A Lei nº 14.395/22 e as leis interpretativas: “A Traição das Palavras”

Por Carlos Augusto Daniel Neto

René Magritte, um dos mais brilhantes artistas surrealistas, pintou o famoso quadro “La trahison des images” (“A traição das imagens”), no qual retrata fielmente um cachimbo em um desenho, para em seguida escrever a frase que tornou célebre a produção: “Ceci n’est pas une pipe” (“Isto não é um cachimbo”).

O impacto do quadro está na contradição entre o estímulo que a imagem nos gera, e a frase abaixo, em sentido contrário. Parece-nos, ao final, que uma das mensagens centrais da obra é um alerta para que não confundamos as coisas com as palavras ou imagens que as designam, concluindo que, apesar do estranhamento que causa, correta está a frase, e não o nosso impulso de correlacionar o desenho com o objeto “cachimbo”.

No dia 8/7/22 foi promulgada a Lei nº 14.395/22 que conceituou o termo “praça”, utilizado na regra de valor tributável mínimo (VTM) de IPI, incluindo o artigo 15-A na Lei nº 4.502/64, e estabelecendo que “considera-se praça o município onde está situado o estabelecimento do remetente“. Essa promulgação veio após a derrubada do veto presidencial ao Projeto de Lei (PL) nº 2.110/2019, decisão legislativa correta, frente a um veto sem qualquer razão jurídica, como já tivemos a oportunidade de apontar (ConJur – A ‘praça do remetente’ para IPI e o veto ao PL 2.110/19).

No artigo mencionado acima, arriscamos o prognóstico de que a edição da lei não iria encerrar o litígio, mas transformá-lo: o contencioso se tornaria um metacontencioso, que ao invés de discutir o conceito de “praça”, debateria se a lei nova seria ou não interpretativa, para fins de sua aplicação retroativa aos casos ainda não definitivamente julgados, nos termos do artigo 106, I, do CTN.

Grande parte da doutrina tributária nega às leis interpretativas o caráter de interpretação autêntica, não obstante a sua função não seja propriamente interpretar, mas afunilar entre os sentidos possíveis dos textos legais, naturalmente vagos e ambíguos. Em rigor, trata-se de um meio para que o Legislativo promova uma estabilização e consolidação de sentidos normativos, em claro pendor formalista, mas dentro do seu espectro de exercício de poder outorgado pela CF.

Não há dúvida de que os sentidos do texto nunca podem ser inteiramente predeterminados, mas eles podem ser definidos e redefinidos, reduzindo a margem de ambiguidade, seja por sucessivas decisões, seja por meio de novas leis. A lei interpretativa, portanto, nada mais é do que um instrumento de redefinição (sem prejuízo dela mesmo ser passível de múltiplas interpretações), que promove a escolha apriorística [1] de um sentido normativo da legislação, vinculando o aplicador, com a característica específica de sua retroatividade no âmbito tributário.

A validade desse instrumento já fora reconhecida no julgamento da Adin 605-3/DF, no qual aduziu o ministro Celso de Mello que “É plausível, em face do ordenamento constitucional brasileiro, o reconhecimento da admissibilidade das leis interpretativas, que configuram instrumento juridicamente idôneo de veiculação da denominada interpretação autêntica“. Não obstante, o problema consiste em identificar quando há, de fato, uma lei interpretativa.

Também já tivemos a oportunidade de escrever a respeito de critérios para a identificação dessas leis [2], razão pela qual resumiremos aqui as conclusões alcançadas.

Em primeiro lugar, as leis interpretativas devem ser exaradas pela mesma autoridade e veículo normativo que editou a lei interpretada, tendo em vista a necessidade de ambas terem o mesmo nível hierárquico, para que se dê a coordenação de sentido na sua aplicação conjunta (critério da hierarquia).

