Ocultação inocente: por um oboé no tribunal aduaneiro

Por Leonardo Branco

A ocultação inocente se caracteriza por um equívoco ou omissão na prestação das informações relativas à operação de comércio internacional sem intuito doloso que tem, como resultado, a impossibilidade de identificação de uma das seguintes partes intervenientes: sujeito passivo, real vendedor, comprador, ou responsável pela operação, podendo caracterizar-se ou não por meio da interposição de um terceiro.

Para que a ação ou omissão benignas escalem para uma modalidade considerada danosa ao erário e, logo, suscetíveis à pena correspondente de perdimento, deverão se apresentar por meio de um ardil doloso, mediante fraude ou simulação.

A ausência do dolo (intenção) do agente não permite, portanto, que se acione o curioso mecanismo escolhido pelo artigo 23 do Decreto-Lei nº 1.455/1976.

O dispositivo achou por bem agrupar, em seus seis incisos originais, um rol de condutas sob a duvidosa alcunha de “dano ao Erário” para, em seguida, condená-las coletivamente ao perdimento (§ 1º) ou multa equivalente ao valor aduaneiro (§ 3º).

Sabe-se que a inadequada expressão do caput, além de inútil, é causadora de amargos dissabores interpretativos.

O primeiro deles, dos defensores, ao nele enxergarem indevidamente um desfalque patrimonial do Estado, instados a confrontarem a dureza do muro sumular do Carf, vez que a expressão “dano ao Erário” bem poderia, sem qualquer prejuízo, ser substituída por “oboé”.

Tal silogismo é facilmente identificável: sempre que “oboé”, logo, necessariamente, perde-se a mercadoria. Passam-se a catalogar, em seis incisos, as hipóteses caracterizadoras do antecedente da norma implicacional. A substituição do dano ao Erário ou do instrumento de sopro por “crustáceo” ou “palimpsesto” não alterará o consequente.

A intrincada e obtusa construção de uma pena por remissões foi a forma como o reformador aduaneiro de 1976 encontrou para fundamentar o perdimento no datado § 11 do artigo 150 da Constituição de 1969 já sob a redação do Ato Institucional nº 14/1969.

O aparato outorgado manu militari previa a edição de lei voltada a regulamentar os “(…) casos de guerra externa psicológica adversa (sic), ou revolucionária ou subversiva”, o que aponta para seu vício de origem, tendo a punição sido resgatada do reino dos mortos pelo inciso XLV do artigo 5º da carta promulgada de 1988, em clara constitucionalidade superveniente.

Nesta linha da Constituição atual, diga-se, encontram-se os limites da transubjetivação de tais penas, que ultrapassarão o sujeito do infrator (i) unicamente aos seus sucessores, (ii) até a consumição do patrimônio transferido, e (iii) “(…) nos termos da lei”.

O segundo dos dissabores é atribuído aos aplicadores. A (correta) conclusão de que há determinadas hipóteses objetivas de dano ao Erário, ou “oboé”, conforme a preferência, em nada e por nada se confunde com (esdrúxula) hipótese de responsabilidade objetiva.

Deve soar cansativo dizer que a inflição de pena em razão da mera produção de resultado, indiferente ao aspecto subjetivo da conduta, é motivo de doloroso constrangimento ao mais calouro dos juristas: a culpa é o minimum minimorum demandado pelo castigo.[1]

Neste obscuro capítulo da hermenêutica se encontra o direito aduaneiro do inimigo, acossado do mal de enxergar no importador e no exportador a fonte constante de aborrecimentos e de perigo permanente.

Sob estas condições se torna possível estressar os limites de intenção, culpa e inocência no tribunal aduaneiro, e se invoca o divertido exemplo do sujeito que se dirige a uma loja de departamentos em busca de determinada televisão fabricada na República da Coréia. O vendedor, ao consultar seu sistema, informa não haver peças disponíveis em estoque e que somente entregará o objeto de desejo do interessado dentro de tantos dias. [2]

 O cliente aceita o prazo, paga integralmente, recebe a nota fiscal e se conformará a aguardar o curso dos dias até receber seu produto. A loja realiza a importação direta do bem e, assim que entregue em seu recinto, encaminha-o ao comprador.

Consumou-se a interposição fraudulenta? Entende-se que não, por não ter havido fraude ou simulação, ainda que a identidade do comprador jamais fosse dada a conhecer ao controle aduaneiro.

O que então constitui uma ocultação nocente, proscrita pelo ordenamento?

Cogite-se de uma empresa com Radar, prenhe em recursos e capacidade financeira, histórico exemplar sob os mais rígidos parâmetros do gerenciamento de risco.

Esta empresa acaba de celebrar contrato de venda com seu cliente, uma indústria que adianta 10% do preço a título de arras para adquirir uma peça proveniente da República da Coreia que utilizará em seu processo produtivo. O cliente assume eventuais riscos cambiais e a palavra importação consta em seu contrato.

