrem abrigo apenas nas páginas de obras literárias.


[1] ” Artigo 315 – O regime especial de trânsito aduaneiro é o que permite o transporte de mercadoria, sob controle aduaneiro, de um ponto a outro do território aduaneiro, com suspensão do pagamento de tributos”.

[2] “Artigo 136 – Salvo disposição de lei em contrário, a responsabilidade por infrações da legislação tributária independe da intenção do agente ou do responsável e da efetividade, natureza e extensão dos efeitos do ato”.

[3] “Artigo 32 – É responsável pelo imposto:
I – o transportador, quando transportar mercadoria procedente do exterior ou sob controle aduaneiro, inclusive em percurso interno;
(…)”.

[4] “Artigo 60 – Considerar-se-á, para efeitos fiscais:
I – dano ou avaria – qualquer prejuízo que sofrer a mercadoria ou seu envoltório;
(…)”.

[5] “Artigo 664 – A responsabilidade a que se refere o artigo 660 pode ser excluída nas hipóteses de caso fortuito ou força maior”.

[6] Conselheiro Relator João Paulo Mendes Neto.

[7] Conselheiro Relator Jorge Olmiro Lock Freire, assim ementado:
“TRÂNSITO ADUANEIRO. ROUBO DE CARGA.
O roubo da carga transportada corresponde à hipótese que a doutrina convencionou denominar caso fortuito interno, que poderia ser previsto, e cujos efeitos poderiam ser evitados. Precedentes do Superior Tribunal de Justiça. Recurso especial do Contribuinte negado”.

[8] Conselheira Relatora Tatiana Midori Migiyama (vencida), Conselheiro Redator designado Jorge Olmiro Lock Freire.

[9] Conselheiro Relator Andrada Marcio Canuto Natal.

[10] Ainda no mesmo teor: REsp nº 1.660.163/SP.

[11] Convém ressaltar que o artigo 62, §§ 1º e 2º do RICarf, estabelece um rol mais restrito do que aquele do artigo 927 do CPC, i.e., de precedentes judiciais que vinculam os julgadores do Carf. Entendemos, todavia, que tal restrição regimental é flagrantemente ilegal, na medida em que esvazia de conteúdo o disposto no artigo 15 do Estatuto Processual Civil. Tal previsão regimental também é inconstitucional, na medida em que ofende o disposto no artigo 22, I da CF (Compete privativamente à União legislar sobre: I – direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho).

[12] “Artigo 927 – Os juízes e os tribunais observarão:
(…).
V – a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados.
(…)”.

[13] Na mesma linha do referido precedente, convém destacar o voto vencido da conselheira Thais de Laurentiis, veiculado no Acórdão Carf nº 3402­-006.220. 

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