Em segundo lugar, as leis interpretativas devem trazer uma definição contemplada pela moldura de sentidos possíveis do texto interpretado, atuando de forma decisória, pela escolha de um sentido aceito na comunidade linguística, sem inovar no conteúdo do Direito vigente. Isso foi observado pelo STJ no julgamento do REsp nº 1.471.576/RS, ao se reconhecer a natureza interpretativa da regra sobre a dedução dos custos assistenciais, pelas operadoras de planos de saúde, nos casos de cobertura também de beneficiários de outras operadoras, por entender que a lei interpretava comportava esse sentido (critério da continência semântica e critério da decisão).

Esse critério tem sido verificado, no âmbito do STJ, pela demonstração da existência de precedentes judiciais, ou mesmo de jurisprudência consolidada, e de manifestações doutrinárias reconhecendo a validade do sentido elencado pela lei interpretativa (e.g. REsp nº 746.768/MG, a respeito do artigo 11 da Lei nº 9.779/99).

Em terceiro lugar, é característico das leis interpretativas a sua ausência de autonomia em relação àquela interpretada. Sob um plano estrutural, a possibilidade de uma pressupõe a coexistência com a outra, ou seja, a lei interpretante e a interpretada operam conjuntamente se e quando contemporaneamente em vigor. Portanto, a lei interpretativa não é suscetível de aplicação autônoma, vindo a ser parte integrante da lei interpretada, e sujeita a uma vigência conjunta, de modo que caso a lei interpretada desapareça, o mesmo destino deve se abater sobre a outra (critério da subordinação).

Em suma, a verificação da existência de uma lei interpretativa passa pelos seguintes critérios e questionamentos:

1) Critério da hierarquia: a lei interpretativa foi feita pela mesma autoridade e com mesmo veículo da interpretada?

2) Critério da continência semântica: o sentido veiculado pela lei interpretativa é um dos sentidos possíveis da interpretada?

3) Critério da decisão: a lei interpretativa opta por um dos sentidos da interpretada, reduzindo sua ambiguidade?

4) Critério da subordinação: a lei interpretativa é insuscetível de aplicação autônoma?

Caso a resposta seja positiva para todas essas questões, estar-se-á diante de uma lei interpretativa. Nesse sentido, parece-nos fora de grandes dúvidas que a disposição introduzida pela Lei nº 14.395/22 atende positivamente a todas as questões acima.

Todavia, faremos um novo exercício de futurologia, apontando os pontos que entendemos que serão possivelmente suscitados para prorrogar a contenda que deveria ser encerrada pela nova lei.

O primeiro óbice seria um suposto caráter inovativo dessa lei, não estando contemplada nos sentidos possíveis do texto.

Deve-se lembrar que desde o PN CST nº 44/81, estabeleceu-se que a “praça do remetente” deveria ser entendida como “cidade” e “localidade“, o que pacificou o entendimento pelo alcance municipal da expressão. Foi apenas com a SCI Cosit nº 08/2012 que se consignou a hipótese de haver um alcance mais amplo para “praça”, tentando ressuscitar o revogado art. 23, §6º do Ripi/72, desaparecido após a edição do Ripi/79, o qual tratava sobre a hipótese de único comprador do produto. Verdadeiro bypass na legislação.

Compulsando a jurisprudência do Carf, em todos os casos julgados entre 1988 e 2013 o conceito de “praça” foi entendido como “município”, até o advento do acórdão nº 3201-001.204 (em 2013) que, por voto de qualidade, entendeu que “praça” abrangeria até onde estivesse o distribuidor interdependente, na ausência de um mercado atacadista local [3]. Somente a partir daí, o entendimento de quase cinquenta anos passou a ser controverso no âmbito do Carf, ainda assim não sendo acatada pacificamente essa modificação, a exemplo dos acórdãos nº 3402-005.599 [4] e 3301-005.609 [5], que seguiram defendendo o entendimento pacífico no Tribunal até o ano de 2013.

