Compensação de prejuízos na extinção da PJ: pode o Carf derrotar regras?

Por Carlos Augusto Daniel Neto

“(…) Mas deve-se estar consciente [o juiz] de que se trata de um difícil campo limítrofe no preenchimento de lacunas, no qual o juiz deve pôr-se entre a Cilas do formalismo e a Caríbdis da invasão da competência do legislador.” (Wilhelm Hartz [1])

Um dos temas mais tradicionais da 1ª Seção do Carf diz respeito à possibilidade de os contribuintes utilizarem o saldo de prejuízo fiscal para reduzir o lucro real, sem observância da “trava de 30%”, estabelecida pelo artigo 15 da Lei nº 9.065 [2], nas hipóteses de extinção da pessoa jurídica.

A juridicidade dessa sistemática foi analisada pelo STF no julgamento do RE nº 344.994/PR, no qual se reconheceu a constitucionalidade dessa restrição ao aproveitamento de prejuízos, assumindo a corte que se trataria de um benefício fiscal concedido aos contribuintes e, portanto, poderia ser limitado quantitativamente — como forma de garantir uma redução parcial da base do imposto, ao passo que garantiria receita constante ao Estado.

Por outro lado, os contribuintes alegavam que o princípio da capacidade contributiva e da neutralidade fiscal só poderiam ser corretamente observados na tributação da renda se o acréscimo patrimonial fosse considerado ao longo de toda a vida da empresa [3] (trata-se de conceito de lifetime income). Desse modo, apesar da necessidade de se segregar períodos mais curtos para a ocorrência do fato gerador (como recortes trimestrais ou anuais), por questões de praticabilidade, o contribuinte poderia carregar para os exercícios seguintes seu saldo de prejuízos, a ser compensado com lucros futuros.

O artigo 15 da Lei nº 9.065/95 tinha um escopo bastante claro: por um lado, evitar que os prejuízos fiscais do contribuinte se perdessem, no caso de crises econômicas prolongadas, nas quais a empresa operaria “no vermelho” (isto é, sem aferir lucro ou amargando prejuízos), ao passo que garantiria ao Estado um fluxo contínuo de recursos para garantir a sua previsão orçamentária, evitando que nos períodos seguintes a empresa compensasse todo o seu lucro com saldos de prejuízos fiscais acumulados.

Pois bem. O busílis do problema posto diz respeito aos casos em que a pessoa jurídica é extinta. Nesse caso se dá, rigorosamente, o fim da sua existência jurídica e, também, da possibilidade de compensar os seus lucros futuros com saldos de prejuízos fiscais acumulados. Por outro lado, o texto legal não estabeleceu nenhuma exceção à “trava”, aplicando-se, literalmente, a todos os casos.

O tema sofreu diversas variações na jurisprudência do Carf: passou-se de um entendimento pacífico favorável ao afastamento da “trava” nos casos de extinção, após o julgamento do RE nº 344.994/PR, para a posição oposta, tratando a regra como benefício fiscal a ser interpretado literalmente. Recentemente, o 1ª CSRF, em julgamento empatado e favorável ao contribuinte por força do artigo 19-E da Lei nº 10.522/02, voltou a validar o afastamento da “trava de 30%” nos casos de extinção, no acórdão CSRF nº 9101-005.728 [4]. Em razão notória distinção técnica do relator (conselheiro Fernando Brasil, nosso ilustre colunista) e do redator designado (conselheiro Caio Quintella, agora de volta às trincheiras da advocacia), optaremos por apresentar os argumentos trazidos nos dois votos, que sumarizam bem os principais, senão todos, aspectos da discussão.

