O novo valor de alçada para submissão de recursos voluntários ao Carf

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O novo valor de alçada para submissão de recursos voluntários ao Carf

Em nossa última coluna aqui no ConJur [1] tratamos de uma das relevantes mudanças trazidas pela Medida Provisória nº 1.160, de 12/1/2023, mais precisamente a revogação do artigo 19-E da Lei nº 10.522/2002, com o restabelecimento do voto de qualidade fundado no § 9º do artigo 25 do Decreto nº 70.235/72.

Não obstante, naquela mesma oportunidade dissemos que retornaríamos à análise para tratarmos da outra importante mudança trazida pela citada MP para o processo administrativo fiscal: o aumento de 60 para 1.000 salários mínimos quanto ao valor de alçada para a submissão de recursos voluntários ao julgamento do Carf. É isso o que iremos fazer nesse texto.

O artigo 4º da referida MP inseriu o artigo 27-B na Lei nº 13.988/2020, que agora assim estabelece:

Art. 27-B. Aplica-se o disposto no art. 23 ao contencioso administrativo fiscal de baixa complexidade, assim compreendido aquele cujo lançamento fiscal ou controvérsia não supere mil salários mínimos.”

Por sua vez, o artigo 23 da sobredita lei alterada prevê que o julgamento dos casos de baixa complexidade será realizado em última instância por órgão colegiado das Delegacias de Julgamento Receita Federal, o qual é composto exclusivamente por auditores fiscais que assumem a função de julgadores. Dando concretude à referida norma adveio a Portaria ME nº 340/2020, responsável pela criação das Câmaras Recursais das DRJs [2]. Esse será o órgão responsável pelo julgamento dos casos de baixa complexidade no âmbito do processo administrativo fiscal.

Feito esse breve preâmbulo, a pergunta a ser aqui respondida é: existe alguma injuridicidade na atribuição de um valor de alçada para recursos voluntários no âmbito do processo administrativo fiscal federal?

Para responder tal pergunta, mister se faz a estabelecer duas premissas relevantes.

A primeira delas é que o STF, quando do julgamento da ADI nº 1.976, precedente vinculante [3] que redundou na Súmula Vinculante nº 21 [4], concluiu pela impossibilidade de imposição de obstáculos (como o depósito prévio e o arrolamento) ao direito de recorrer na instância administrativa, o que implica partir da premissa que a Corte Constitucional vaticinou a ideia de que o duplo grau de jurisdição no âmbito administrativo também é uma garantia fundamental a ser tutelada.

A segunda premissa relevante é que valor de alçada recursal, inclusive em matéria tributária, não é novidade no ordenamento jurídico nacional, sendo admitido como válido. Nesse sentido, vide, por exemplo, os embargos infringentes previstos no artigo 34 da Lei nº 6.830/80 [5], recurso esse que é julgado pelo próprio juiz emissor da decisão recorrida com ampla capacidade revisora. Logo, não há, ao menos de partida, uma injuridicidade no estabelecimento de alçada para fins recursais [6], desde que essa alçada não seja supressora de uma instância recursal e que não haja uma assimetria injustificada de tratamento para jurisdicionados em posições recursais análogas, em respeito a uma ideia de igualdade substancial e não meramente formal.

Pois bem. Fixadas essas premissas, já é possível concluir que, sob uma perspectiva estritamente formal, não haveria injuridicidade na instituição de um valor de alçada para fins de interposição de recursos voluntários no âmbito do Carf. E, nesse sentido, a MP nº 1.160/2023 não suprime o acesso — formalmente falando — à instância recursal administrativa.

Acontece que, em se tratando de uma garantia constitucional do processo [7], essa análise de caráter formal é apenas o prelúdio do processo interpretativo a ser aplicado, sendo necessário seguir em frente para avaliar se tal regra traz alguma restrição de caráter substancial ao princípio. É necessário, portanto, ir além de uma perspectiva pautada apenas no procedural due process para se avaliar a questão aqui posta a partir de uma visão direcionada pelo substantive due process [8].

