Prescrição intercorrente, Tema nº 1.293 e as respostas pretéritas para as questões futuras

Por Carlos Augusto Daniel Neto

Prescrição intercorrente, Tema nº 1.293 e as respostas pretéritas para as questões futuras

Temos discutido desde o início de 2021 (É hora de refletir sobre a Súmula nº 11 do Carf) o tema da prescrição intercorrente das multas aduaneiras no PAF, sujeitas ao regime da Lei nº 9.873/99, que prevê expressamente esse instituto, a ser aplicado no prazo de três anos.

Temos discutido desde o início de 2021 (É hora de refletir sobre a Súmula nº 11 do Carf) o tema da prescrição intercorrente das multas aduaneiras no PAF, sujeitas ao regime da Lei nº 9.873/99, que prevê expressamente esse instituto, a ser aplicado no prazo de três anos.

A sua importância é evidenciada pelo Sistema VER [1] (utilizando os termos “prescrição intercorrente” e “multa aduaneira” e “súmula Carf nº 11”), onde identificamos nos últimos cinco anos a questão suscitada em 623 acórdãos, que a rechaçaram com base na súmula nº 11.

Depois de anos de debates acadêmicos e litígios, o tema foi analisado pela 1ª e 2ª turmas do STJ (AgInt no REsp 2.148.053/RJ e REsp 1.942.072/RS), que reconheceram a aplicabilidade da prescrição intercorrente para as multas aduaneiras, independentemente do rito a que se sujeitassem (por se tratar de questão material, e não processual). Não obstante, o Carf seguiu de modo uniforme rejeitando esse entendimento, com base na súmula nº 11 (e.g. Ac. 3402-012.157 e 3402-011.366).

Amadurecida a questão e afetada à sistemática de recursos repetitivos, foi finalmente julgada em 12/3/2025, firmando no Tema Repetitivo nº 1.293 as seguintes teses:

“1. Incide a prescrição intercorrente prevista no art. 1º, §1º, da Lei 9.873/1999 quando paralisado o processo administrativo de apuração de infrações aduaneiras, de natureza não tributária, por mais de 3 anos.

2. A natureza jurídica do crédito correspondente à sanção pela infração à legislação aduaneira é de direito administrativo (não tributário) se a norma infringida visa primordialmente ao controle do trânsito internacional de mercadorias ou à regularidade do serviço aduaneiro, ainda que, reflexamente, possa colaborar para a fiscalização do recolhimento dos tributos incidentes sobre a operação.

3. Não incidirá o art.1º, §1º, da Lei 9.873/99 apenas se a obrigação descumprida conquanto inserida em ambiente aduaneiro, destinava-se direta e imediatamente à arrecadação ou à fiscalização dos tributos incidentes sobre o negócio jurídico realizado.”

O julgamento corrobora e torna vinculante – inclusive para o Carf – o que há muito defendemos, especialmente nessa coluna, e torna insustentável a aplicação irrestrita da súmula Carf nº 11. Por outro lado, com uma vindoura análise material da aplicação da Lei nº 9.873/99, e não mais seu “rechace apriorístico” pela súmula, novos problemas deverão surgir, que precisarão ser endereçados.

Na coluna de hoje colocaremos algumas questões, à luz das teses do julgamento, cabendo-nos aguardar a publicação do acórdão para analisar o seu inteiro teor e os elementos que compõem sua ratio.

1) A aplicação do Tema nº 1.293 no Carf e o que fazer com a Súmula nº 11

É sabido que “é desnecessário o trânsito em julgado da decisão proferida em recurso especial (…) para a adoção da tese nele firmada” (por todos, v. AgRg no REsp 1.218.277-RS). Basta a publicação da decisão para a sua aplicação aos casos afetados, no âmbito do respectivo tribunal. Nesse sentido, o Tema nº 1.293 poderá ser aplicado pelo Judiciário, desde a publicação da decisão, não apenas para os casos pendentes de análise, mas também para os posteriormente ajuziados, inclusive com a possibilidade de concessão de tutela de evidência (artigo 311, II, do CPC/15).