Aduziu o relator que: 1) a lei não previu qualquer limitação à trava de 30% nos casos de extinção da entidade; 2) apresentou um histórico da legislação a respeito de prejuízos fiscais apontar ser o artigo 15 uma regra geral, e que quando se quis excepcionar alguma situação da limitação, isso foi feito expressamente, a exemplo do artigo 470 do RIR/99 (indústrias que gozem do Befiex) e no artigo 512 do RIR/99 (pessoa jurídica que explore atividade rural); 3) afirma também que a jurisprudência favorável ao tema é ultrapassada a partir de 2009; 4) cita voto do conselheiro Alberto Pinto, na linha de que os períodos de apuração entre si são independentes; 5) invoca o entendimento do STF de que se trata de um benefício fiscal6) que se houvesse um direito líquido e certo ao aproveitamento de prejuízos, eventual saldo existente na extinção da empresa teria que ser restituído; 7) a tese estaria, indiretamente, permitindo a compensação de prejuízos entre sucessora e sucedida, burlando o artigo 33 do DL nº 2.341/87 [5]8) por fim, invoca o entendimento do STJ no REsp nº 1.805.925/SP [6], que aplicou a trava também aos casos de extinção por incorporação, sob o fundamento de que seria benefício fiscal e, portanto, sujeito à interpretação literal por força do artigo 111 do CTN.

Por outro lado, o redator designado para o voto vencedor afirmou: 1) que a discussão específica para a extinção não foi abordada pelo STF nem no RE nº 344.994/PR, nem no RE nº 591.340/SP (que fixou o tema 117 de repercussão geral), para demonstrar que não há qualquer vinculação aos conselheiros; 2) que a segregação de períodos para apuração do lucro real é realizada no interesse da praticabilidade e da arrecadação tributária; 3) que o prejuízo fiscal é um elemento vinculado ao conceito de renda, necessário para identificar o efetivo acréscimo patrimonial, independente do fracionamento temporal da apuração da base de cálculo; 4) a “trava de 30%” é uma medida de diferimento do direito de compensar resultados negativos com os lucros, em prol da constância de receitas públicas; 5) a sistemática atual de prejuízos, que privilegia o prazo para compensar sobre o montante compensável, parte da premissa da continuidade das operações da empresa; 6) impedir a compensação na extinção e a transferência de prejuízos para a incorporadora é um meio de se tributar, indiretamente, patrimônio, e não renda; 7) ao final, propõe que se dê uma solução de interpretação harmonizada com os princípios que regem a tributação da renda.

Os votos mencionados acima, cujos vários argumentos tentamos apenas sumarizar, se baseiam em uma questão central: é possível o órgão de julgamento criar, no momento de aplicação de uma regra (“trava de 30%”), uma exceção implícita diante de um caso concreto (“extinção da pessoa jurídica”), dotado de uma peculiaridade fática (ausência de continuidade) que justificaria, à luz do próprio ordenamento, uma solução jurídica distinta (aproveitamento integral do prejuízo) daquela que seria “prima facie” aplicável?

Trata-se de questão conectada ao fenômeno da derrotabilidade normativa, entendida como a capacidade das regras jurídicas de se submeterem a uma quantidade não determinável de exceções implícitas no momento de sua aplicação a um caso concreto.

Essa situação decorre do próprio caráter das regras, que operam por meio de generalizações baseadas em critérios de relevância determinantes, prima facie, do que está dentro e o que está fora do seu âmbito de aplicação. Em razão disso, é possível que certos casos concretos tenham particularidades que lhe fariam merecer um tratamento distintoou cujos efeitos da regra se mostram largamente contrários à intenção do legisladorou mesmo impondo um ônus excessivamente pesado sobre o destinatário da regra.

Nesses casos, cabe ao aplicador, no momento de aplicar à regra ao caso, verificar se, a despeito da subsunção prima facie, a norma é efetivamente aplicável ou não, à luz de outras razões do ordenamento. Justificando-se juridicamente, isto é, por meio de razões dotadas de autoridade, a não aplicação da regra ao arranjo fático, cria-se in concreto uma exceção implícita, uma condição negativa da hipótese de incidência da regra, relativa apenas àquela situação analisada. Em suma: se a regra é apta a conflitar com outras razões do ordenamento jurídico, ao estabelecer permissões, proibições e obrigações, ela é potencialmente derrotável.