Em artigo recente publicado sobre o tema [6], sustentou-se que o entendimento teria sido pacificado pela 3ª CSRF a partir de 14/5/2019 (Ac. nº 9303-008.546), indicando que o PL 2.110/2019 seria contemporâneo ao entendimento e, portanto, teria tido a função de alterá-lo. Há, contudo, um equívoco inescapável nesse argumento.

Temporalmente, o PL 2.110/2019 foi registrado no Senado em 3/4/2019, mas o seu trâmite legislativo teve início na Câmara dos Deputados em 2015, assim como o PL nº 1.559/2015, proposto pelo deputado William Woo, exatamente quando começam a aparecer as primeiras decisões dissonantes e antes de qualquer consolidação jurisprudencial no âmbito do Carf e da sua CSRF, o que fica estampado na exposição de motivos do PL, verbis:

“Ocorre que o Fisco Federal vem distorcendo o conceito da praça, vindo a expandi-lo de forma totalmente arbitrário e sem critério. (…)

Ou seja, os contribuintes estão vivendo um clima de total insegurança jurídica, já que o fisco federal não acolhe o conceito de praça hoje consagrado, o qual diz ser a cidade onde está o remetente.

Dessa forma, e para evitar a insegurança jurídica trazida pela interpretação da lei fiscal, necessário deixar pacificado o entendimento corrente, que diz que praça corresponde à cidade onde está situado o remetente das mercadorias.”

Como se vê, o PL se refere a um “conceito de praça hoje consagrado” e reconhece uma distorção desse conceito, a ser corrigida por meio dessa atuação legislativa.

Ainda que se aceite o marco de “pacificação do entendimento” em 14/5/2019, o PL nº 1.559/2015 é muito anterior, sendo contemporâneo ao período em que o sentido de “praça” enquanto “município” estava respaldado, como prevalente, em atos normativos, jurisprudência e manifestações doutrinárias. O erro de premissa relativo à suposta contemporaneidade entre o PL e o entendimento da 3ª CSRF compromete todo o argumento desenvolvido no artigo citado.

Desafia-se aqui qualquer um a demonstrar que em 2015, época da apresentação do PL nº 1.559, havia jurisprudência consolidada em sentido contrário ao que ele dispunha.

Como um segundo óbice, poder-se-ia argumentar que a Emenda nº 01/2016, apresentada na Comissão de Constituição e Justiça (CCJC) — a qual alterava a redação da lei para fazer referência expressa ao seu “efeito de interpretação e aplicação do artigo 15 da Lei nº 4.502”, consignando de maneira ostensiva o seu caráter interpretativo e sujeição ao artigo 106, I, do CTN — teria sido rejeitada pela própria CCJC, “reconhecendo” o seu caráter inovador, e não interpretativo.

Em rigor, compulsando o parecer exarado pela CCJC, o que se verifica é que a Emenda nº 1 foi rejeitada por questão estritamente formal, i.e., relacionada à técnica procedimental para elaboração de leis, uma vez que, segundo o citado parecer, a emenda pretendia alterar o teor do PL sem amparo regimental, naquele momento da tramitação, razão pela qual opinou-se pela sua injuridicidade, deixando claro que não caberia ao órgão “adentrar ao mérito” da proposta de alteração.

Não há, aqui, qualquer juízo a respeito do caráter interpretativo ou não da lei, mas simples observância do fluxo do processo legislativo, que gerou a rejeição formal da medida. Trata-se de um argumento que, quando muito, pode induzir alguém menos atento em erro.

O terceiro óbice — e suspeito que será o mais insistente —, é a ausência de expressão redacional específica do caráter interpretativo da lei.

As leis interpretativas, explica Guastini, identificam-se sobre a base de um não textual, mas estrutural, e precisamente pelo fato de que as disposições interpretativas não ditam normas em sentido estrito (reguladoras de algum tipo de suposto de fato), mas sim metanormas (ou normas de segundo grau), que tem por objeto nada mais que o significado das disposições interpretadas [7]. Nessa mesma linha, Aliomar Baleeiro, escrevendo sobre o artigo 106 do CTN, esclarecera que “expressamente interpretativa” não quer dizer que a nova lei empregue essas palavras sacramentais, bastando que, reportando-se aos dispositivos interpretados, defina-lhes o sentido e aclare as dúvidas [8].

