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O período de graça do artigo 47 da Lei 9.430: questão de método ou de metódica?

Na coluna de hoje, trataremos sobre a interpretação de um dispositivo aparentemente singelo, mas cuja compreensão — e aplicação — atrai grande complexidade e gera divergências no âmbito da jurisprudência do Carf. Estamos nos referindo ao artigo 47 da Lei nº 9.430/96, que dispõe, verbis:

“Art. 47. A pessoa física ou jurídica submetida a ação fiscal por parte da Secretaria da Receita Federal poderá pagar, até o vigésimo dia subseqüente à data de recebimento do termo de início de fiscalização, os tributos e contribuições já declarados, de que for sujeito passivo como contribuinte ou responsável, com os acréscimos legais aplicáveis nos casos de procedimento espontâneo“.

Sem se confundir com a denúncia espontânea a que se refere o artigo 138 do CTN [1], esse dispositivo estabelece um “período de graça” para que o contribuinte pague seus tributos acompanhados apenas dos juros de mora (excluindo-se as multas), dentro de 20 dias da ciência do início da fiscalização. A única condição estabelecida pela sua redação é que essas exações estejam declaradas.

Apesar da aparente singeleza, há extensa controvérsia sobre a natureza da declaração que atenderia à condicionante em questão, com relação a seu efeito constitutivo do crédito tributário. De um lado, defende-se que qualquer declaração (e.g. DIRF, DIPJ etc.) teria o efeito de desencadear o “período de graça”, por outro, que apenas aquelas caracterizadas como confissão de dívida (e.g. DCTF) teria essa consequência.

Relata Rosaldo Trevisan, no Ac. nº 3401-006.590 [2], que originalmente, no PL nº 2.448/96 (Mensagem 990 de 16/10/1996), de iniciativa do Executivo, o dispositivo se referia apenas aos tributos “já lançados“. Entretanto, uma das adaptações propostas no curso do processo legislativo foi inclusão da expressão “declarados“, sob a seguinte justificativa, verbis:

“O projeto se refere aos ‘débitos fiscais já lançados’. Convém, no entanto, estender a prerrogativa para os ‘débitos declarados’, ante a nova hipótese de exigência de multa de ofício nos casos em que os contribuintes declaram seus débitos e deixam de pagá-los nos prazos estabelecidos. Lançada, nesta hipótese, a multa de ofício, é plausível que os contribuintes que tomam a iniciativa de declarar os débitos (DCTF) tenham, no mínimo, as mesmas regalias que os contribuintes que não os declaram e, em conseqüência, sofrem o lançamento de ofício.”

Portanto, na redação promulgada da Lei nº 9.430/96, fazia-se referência a tributos “já lançados ou declarados“. Não obstante, a MP nº 1.602/97, convertida na Lei nº 9.532/97, altera a redação para suprimir a expressão “lançados“, remanescendo apenas a referência aos tributos “ declarados“, sem, contudo, apresentar qualquer motivação para essa alteração específica.

Com base na referência do PL nº 2.448/96 à DCTF, Trevisan aduz que a expressão “declarados” se refere apenas às declarações constitutivas, que dispensariam a necessidade de lançamento, traçando inclusive uma distinção com a denúncia espontânea, que não seria aplicável aos tributos constituídos por declaração do contribuinte (lançamento por homologação) e pagos a destempo. Para ele, o “período de graça” do artigo 47 contemplaria casos em que não caberia mais a denúncia espontânea, em razão da declaração constitutiva do contribuinte.

Nessa mesma linha, no Ac. nº 9101-006.235 [3], Fernando Brasil aborda a questão sob outro ângulo histórico.

Ele aduz que à época da edição da Lei nº 9.430/96, tanto a DCTF quanto a DIRPJ tinham caráter de confissão de dívida, e que, caso o contribuinte alocasse o débito a formas de extinção não comprovada, a RFB somente encaminharia para cobrança, com inscrição em CDA, os saldos a pagar informados. Em relação àqueles declarados indevidamente como extintos, a RFB realizava o lançamento de ofício, com multa de 75%, cobrada em caso de falta de declaração ou falta de recolhimento.