A pergunta que fica é: podem os conselheiros do Carf derrotar regras tributárias? A resposta, adiantamos, é sim.

Poder-se-ia argumentar, inicialmente, que tal conduta iria contra a Súmula Carf nº 2 (“O Carf não é competente para se pronunciar sobre a inconstitucionalidade de lei tributária“) e o artigo 26-A do Decreto 70.235/72.

O argumento não procede, pois a derrota de uma regra é medida excepcional, voltada a determinar o âmbito de aplicação da regra a um caso concreto, sem que a validade dela em abstrato seja afetada. Em outras palavras, a regra original não é derrogada após a sua não aplicação a um caso concreto, seguindo válida para todos os demais casos. Essa distinção metodológica foi observada pelo STF no RE nº 567.985/MT, afastando a cláusula de reserva de plenário nesses casos, verbis:

“Ante razões excepcionais devidamente comprovadas, é dado ao intérprete do Direito constatar que a aplicação da lei à situação concreta conduz à inconstitucionalidade, presente o parâmetro material da Carta da República, qual seja, a miserabilidade, assim frustrando os princípios observáveis – solidariedade, dignidade, erradicação da pobreza, assistência aos desemparados. Em tais casos, pode o Juízo superar a norma legal sem declará-la inconstitucional, tornando prevalecentes os ditames constitucionais.”

Outro eventual argumento, seria invocar o artigo 108, §2º, do CTN [7], para afirmar que juízos de equidade, corretivos da generalidade da lei, não poderiam ser utilizados para dispensar o pagamento do tributo devido.

Ele tampouco merece prosperar, pois a sua aplicação pressupõe a ocorrência do fato gerador e, consequentemente, o nascimento da obrigação tributária, ao passo que afirmar ser derrotável a regra em determinada situação equivale a dizer que o caso possui elementos fáticos que, além das condições positivas, atendem às exceções implícitas de uma determinada hipótese normativa, negando, portanto, a incidência legal. Ora, se um exige a incidência de norma impositiva tributária para sua aplicação, e o outro implica uma situação de não incidência no caso concreto, resta claro que são hipóteses que não se confundem nem tampouco se conflitam.

Em relação ao caso específico da “trava de 30%”, poder-se-ia argumentar que o artigo 111 do CTN [8] imporia a interpretação literal da legislação, sem restringir nem expandir seu sentido.

Aqui, há de pronto um equívoco de base: afirmar que se trata de um benefício fiscal, na linha do STJ, recentemente, não implica que a regra esteja sujeita ao artigo 111, pois sua aplicação se direciona às regras sobre: 1) suspensão ou exclusão do crédito tributário; 2) outorga de isenção; e 3) dispensa do cumprimento de obrigações tributárias acessórias. A regra em comento não se enquadra em nenhuma das situações, não estando sujeita ao artigo 111 do CTN.

Mais do que isso, ao se criar uma exceção implícita a uma regra de incidência não se está, automaticamente, interpretando ampliativamente a isenção — a derrota de uma regra impositiva poderia ocorrer mesmo inexistindo qualquer regra isentiva! Além disso, o próprio artigo 111, na condição de regra modalizada e passível de conflitar com outras razões jurídicas, já foi objeto de derrota pelo STJ, no REsp nº 567.873/MG, ao afastá-la em um caso concreto para poder dar a determinada isenção uma interpretação corretiva.

Sem pretender esgotar o tema, podemos afirmar com tranquilidade que não há nenhum óbice jurídico ou metodológico à derrota de uma regra tributária pelos conselheiros do Carf, desde que de maneira fundamentada e justificada rigorosamente.