A empresa realiza uma importação direta e, assim que entregue em seu recinto, entrega-o ao comprador mediante emissão de nota fiscal, possibilitando todo o tracking da operação.

Sob procedimento fiscalizatório, o auditor fiscal conclui pela existência de interposição fraudulenta que deve ser apenada com o perdimento da mercadoria. É a primeira vez que a empresa é fiscalizada e tem contra si realizada tal exigência.

A empresa, diligentemente, busca retificar as declarações de importação realizadas nos últimos cinco anos, tendo procedido sempre da mesma forma, mas tropeça na armadilha normativa do § 2º do artigo 102 do Decreto-Lei nº 37/1966, fosso impeditivo de seu compliance aduaneiro e tributário.

Informada de tal modus operandi, a autoridade fiscal decreta o perdimento e conversão em multa de todos os produtos importados pela empresa até onde sua visão alcança e a jurisprudência administrativa recorda a impossibilidade de reparar o dano causado ao controle aduaneiro como impeditiva de denúncia espontânea.

Sabedora de que ninguém se escusa de cumprir a lei alegando não a conhecer, a empresa buscará recorrer agora à razoabilidade e à proporcionalidade, uma vez que é a primeira vez que tem contra si realizada tal exigência, e que as modalidades de importação indireta existentes no Brasil são singulares diante da experiência internacional.

Parece-lhe coerente se afirmar que o culpado por imperícia não pode ser apenado da mesma forma que o fraudador deliberado. No entanto, seus argumentos são rapidamente fulminados com facilidade pelo julgador de ocasião com base no artigo 26-A do Decreto nº 70.235/1972, não cabendo à autoridade administrativa conhecer fundamentos de inconstitucionalidade.

Esquece-se com frequência, no entanto, que tais postulados se encontram previstos em diversos tratados e convenções internacionais dos quais o Brasil é signatário, de observância obrigatória nos termos do mesmo artigo 26-A costumeiramente utilizado para rechaçar tais argumentos.

Razoabilidade, dosimetria, reconhecimento de erro escusável, calibração ou relevação de pena no caso de condutas não reiteradas são velhos conhecidos dos leitores desta Coluna e facilmente identificáveis no Acordo de Facilitação do Comércio (OMC), na Convenção de Quioto Revisada (OMA), no acordo bilateral Brasil-Estados Unidos (Atec) e outros compromissos internacionais assumidos pelo Brasil.

Como aplicá-los, no entanto, sem assumir a decisão administrativa uma feição criativa, inovadora, ou sem se ultrapassar, no caso de uma decisão judicial, as fronteiras do legislador negativo? Como encontrar dosimetria onde apenas habita a lógica binária da culpa ou inocência? A legislação não faculta ao realizador da norma qualquer concessão entre zero e 100%.

A alternativa reclamada pela empresa é admitir seu erro, mas que não se trata de uma fraude, quando muito um equívoco fundado em sua imperícia ao lidar com a legislação brasileira, talvez mesmo orientada por algum profissional do Direito não acostumado às exigências aduaneiras e às especificidades (e perigos) das modalidades de importação indireta.

O erro na descrição da operação, em seu entendimento, não poderia atrair jamais a interposição fraudulenta, que não admite a modalidade culposa,[3] mas, quando muito, uma ocultação tola, mais próxima daquilo que se descreve no artigo 711 do Regulamento Aduaneiro.

São enormes os perigos da automedicação administrativa, hipótese na qual o julgador opta por ministrar a posologia penal que julga adequada à revelia de prescrição legislativa.

Uma vez afastada, por inocente, a acusação de interposição fraudulenta, não cabe ao julgador aplicar a multa de 1% (não por força do artigo 146 do Código Tributário Nacional, pois não se cogita de tributo), não apenas devido à implicação de preterição do direito de defesa, mas, sobretudo, porque a autoridade julgadora é incompetente para promover o lançamento.

Há, no entanto, de se decidir, em primeiro lugar, se a inocência deve ou não ser um critério relevante, e tal questão deve ser colocada na perspectiva da jurisprudência.

Insiste-se, uma vez que o Direito se ocupa dos casos da vida, no exemplo trazido para a nossa mesa de dissecação jurídica: a empresa se equivocou na modalidade de importação. Cometeu um erro lamentoso.

Constata-se, sob afiados bisturis argumentativos, que, desavisada, a empresa terá contra si cominada idêntica pena aplicada àquele importador manifestamente fraudulento: que abriu uma empresa de fachada, que não apresenta qualquer capacidade financeira, que vende a mercadoria com margem de lucro inexistente ou irrisória no mesmo dia do desembaraço, que visava deliberadamente quebrar a cadeia do IPI, que não tem estrutura física ou operacional, e cujo ocultado, devedor contumaz, teve seu acesso ao comércio internacional cassado pela Receita Federal.