No Carf, entretanto, o regimento condiciona a aplicação obrigatória dos recursos repetitivos ao trânsito em julgado das decisões de mérito proferidas pelo STJ (artigo 99 do Ricarf). Por outro lado, esse mesmo regimento prevê que, uma vez proferido acórdão de mérito nessa sistemática, é obrigatório o sobrestamento do julgamento de processos administrativos potencialmente afetados, quando a decisão declare a ilegalidade da norma, para aguardar o seu trânsito em julgado (artigo 100 do Ricarf).

Ainda que as teses do repetitivo sob análise não declarem formalmente a ilegalidade de alguma norma, indiretamente o seu efeito é tornar ilegais quaisquer interpretações que restrinjam a observância da Lei nº 9.873/99 para créditos não tributários, incluindo aí a interpretação “ampliativa” que vem sendo dada à Súmula nº 11, bem como as demais teses “construídas” para tentar rechaçar a correta aplicação da lei.

Portanto, exatamente como defendemos quando da publicação do Tema nº 69 do STF, na linha do artigo 100 do Ricarf, os casos potencialmente afetados pelo Tema nº 1.293 deverão ser objeto de suspensão até que transcorra seu trânsito em julgado, como recente e corretamente feito no PAF nº 10907.721161/2013-11.

E o que fazer com a Súmula nº 11?

Como há muito sustentamos, não é necessário reformulá-la por isso, pois a simples análise dos seus precedentes já mostra que eles não trataram de créditos não tributários, bem como nunca enfrentaram a aplicação do artigo 1º, §1º, da Lei nº 9.873/99, às multas aduaneiras. Ou seja, ela nunca foi um óbice real ao enfrentamento da questão, mas apenas o totem de um tabu hermenêutico daquele tribunal.

Por outro lado, é de se reconhecer que o verbete da referida súmula foi, desde o início, mal redigido, sem refletir de maneira clara os casos precedentes e as rationes daí decorrentes, colaborando para que a jurisprudência se excedesse em seu alcance. Portanto, independentemente da questão tratada pelo Tema nº 1293, a súmula Carf nº 11 deveria ser objeto de revisão para sua melhor adequação aos precedentes (artigo 124 do Ricarf).

2) As hipóteses de interrupção da prescrição intercorrente

Um ponto que poderia potencialmente suscitar discussões são as causas de interrupção da prescrição intercorrente, presentes no próprio §1º do art. 1º da Lei nº 9.873/99.

A respeito disso, o REsp nº 1.942.072/RS esclareceu que “não há interrupção do prazo prescricional intercorrente previsto no § 1º do art. 1º da Lei n. 9.873/1999, a não ser nas hipóteses ali previstas, quais sejam, a prolação de julgamento ou de despacho”. O julgado rechaça, de pronto, qualquer tentativa de ampliar as hipóteses de suspensão da prescrição intercorrente.

O termo “prolação de julgamento” é relativamente simples. Ele corresponde ao momento em que o processo é efetivamente julgado – não se confundindo com a publicação do respectivo acórdão, que pode ocorrer posteriormente. No âmbito do Carf, isso se dá com a proclamação do resultado, pelo presidente, ao final do julgamento (artigo 105 do Ricarf). Atos como sorteio, indicação para pauta ou início do julgamento evidentemente não correspondem à “prolação do julgamento”, pois não há tomada de decisão, não tendo efeito interruptivo.

O termo “despacho”, por outro lado, pode abranger uma grande quantidade de atos distintos, de caráter decisório ou meramente ordinatórios (incluindo simples expedientes). Isso poderia levar à equivocada ideia de que bastaria que a Administração ficasse promovendo expedientes de movimentação do processo, para que a prescrição intercorrente fosse reiteradamente interrompida – fraudando, assim, a própria intenção do legislador com o instituto.

Felizmente, essa questão já foi levada ao STJ diversas vezes, especificamente para a Lei nº 9.873/99, se manifestando a Corte, em todas as oportunidades, no sentido de que apenas os atos processuais de cunho decisório ou instrutório teriam o condão de interromper a prescrição intercorrente. Veja-se, por exemplo, o AgInt no REsp 1.857.798/PE, onde se apontou que “os atos processuais praticados no processo administrativo (…) são desprovidos de cunho decisório e não têm o condão de interromper o curso da prescrição (…)”. Esse entendimento é adotado em ambas as turmas da 1ª Seção, sendo bem sumarizado em voto do ministro Benedito Gonçalves, no AREsp nº 1.991.251/SP, verbis:

Segundo a jurisprudência desta Corte, quando do exercício do poder sancionador, em regra, os despachos que impulsionam o trâmite do processo administrativo, sem caráter decisório ou apurativo, não têm o condão de interromper os prazos prescricionais, ainda que se trate de prescrição intercorrente.