Ele aponta que a IN SRF nº 77/98 veiculava interpretação nesse sentido, em seu artigo 2º e §2º, I, ao aduzir que os saldos a pagar constantes nas DCTFs (artigo 2º da IN SRF nº 45/98), exigidos por auto de infração, poderiam ser pagos até o vigésimo dia com a dispensa da multa de ofício de 75%, decorrente da falta de recolhimento. Nessa linha, a interpretação da RFB afirmava que o artigo 47 se aplicava aos casos de crédito tributário constituído, por ato do contribuinte, mas ainda não pago.

Além disso, afirma que o artigo 90 da MP nº 2.158-35/2001 corroboraria o entendimento praticado pela fiscalização desde a IN nº 77/98, determinando que se realizasse o lançamento de ofício nos casos de declarações de débitos com extinção ou suspensão indevida ou não comprovada. Por fim, aduz que a DIPJ, criada apenas com a IN SRF nº 127/98, não teria natureza constitutiva do crédito e, portanto, os débitos lá declarados não deveriam ser considerados, para fins de aplicação do artigo 47 da Lei nº 9.430/96.

A sistemática estruturada nesses votos atende à seguinte lógica: 1) se o contribuinte não tiver constituído seus débitos (e.g. declarando-os apenas em DIPJ), ele poderia fazer a denúncia espontânea do art. 138 do CTN, antes do início da fiscalização; 2) caso ele tenha constituído seus débitos, mas não haja liquidação vinculada (artigo 7º da IN SRF nº 73/96), ou a extinção seja indevida ou não comprovada, não caberia mais a invocação da denúncia espontânea (súmula 360 do STJ), mas caberia a aplicação do artigo 47 na hipótese de iniciada a fiscalização.

Trata-se de uma interpretação restritiva que, à evidência, se utiliza dos métodos histórico (analisando a evolução da legislação), genético (compulsando os trabalhos preparatórios e debates legislativos) e sistemático (construindo um sentido a partir da coordenação com outras regras do ordenamento).

Por outro lado, Luís Henrique Toselli, no mesmo Ac. nº 9101-006.235, apresenta voto aduzindo que “não há (…) nenhuma restrição na Lei quanto aos efeitos ou tipo de declaração (se constitutiva ou não) a ser ‘beneficiada’. Pelo contrário, o Legislador reconheceu que esse ‘benefício’ deve ser aplicado a tributos e contribuições declarados, e nada mais!“. Afirma, ademais, que a DIPJ seria uma “declaração ao Fisco“, atendendo à exigência do artigo 47, de modo que a criação de exceções não previstas na regra ofenderia à legalidade.

Nessa mesma linha, Júlio César Ramos, no Ac. nº 9303-002.397 [4] aponta a inexistência de elementos na exposição de motivos da MP nº 1.602/97 que permitam concluir por uma interpretação restritiva do artigo 47. Além disso, que a sistemática referida geraria um estímulo ao adimplemento por parte do contribuinte que declara seus débitos apenas em declarações de caráter informativo, reduzindo a multa de ofício para o patamar da multa de mora. A regra traria tratamento mais benéfico ao contribuinte que declarou seus débitos, mas apenas não os pagou.

Com outros argumentos, Nelso Kichel, no Ac. nº 1401-004.141 [5], aduz que originalmente, no artigo 19 da Lei nº 3.470/58, o “período de graça” era dado apenas a débitos já constituídos, mas que o artigo 47 da Lei nº 9.430/96 ampliou o seu alcance. Além disso, afirma que os débitos declarados em DCTF já estavam aptos a serem inscritos em dívida e cobrados, conforme a legislação vigente à época, ao passo que os informados em declarações informativas não poderiam ser objeto da denúncia espontânea do artigo 138, razão pela qual conclui que o dispositivo seria destinado justamente a estas, e não àquelas (nesse sentido, também, Ac. nº 1302-005.392).