Nesse sentido, ao se comparar o novo quadro existente entre os administrados com demandas administrativas tributárias com valor superior a 1.000 salários-mínimos em relação aqueles com demandas inferiores ao valor de alçada, é possível perceber uma assimetria de tratamento entre eles. Explico.

Como já mencionado aqui, os recursos voluntários com valor superior ao importe de alçada continuarão sendo submetidos para apreciação do Carf, órgão julgador paritário e, mais do que isso, livre de amarras normativas para a realização da sua atividade judicativa [9]. Por sua vez, aquele sujeito passivo subordinado ao valor de alçada estará submetido ao julgamento das Câmaras Recursais das DRJs, ou seja, órgão não paritário e que, exatamente por isso, está vinculado às normativas expedidas pela Receita Federal do Brasil [10].

A título de exemplo, imaginemos que dois contribuintes estejam discutindo uma mesma questão como, por exemplo, a incidência ou não de IRPJ e CSLL sobre indébitos tributários decorrentes de decisões judiciais. Aquele que tiver seu caso julgado por uma Câmara Recursal de uma DRJ terá seu caso limitado ao estabelecido no Ato Declaratório SRF nº 25/2003, segundo o qual o valor reconhecido judicialmente deve receber tratamento fiscal no exato instante em que surge a coisa julgada na ação antiexacional promovida pelo contribuinte.

Por sua vez, o contribuinte não sujeito à alçada terá seu caso julgado pelo Carf, órgão esse que não se submete a esse constrangimento normativo-institucional e que possui jurisprudência consolidada em sentido contrário ao sobredito ato normativo [11], mais precisamente reconhecendo que enquanto houver a possibilidade de questionamento fiscal, como no caso de uma impugnação ao cumprimento de sentença, não há que se falar em incidência de IR e CSLL para a receita vaticinada judicialmente [12].

Diante desse quadro, pergunta-se: haveria um elemento discriminatório válido a justificar esse tratamento desigual para contribuintes com lides idênticas? O valor envolvido seria critério apto para tanto [13]?

As respostas para tais indagações só podem ser uma: não há uma razão jurídica válida para justificar esse tratamento distinto e, ao assim fazer, a legislação que submete os recursos voluntários constrangidos pela alçada ao julgamento de um órgão com competência judicativa tolhida torna-se ofensiva ao valor igualdade, aqui analisado — repita-se — sob uma perspectiva substancial.

A pretensa intenção com a referida mudança normativa, de prestigiar os princípios da celeridade e da duração razoável do processo, poderia muito bem ser resolvida de uma forma mais simples e levando em consideração uma estrutura já existente: a de submeter os recursos voluntários sujeitos à alçada a julgamento das Turmas Extraordinárias do próprio Carf, órgão esse que possui a mesma abrangência de competência das Turmas Ordinárias.

Ademais, a proposta aqui apresentada, além de prestigiar o princípio da igualdade e, ainda, um substantive due process, gera outro aspecto positivo: o de evitar uma incongruência na jurisprudência formada no âmbito do contencioso administrativo federal.

No modelo veiculado pelas normas reformistas, as diferentes Câmaras Recursais das DRJs irão julgar os recursos submetidos ao seu crivo sem que as suas decisões, por sua vez, estejam sujeitas à um órgão unificador. Já nos termos propostos no presente texto, ficando os casos de baixa complexidade sujeitos ao julgamento de Turmas Extraordinárias, as decisões então proferidas poderão ser objeto de recursos especiais à Câmara Superior de Recursos Fiscais, órgão responsável por unificar e integrar a interpretação do contencioso administrativo tributário federal. Há, portanto, uma racionalização que, em última análise, prestigia segurança jurídica, igualdade e livre concorrência.

Poderá um leitor mais crítico questionar: e por que tais questionamentos não foram feitos quando o valor de alçada estava limitado a 60 salários-mínimos. E a resposta honesta para tal indagação é uma só: por absoluta falta de reflexão a respeito, o que impediu a percepção quanto às injuridicidades aqui apontadas e já existentes naquela oportunidade. Todavia, é importante desnudar esse equívoco e, nos termos do dito popular, reconhecê-lo “antes tarde do que nunca”. Logo, para que não restem dúvidas, é injurídica a instituição de um valor de alçada (seja de 1 ou 1.000 salários-mínimos) que submete casos idênticos a órgãos julgadores com competências distintas, motivo pelo qual a MP 1.160/2023, nessa parte, deve ser rechaçada pelo Congresso Nacional.