A jurisprudência também é farta de exemplos da irrelevância dessa referência textual. Por um lado, o STF, no famoso RE nº 566.621, reconheceu que, embora o artigo 3º da Lei Complementar nº 118/2005 tenha se autoproclamado interpretativo, ele implicou em inovação normativa, não podendo ser considerada “lei interpretativa”. Por outro, o STJ fixou entendimento reconhecendo a natureza interpretativa do artigo 11 da Lei nº 9.779/99 (e.g. REsp 746.768/MG), a despeito da inexistência de qualquer referência textual expressa nesse sentido, sujeitando-o ao artigo 106, I, do CTN.

O que se percebe é que os tribunais brasileiros têm reconhecido a possibilidade de as leis interpretativas serem identificadas sob um critério estrutural e funcional, independente da lei textualmente se declarar, ou não, interpretativa. Em outras palavras, é irrelevante o rótulo que a lei se atribui, sobre o modo como ela será aplicada.

E não poderia ser diferente, pois os rótulos e nomes não designam a natureza das coisas. Il y a le nom, il y a le chose, dizem os franceses, e isso não deveria causar espécie a qualquer tributarista que, desde as primeiras lições, aprende no artigo 4º do CTN que a natureza do tributo independe de sua denominação.

Tanto quanto o desenho do cachimbo e a frase, na obra Magritte, causa estranhamento ao intérprete jurídico se deparar com uma lei estrutural e funcionalmente interpretativa, mas seguida da menção “Ceci n’est pas une loi interprétative“, ou uma lei estrutural e funcionalmente inovativa, mas cujo texto mencione expressamente “Ceci une loi interprétative“.

O rótulo dado pela lei não tem o condão de alterar a natureza interpretativa ou não do dispositivo, para fins de seus efeitos jurídicos. Como disse Julieta a Romeu, no clássico shakespeariano, “O que chamamos rosa, sob uma outra designação teria igual perfume“. Parafraseando-a, “o que chamamos de lei interpretativa, sob outra designação teria igual função definitória de sentido, preservando sua correlata eficácia retroativa”.

Pois bem, a partir de agora se inicia um novo contencioso a respeito do conceito de “praça”, relacionado à aplicação retroativa da Lei nº 14.395/22 e da sua natureza interpretativa. Esperamos que os julgadores administrativos e judiciais não sucumbam à “traição das palavras”, pois sabem que o rótulo (ou a ausência dele) não é o suficiente para alterar a natureza jurídica do novel dispositivo.


[1] Tão apriorístico quanto o critério estabelecido pelo art. 112 do CTN.

[2] DANIEL NETO, Carlos Augusto. A Identificação de Leis Interpretativas no Direito Tributário Brasileiro. In: Hugo de Brito Machado Segundo et. all (Org.). O Cinquentenário do Código Tributário Nacional. Belo Horizonte: D’Plácido, 2016, v. 1, p. 199-226.

[3] DE SANTI, Eurico; et all. IPI e Valor Tributável Mínimo: Análise econômica, evolução histórica da legislação abstrata, da jurisprudência e da prática. São Paulo: Max Limonad, 2019.

[4] Relator Cons. Diego Diniz, j. 26/9/2018.

[5] Redator Cons. Marcelo Costa D’Oliveira, j. 29/1/2019.

[6] Lei define que ‘praça’ equivale a município. E daí? | Legislação | Valor Econômico (globo.com)

[7] GUASTINI, Ricardo. Interpretare e Argomentare. Milano: Giuffré, 2011. p.86-87.

[8] BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro, 11ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999. p.670

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