No mesmo sentido, v. AREsps nº 1.521.023/PR, 1677479/PR, 1.521.028/PR, 1.108.815/RJ, 1941353/RS, AgInt no AREsp nº 1.148.931/SP etc. Na prática, trata-se de um problema que já foi resolvido pelo STJ ao analisar o artigo 1º, §1º, da Lei nº 9.873/99, em outras oportunidades, evidenciando que a interrupção da prescrição intercorrente se daria apenas por despachos de caráter decisório ou apurativo.

Voltando ao âmbito do Carf, parece-nos que esse caráter (decisório ou apurativo) estaria presente apenas nas seguintes situações 1) resoluções (que convertem o julgamento em diligência); e 2)  despachos 2.a) de admissibilidade para embargos de declaração, recursos especiais e arguições de nulidade; 2.b) que analisem agravo; e 2.c) que declarem intempestividade, desistência ou renúncia.

3) A determinação da natureza jurídica dos créditos analisados

Outro ponto que deve suscitar discussões é a determinação do regime jurídico dos créditos analisados. Como definir quais teriam natureza tributária e quais não?

As teses do Tema nº1292 abordaram essa questão nos itens 2 e 3, com uma clara preponderância do regime não tributário, nos casos de sobreposição de finalidades.

No item 2, ele esclarece que a natureza será não tributária se a norma infringida “visa primordialmente ao controle do trânsito internacional de mercadorias ou à regularidade do serviço aduaneiro, ainda que, reflexamente, possa colaborar para a fiscalização do recolhimento dos tributos incidentes sobre a operação”. Por outro lado, no item 3, estabelece de forma mais clara os casos em que a multa será tributária: “apenas se a obrigação descumprida conquanto inserida em ambiente aduaneiro, destinava-se direta e imediatamente à arrecadação ou à fiscalização dos tributos incidentes sobre o negócio jurídico realizado”.

Portanto, os critérios adotados na tese limitam a natureza tributária às obrigações direta e imediatamente destinadas à arrecadação ou à fiscalização, sendo os demais casos considerados “não tributários”. A aplicação e elucidação desse critério, ainda assim, envolvem certo grau de subjetividade.

Apesar dessa subjetividade, dogmaticamente podemos estabelecer um caso extremo do que seria puramente aduaneiro: as multas decorrentes da conversão da pena de perdimento [2], com base no artigo 23, §3º, do Decreto-lei nº 1.455/77, cuja cobrança sob o rito do Decreto nº 70.235/72 depende de uma remissão específica. Se o perdimento é uma sanção estritamente aduaneira, também o é, por pura lógica, a multa decorrente da sua conversão – como reiteradamente afirmado pelo STJ, “no sentido de que a multa por conversão de pena de perdimento por infração da legislação aduaneira ostenta natureza administrativa, não tributária” (v. REsp nº 2.176.103/RS, AgInt nos EDcl no REsp 1.701.968/PR, AgInt no REsp nº 1.871.567/RN, REsp nº 1.701.968/PR etc.).

Portanto, estarão sujeitos à aplicação do Tema nº 1293 todas as multas decorrentes das infrações dos artigos 23, 24 e 26 do DL nº 1.455/77 e artigo 105 do DL 37/66. Este parece ser um limite dogmático seguro para seguirmos.

Felizmente, para as demais multas, o Judiciário e o Carf têm se ocupado, ao longo dos últimos anos e em diversos contextos, em definir sua natureza jurídica. Devemos, portanto, nos socorrer dessa vasta jurisprudência, na esperança de que os próprios tribunais cuidem de mantê-la estável, íntegra e coerente.

No âmbito do Carf, podemos partir da Súmula Carf nº 184 [3], que adjudica o regime decadencial próprio às infrações aduaneiras. Nos seus precedentes fundantes, considerou-se como aduaneiras as seguintes multas: 1) artigo 107, IV do DL 37/66 (Ac. 9303-007.645); 2) artigo 84 da MP nº 2.158-35 c/c artigo 69, §1º da Lei nº 10.833/2003 (Ac. 3402-007.092); 3) artigo 618, §1º do RA/02 – pena de perdimento convertida em multa (Ac. 3402-007.092, 3201-002.818, 9303-010.198); 4) artigo 83 da Lei nº 4.502/64 (Ac. 3402-007.222); 5) artigo 169, inciso I, “b”, Decreto Lei 37/66 (Ac. 3402-007.222).