Aqui, há uma interpretação literal, mas com reforço de sentido baseada nos métodos histórico e sistemático (em especial a coordenação com as regras relativas à cobrança de débitos declarados e da denúncia espontânea).

Ambas as posições apresentam sólidos argumentos, calcados em métodos de interpretação consagrados, e conduzem a posições divergentes. Como escolher um como dogmaticamente correto? Ou como determinar que método de interpretação deva preponderar? Essa é uma das questões mais espinhosas da teoria do Direito.

Ao longo do tempo, diversos teóricos apresentaram propostas distintas de escalonamento da importância dos métodos na determinação de sentido do texto. Da nossa parte, concordamos com L.A. Warat, no sentido de que os métodos de interpretação são diretrizes retóricas para o raciocínio do jurista, mas que sempre ocultaram o compromisso ideológico do decisor — nas suas palavras, “pode ser consideradas o álibi teórico para emergência das crenças que orientam a aplicação do direito” [6].

Em suma, pretender escalonar os métodos aplicados nas duas soluções apresentadas nos conduziria a apenas circundar a controvérsia, a partir da nossa ponderação própria a respeito, sem desatá-la. Não é o caminho que seguiremos aqui.

Precisamos dar um passo atrás e nos questionar: qual a natureza jurídica do artigo 47?

Da análise dos acórdãos do Carf, podemos concluir que, a despeito de não se confundir com a denúncia espontânea, por terem âmbitos de aplicação distintos, as decisões implicitamente reconhecem neles naturezas jurídicas similares, por três razões: 1) o argumento sistemático é desenvolvido, em ambas as linhas, a partir da interação entre o artigo 47 e o artigo 138 do CTN, demonstrando a necessidade de coordenação entre eles; 2) a maioria das decisões tratam o artigo 47 como uma prorrogação temporal (e.g. Ac. nº 9101-004.249) ou um caso específico da legislação ordinária (e.g. Ac. nº 107-06.112) da denúncia espontânea; e 3) elas possuem a mesma finalidade (estímulo do adimplemento voluntário) e efeitos (exclusão da responsabilidade).

A partir dessa evidente proximidade (e não identidade) com a denúncia espontânea, podemos identificar algumas correntes.

Uma primeira corrente entenderia que o artigo 47 se trata de um benefício fiscal estabelecido em favor do contribuinte que voluntariamente repara seu ilícito, gozando da exclusão da responsabilidade infracional, na linha decidida pelo Ac. nº 9101-005.330 e do AgInt no AREsp 1.687.605, no STJ [7].

Uma segunda corrente aduziria que o artigo 47 estaria para o Direito Tributário como o arrependimento eficaz está para o Penal, oferecendo uma “ponte de ouro” para o regresso do infrator ao caminho da lei (e.g. Ac. nº 9303-003.555 [8]), que teria, apesar da consumação da infração, o efeito de abrandar a punibilidade (e.g. Ac. nº 1201-004.671 [9]). Em suma, tanto o artigo 138 do CTN quanto o artigo 47 seriam regras de arrependimento eficaz no direito tributário, tendo como efeito a exclusão da punibilidade do agente, i.e., a responsabilidade pela infração (“A responsabilidade é excluída…“), nessa linha, AgRg no REsp nº 1.100.509/RS [10].

De forma sucinta, adotamos a segunda linha: tanto o artigo 138 do CTN quanto o artigo 47 da Lei nº 9.430/96 são regras que estabelecem hipóteses de exclusão da punibilidade do agente, baseadas na adaptação de um instituto do Direito Penal para o âmbito tributário. Não se trata de benefícios fiscais por não se enquadrar em nenhuma das hipóteses de desoneração tributária arroladas do artigo 150, §6º da CF/88.

Pois bem. Diante da incapacidade dos métodos interpretativos de resolver a questão, entendemos que a solução do imbróglio reside na identificação da natureza jurídica do instituto. Isso se dá porque o direito positivo, em relação a determinadas matérias estabelece metódicas específicas de interpretação e aplicaçãoi.e. metarregras que determinam de forma vinculantes como devem ser interpretadas determinadas disposições, em função da sua natureza jurídica.