Ambos, de boa ou má fé, serão atirados à idêntica masmorra de acordo com o que parece indicar a jurisprudência atual do Superior Tribunal de Justiça, para quem tais infrações constituiriam um dano presumido pela legislação, do que se dessume a prescindibilidade de comprovação do dolo, como no Recurso Especial nº 1.417.738/PE, relator Ministro Gurgel de Faria, decisão publicada em 5/5/2019:

“Os cenários previstos no artigo 23º do Decreto-Lei nº. 1.455/1976 e o artigo 105 do Decreto-Lei nº 37/1966, que permitem a aplicação da pena de caducidade, conferem presunção de lesão ao controle fiscal e/ou dano ao erário público, que pode ser ilidida pelo réu durante no decorrer do processo administrativo tributário” — (seleção nossa).

Criou-se, desta feita, a exigência ao acusado de demonstrar nenhum dano ter sido infligido ao controle aduaneiro ou ao Erário público para tornar dotar a ausência de intenção eficiente para afastar a infração.

A inocência qualificada aponta para uma nova construção: a boa-fé do importador ou exportador deve vir acompanhada da demonstração da ausência de prejuízo para elidir a acusação da interposição fraudulenta.

À ocultação fraudulenta se opõe não mais a ocultação inocente, mas a ocultação inocente qualificada, ou seja, sem produção de resultado (danoso).

Melhor sorte não socorre a empresa na esfera administrativa: no Acórdão CSRF nº 9303-011.114, proferido em 19/01/2021, entendeu-se que a ocultação se trata de infração de mera conduta, que independe da demonstração pelo fisco da presença do elemento volitivo dos atos praticados para configurá-la.

Neste sentido, os Acórdãos CSRF nº 9303-006.002 (29/11/2017), nº 9303-008.721 (12/06/2019), nº 9303-007.452 (20/09/2018), e nº 9303-006.509 (14/03/2018).[4]

Segundo a o entendimento predominante nestas decisões, uma vez que as modalidades de importação e a infração de interposição fraudulenta constituem elemento essencial elemento de controle das operações de comércio internacional, “(…) condicionar a aplicação de penalidade à demonstração do dano real ou à demonstração do elemento volitivo prejudicaria sua essência instrumental como meio de viabilizar o monitoramento fiscal“, trecho retirado do Acórdão CSRF nº 9303-010.174 (13/2/2020).

Ressalva-se que ainda maior espécie causará a eventual alteração de posicionamento do Carf no sentido de reconhecer que sem intenção não se dispara o aparato sancionador do artigo 23 do Decreto-Lei nº 1.455/1976, como seria correto se compreender. Explica-se com a seguinte indagação.

Como será possível conviverem em um mesmo ordenamento, sem afronta ao princípio da isonomia, empresas em situação de equivalência com decisões ora favoráveis ao afastamento da multa de 100%, por não haver se demonstrado o dolo, ora mantendo o perdimento, no âmbito do Centro de Julgamento de Penalidades Aduaneiras (Cejul) regulado pelas Portarias MF nº 1.005/2023 e RFB nº 348/2023 com fundamento na ilegal Lei 14.651/2023?[5]

Desde meados do século 17, a afinação dos instrumentos começa com o lamento em Lá do oboé que, no centro dos naipes da orquestra, é facilmente ouvido pelos músicos.

Assim como se exige imenso fôlego do oboísta, também do Poder Judiciário se demandará considerável esforço para a promoção de um sopro isonômico voltado a afinar o posicionamento dos tribunais administrativos, questão se torna praticamente secundária em um ambiente sancionatório e hostil às empresas importadoras e exportadoras em que, apesar de todos os esforços internacionais em sentido contrário, toda inocência será castigada.


[1] Assim já defendemos em diversas oportunidades, como em artigo sobre o Direito Aduaneiro Sancionador escrito em parceria com Thális Andrade disponível neste link, ou em artigo escrito há 10 anos em parceria com Caio Augusto Takano, disponível neste link.

[2] O exemplo é de autoria do conselheiro Rosaldo Trevisan e pode ser encontrado no Acórdão CARF nº 3301-002.636.

[3] Assim defenderam, de maneira acertada e competente, Carlos Eduardo de Arruda Navarro em sua dissertação de mestrado na FGV (link) e Marcelle Silbiger de Stefano em seu livro (link).

[4]Existem diversas decisões das câmaras inferiores do CARF exigindo comprovação específica de intenção, mas elas vêm diminuindo devido à consolidação do cargo na Câmara Superior. Para um estudo específico sobre o tema, sugere-se o artigo de Diego Diniz Ribeiro (link).

[5] Lei que cometeu um seriado de violações ao ordenamento brasileiro, como demonstramos em artigo em parceria com Oswaldo Gonçalves de Castro neto neste link.

Revista Consultor Jurídico, 3 de outubro de 2023, 11h13

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