Um exemplo disso se deu no acórdão Carf nº 3402-003.023 [9], no qual o contribuinte emitiu uma nota fiscal com o IPI destacado em valor incorreto. Verificando o erro, em dois dias o contribuinte emitiu uma nota fiscal complementar, pagando a diferença do tributo devido, sem, entretanto, recolher os juros de mora dos dois dias entre a Nota original e complementar, razão pela qual a fiscalização entendeu que não estavam presentes os requisitos do artigo 138 do CTN. Nesse caso, o colegiado entendeu, por unanimidade, que a finalidade arrecadatória da regra fora alcançada, e que seria irrazoável a aplicação da multa em razão dos dois dias de atraso, excepcionando a regra no caso concreto, sem invalidá-la.

Outro exemplo usual é a derrota das regras relativas à preclusão probatória estabelecida pelo artigo 16 do Decreto nº 70.235/72, a pretexto de determinadas circunstâncias do caso concreto justificarem a aceitação extemporânea da prova, fora das exceções previstas legalmente (a despeito de, na maioria dos casos, se proceder apenas uma “ponderação” entre as regras preclusivas e o “princípio da verdade material”). O tema já foi por nós criticamente analisado em outra oportunidade, razão pelo que não nos alongaremos aqui [10].

Poderíamos indicar outros casos em que esse fenômeno normativo ocorre, de forma mais ou menos ostensiva. Não obstante, a discussão em torno da inaplicabilidade da “trava de 30%” às hipóteses de extinção por incorporação talvez seja o exemplo mais célebre de como o Carf, há décadas, reconhece a possibilidade de criar exceções a regras prima facie aplicáveis ao caso.

A respeito do tema da derrotabilidade de regras tributárias, e para quem se interessar pelo tema, aproveito para compartilhar com todos a publicação do meu novo livro “Tributação e Exceção: A Derrotabilidade das Regras Tributárias” (Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2022, 458p., disponível aqui), que aprofunda exatamente essa questão, desenvolvendo uma metódica de justificação dessas exceções, como forma de legitimá-las a partir de razões dotadas de autoridade, sem prejudicar princípios pertinentes ao âmbito tributário, como a segurança jurídica.

Esperamos que a discussão desses temas, cuja aplicação do sentido prima facie desafia a própria coerência de sentido com o restante do sistema jurídico, colabore para uma tomada de consciência dos limites e das possibilidades do julgador no processo de (re)construção do Direito Tributário.


[1] In: Interpretação da Lei Tributária. São Paulo: ed. Resenha Tributária, 1993. p. 57.

[2] Art. 15. O prejuízo fiscal apurado a partir do encerramento do ano-calendário de 1995, poderá ser compensado, cumulativamente com os prejuízos fiscais apurados até 31 de dezembro de 1994, com o lucro líquido ajustado pelas adições e exclusões previstas na legislação do imposto de renda, observado o limite máximo, para a compensação, de trinta por cento do referido lucro líquido ajustado.

[3] LANG, Joachim. “The Influence of Tax Principles on the Taxation of Income from Capital”, in ESSERS, Peter e RIJKERS, Arie (orgs.) The Notion of Income from Capital. Amsterdam: IBFD. 2005, p.10-11.

[4] J. 1/9/2021.

[5] Art. 33. A pessoa jurídica sucessora por incorporação, fusão ou cisão não poderá compensar prejuízos fiscais da sucedida.

[6] J. 23/6/2020.

[7] Art. 108. (…) § 2º — O emprego da eqüidade não poderá resultar na dispensa do pagamento de tributo devido.

[8] Art. 111. Interpreta-se literalmente a legislação tributária que disponha sobre: (…)

[9] J. 12/4/2016.

[10] DANIEL NETO, Carlos Augusto; RIBEIRO, D. D. A preclusão na produção de provas no âmbito do processo administrativo fiscal federal — uma análise crítica da jurisprudência do Carf. In: Renata Elaine Silva Ricetti Marques; Isabela Bonfá de Jesus. (Org.). Novos Rumos do Processo Tributário. 1ª ed. São Paulo: Noeses, 2019, v. 1, p. 381-412.

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