[1] ConJur – Para que serve um tribunal administrativo fiscal?. Visualizado em 21.03.2023.

[2] Tratando das minúcias desse novo órgão, destaca-se texto de Thais de Laurentiis: ConJur – As cinzas e o processo administrativo fiscal “de pequeno valor”. Visualizado em 21.03.2023.

[3] Nos termos do art. 927, inciso I do CPC, verbis:

Art. 927. Os juízes e os tribunais observarão:

I – as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade;

(…).

[4] É inconstitucional a exigência de depósito ou arrolamento prévios de dinheiro ou bens para admissibilidade de recurso administrativo.

[5] Art. 34 – Das sentenças de primeira instância proferidas em execuções de valor igual ou inferior a 50 (cinqüenta) Obrigações Reajustáveis do Tesouro Nacional – ORTN, só se admitirão embargos infringentes e de declaração.

  • 1º – Para os efeitos deste artigo considerar-se-á o valor da dívida monetariamente atualizado e acrescido de multa e juros de mora e de mais encargos legais, na data da distribuição.
  • 2º – Os embargos infringentes, instruídos, ou não, com documentos novos, serão deduzidos, no prazo de 10 (dez) dias perante o mesmo Juízo, em petição fundamentada.
  • 3º – Ouvido o embargado, no prazo de 10 (dez) dias, serão os autos conclusos ao Juiz, que, dentro de 20 (vinte) dias, os rejeitará ou reformará a sentença.

[6] Trazendo um relevante obstáculo na particular perspectiva do Direito Aduaneiro, destaca-se artigo de Leonardo Branco: ConJur – O limite recursal, o Carf e as três formas de argumentação. Visualizado em 21.03.2023.

[7] Por todos: BUENO, Cássio Scarpinella. Curso sistematizado de Direito Processual Civil. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2018. p. 111 e s.s.

[8] Tratando dessa distinção: NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do Processo Civil na Constituição Federal. 2ª. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995.

[9] A única limitação imposta para tal órgão é a impossibilidade de que ele realize controle difuso de constitucionalidade de normas, exceto quando houver precedentes vinculantes do STF para a matéria, nos termos do art. 26-A, caput e § 6o, do Decreto n. 70.235/72.

[10] Nos termos do art. 17, inciso V da Portaria MF n. 20/2023, c.c. o art. 116, incisos III e IV da Lei n. 8.112/90, verbis:

Art. 17. São deveres do julgador:

(…).

V – observar o disposto no inciso III do caput do art. 116 da Lei nº 8.112, de 1990, e os demais atos vinculantes.

Art. 116. São deveres do servidor:

(…).

III – observar as normas legais e regulamentares;

IV – cumprir as ordens superiores, exceto quando manifestamente ilegais;

(…).

[11] Nesse sentido: Acórdãos CARF n.s 9101-003.646 e 1402-001.705.

[12] Aprofundando-se nessa questão de fundo, destaca-se o preciso texto de Carlos Augusto Daniel Neto: A Incidência de IRPJ e CSLL sobre os Indébitos Tributários Decorrentes de Decisões Judiciais – Revista Direito Tributário Atual (ibdt.org.br). Visualizado em 28.03.2023.

[13] Tratando do elemento discriminatório no princípio da igualdade, Celso Antônio Bandeira de Mello professa que é necessário investigar, de um lado, aquilo que é adotado como critério discriminatório; de outro lado, cumpre verificar se há justificativa racional, isto é, fundamento lógico, para, à vista do traço desigualador acolhido, atribuir o especifico tratamento jurídico construído em função da desigualdade proclamada. Finalmente, impende analisar se a correlação e o fundamento racional abstratamente existente é, in concreto, afinado com os valores prestigiados no sistema normativo constitucional. A dizer: se guarda ou não harmonia com eles. (In: MELLO, Celso Antônio Bandeira. Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. São Paulo: Malheiros, 1999. p. 21.).

Postado originalmente no ConJur.

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