Caso se considere o artigo 47 um benefício fiscal, haveria que se observar na sua interpretação o artigo 111 do CTN [11] (cujo alcance tem sido estendido, pela jurisprudência, a todos os benefícios fiscais), que determina a observância do sentido literal do dispositivo. Nessa linha, o STJ já reconheceu que a interpretação literal, por um lado, veda a criação de exceções não previstas textualmente (AgRg no REsp 1.517.703/RS [12]), e por outro, proíbe a utilização de interpretações extensivas ou analógicas para ampliar o alcance das regras (REsp nº 1.116.620/BA [13]).

Portanto, se tornaria cogente a adoção da segunda linha interpretativa apresentada, a despeito dos diversos métodos que justificariam a primeira.

De outro giro, caso se considere o artigo 47 uma regra de exclusão de punibilidade, a sua interpretação estaria necessariamente sujeita ao regime jurídico do artigo 112, III, do CTN [14]. Deve-se esclarecer que a cominação da punibilidade é a resultante normativa da coordenação das regras que a estabelecem de forma positiva e negativa, portanto, a dúvida sobre a interpretação do artigo 47 refletiria no alcance da excludente e, portanto, acerca da extensão e condições da punibilidade dos agentes em infrações tributárias.

O artigo 112, III, do CTN estabelece que na hipótese em que se demonstre haver dúvida interpretativa objetiva, isto é, mais de um sentido possível para um mesmo dispositivo que trata da punibilidade dos agentes, deve-se necessariamente adotar o sentido mais favorável aos acusados. Logo, em se tratando de uma regra de exclusão de punibilidade, deve preponderar o sentido possível que amplie o seu alcancei.e. o sentido literal, da segunda linha interpretativa.

Como se vê, apesar da controvérsia existente a partir da aplicação de diferentes métodos de interpretação ao artigo 47, ela deixa de existir a partir do momento em que se avalia a natureza jurídica desse instituto, por força da aplicação das metarregras interpretativa que o CTN estabelece. Onde os métodos evidenciaram a controvérsia, as metódicas interpretativas legais acabaram por lhe dar uma solução segura.

Causa espécie que em nenhuma das decisões compulsadas, a natureza jurídica do instituto ou a aplicação dos artigos 111 e 112 do CTN foram sequer mencionadas, razão pela qual esses argumentos ainda pendem de análise técnica pelo Carf e pelo Judiciário, no enfrentamento desse tema — esperamos com esse artigo fomentar esse necessário debate.

[1] Art. 138. A responsabilidade é excluída pela denúncia espontânea da infração, acompanhada, se for o caso, do pagamento do tributo devido e dos juros de mora, ou do depósito da importância arbitrada pela autoridade administrativa, quando o montante do tributo dependa de apuração.

[2] Rel. Rosaldo Trevisan, j. 18/6/2019.

[3] Rel. Fernando Brasil, j. 5/8/2022.

[4] Rel. Júlio César Ramos, j. 15/8/2013.

[5] Rel. Nelso Kichel, j. 20/1/2020

[6] WARAT, Luiz Alberto. Introdução Geral ao Direito, v.I. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1994, p.88.

[7] Rel. min. MAURO CAMPBELL, DJe 3/12/2020.

[8] Redator Henrique Pinheiro Torres, j. 28/7/2016.

[9] Rel. Neudson Albuquerque, j. 11/2/2021.

[10] Rel. min. Luiz Fux, DJe 16/3/2010.

[11] Art. 111. Interpreta-se literalmente a legislação tributária que disponha sobre: (…)

[12] Rel. ministra Assusete Magalhães, DJe 01/7/2015.

[13] Rel. ministro Luiz Fux, DJe 25/8/2010.

[14] Art. 112. A lei tributária que define infrações, ou lhe comina penalidades, interpreta-se da maneira mais favorável ao acusado, em caso de dúvida quanto:

III – à autoria, imputabilidade, ou punibilidade;

Postado originalmente no site do ConJur.

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