Essa súmula, inclusive, tem sido aplicada também a outras multas, refletindo o entendimento do órgão quanto à sua natureza, a exemplo: 1) art. 107, IV, “c”, “e” e “f” do DL 37/66 (Ac. 3002-002.238, 3201-010.754 e 3003-002.080, respectivamente); 2) artigo 716 do RA/2009 (Ac. 3002-002.242); 3) artigo 3º do DL nº 399/68 (Ac. 3002-002.559); 4) artigo 69, §1º da Lei nº 10.833/03 (Ac. 3402-012.330); 5) artigo 33 da Lei nº 11.488/07 (multa por cessão de nome, Ac. 3402-012.145); 6) artigo 711, III do RA/2009 (Ac. 3402-012.145); 8) artigo 70, inciso II, alínea “b”, item 2, da Lei nº 10.833/03 (Ac. 3402-012.145) etc.

Em oportuna lembrança, entre 2020 e 2023, o Carf se ocupou intensamente na afirmação da natureza aduaneira de diversas multas, para afastar a observância do art. 19-E da Lei nº 10.522/02, mantendo a aplicação do voto de qualidade, com fundamento na Portaria ME nº 260/2020. Entre as multas consideradas aduaneiras nesse período estão: 1) artigo 706, inciso I, “a” do RA/2009 (Ac. 3401-007.887); 2) artigo 3, p.u., do DL 399/67 (Ac. 3401-008.403); 3) artigo 84, inciso I, da MP n° 2.158-35/2001 – erro de classificação (Ac. 3401-008.042); 4) artigo 169, I, “b”, do DL n° 37/66 (Ac. 3401-008.042); 5) artigo 33 da Lei nº 11.488/2007 (Ac. 3002-002.174); entre outras.

No âmbito do STJ, além das multas por conversão da pena de perdimento, reconheceu-se a natureza aduaneira para outra sanções, como as multas do 1) artigo 107, IV do DL 37/66 (REsp 1.999.532); 2) artigo 621 do RA/2002 (REsp 1.942.072); 3) artigo 632 do RA/2002 (REsp 1.942.072) etc. Esse número deve aumentar substancialmente, com o início da aplicação do Tema 1.293 aos diversos casos atualmente suspensos.

Ante a variedade das análises do Judiciário e, especialmente, do Carf, esperamos que a insegurança na aplicação do Tema nº 1.293 seja substancialmente reduzida. Afinal, não é lógico, nem coerente, que se repute uma multa como aduaneira para fins decadenciais ou para ressalvar o desempate pró-administrado, mas não para aplicação da prescrição intercorrente, conforme o repetitivo.

Como dissemos acima, espera-se que os tribunais façam valer a sua própria jurisprudência a respeito da natureza das multas aduaneiras, para determinar o alcance e aplicabilidade do repetitivo.

Conclusão

As teses firmadas no Tema nº 1.293 dignificam o Direito Aduaneiro e ensejam uma reflexão mais ampla sobre o alcance desse regime jurídico.

Entretanto, no Brasil, os problemas jurídicos costumam ser como os monarcas: a morte de um costuma marcar a sucessão de outros, em um perpétuo e contínuo ciclo de sujeição – lá à monarquia, aqui aos desafios interpretativos que deverão, doravante, ser enfrentados. Como dizem alhures: The King is dead. Long live the King!


[1] Projeto VER

[2] Nesse sentido, v. TREVISAN, Rosaldo. Prescrição intercorrente e Aduana: “Back to the future” (parte 2); e FERNANDES, Rodrigo Mineiro. Introdução ao Direito Aduaneiro. p.132-137.

[3] “O prazo decadencial para aplicação de penalidade por infração aduaneira é de 5 (cinco) anos contados da data da infração, nos termos dos artigos 138 e 139, ambos do Decreto-Lei n.º 37/66 e do artigo 753 do Decreto n.º 6.759/2009”.

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