Lei nº 14.689/23: a fantástica fábrica do metacontencioso tributário

Por Carlos Augusto Daniel Neto

Recentemente, foi promulgada a Lei nº 14.689/23, decorrente da sanção, com vetos, do PL nº 2.384/23 (PL do Carf), alterando profundamente o processo administrativo e judicial tributário e as multas no âmbito federal. Já apresentamos nossas críticas a ele em outra oportunidade [1]. Entretanto, passada a etapa legislativa, devemos ir além e analisar dogmaticamente alguns possíveis problemas concretos na sua aplicação.

1) O §9º-A do artigo 25 do Decreto nº 70.235/72  o voto de qualidade e seus efeitos
a) Restrição a cada capítulo da decisão
O §9º-A foi bastante amplo ao determinar a exclusão de multas e cancelamento da representação fiscal “na hipótese de julgamento (…) resolvido favoravelmente à Fazenda Pública pelo voto de qualidade”, pois, pela sua literalidade, bastaria que qualquer um dos capítulos da decisão fosse resolvido pelo método de desempate para se gozar do benefício.

Entre os capítulos do acórdão, podemos ter questões de admissibilidade, preliminares processuais, preliminares de mérito e as questões meritórias. Trata-se, na lição da doutrina processual, de parcelas da decisão autônomas e independentes entre si [2] —daí causar espécie, à primeira vista, que a existência de empate com voto de qualidade (VQ) em um deles gere efeitos sobre outros, a despeito da inexistência de qualquer prejudicialidade interna entre as questões.

Entretanto, é preciso compreender que os novos efeitos do voto de qualidade são de natureza exoprocessual (de direito material) e não endoprocessual (de caráter processual) [3]. Logo, não afetam o conteúdo decisório do julgamento (proclamação do resultado), mas apenas o efeito da decisão proferida, que se dá em uma etapa subsequente, de liquidação do julgado pela Receita Federal, após o encerramento do processo administrativo.

Caberá a esse órgão analisar o teor da decisão a fazer refletir os seus efeitos diretos (e.g. reforma parcial do lançamento) e indiretos (previstos na Lei nº 14.689/23) sobre o crédito. Em rigor, os efeitos das novas regras exonerativas, de caráter material, e não processual, sequer devem ser objeto de proclamação do resultado do julgamento, pois são decorrência posterior dele.

Nessa linha, não há óbice lógico para que esses efeitos exoprocessuais alcancem parcelas da decisão que não foram julgados pelo VQ.

Tanto que o artigo 25-A, que dispõe sobre a exclusão de juros de mora caso se pague no prazo de 90 dias, quando a decisão se deu pelo VQ, estabelece em seu §7º que ele se aplica “exclusivamente à parcela controvertida, resolvida pelo voto de qualidade”, dando a entender que, aqui sim, o benefício estaria restrito à parcela da decisão resolvida por esse instrumento. Há uma evidente distinção de alcance entre os dois dispositivos (artigo 25, §9º-A e artigo 25-A), a despeito de ambos tratarem de efeitos legais sobre o crédito tributário mantido pelo VQ.

Nessa situação, há dois possíveis caminhos para a Administração: 1) adotar uma regulamentação infralegal restritiva do alcance do artigo 25, §9-A (a exemplo da Portaria ME nº 260/2020) ou 2) aplicar por analogia o disposto no §7º do artigo 25-A. A primeira tentativa esbarraria em um problema de legalidade, ao passo que a segunda encontraria óbice na própria distinção feita pelo legislador, afinal “a lei não contém palavras inúteis”.

b) Processos de cobrança de multas isoladas
Outro problema é a sua aplicabilidade aos processos de cobrança de multas isoladas. Isso se daria porque o artigo 25-A estabelece que, após a resolução do julgamento por voto de qualidade, com a vitória da Fazenda Nacional, haveria a opção de pagamento do valor remanescente – que inexistiria na hipótese de multa isolada, já que a totalidade da multa seria afastada.

Por outro lado, na esteira da existência de alcances distintos para o artigo 25, §9º-A e o artigo 25-A do Decreto nº 70.235/72, poder-se-ia sustentar também que não há conexão normativa necessária entre os dois dispositivos, sendo o primeiro compatível com os processos de multas isoladas, ao passo que o segundo, por uma questão lógica, seria inaplicável a esses casos. Em outras palavras, da inaplicabilidade lógica do artigo 25-A a esses casos, não se pode derivar a inaplicabilidade do artigo 25, §9º-A.

Essa distinção, que confirmaria a aplicação do artigo 25, §9º-A às multas isoladas, é corroborada pela rejeição expressa, no âmbito legislativo, da proposta do Senador Otto Alencar de restringir a exclusão às multas vinculadas a tributos.

c) Voto de qualidade e recurso especial no Carf
Na esteira do que sustentamos acima, de que os efeitos previstos pela Lei nº 14689/23 sobre o crédito são de natureza exoprocessual, não afetando o conteúdo decisório do acórdão, entendemos que, à luz do atual Ricarf, não haveria possibilidade de recurso especial fundado em diferentes quóruns de julgamento, pois as decisões seriam convergentes, mudando apenas o tratamento jurídico recebido na etapa de liquidação do julgado.

Por outro lado, caso o contribuinte perca o seu caso no Carf por VQ e opte pela interposição de recurso especial sobre a matéria em que houve o empate, estará sujeito à perda das benesses na liquidação do crédito, caso o julgamento na Carf seja desfavorável por maioria. Não haveria aqui qualquer reformatio in pejus, pois manteve-se integralmente o conteúdo da decisão recorrida, afetando apenas efeitos atribuídos à decisão administrativa final, na etapa de liquidação.

2) Artigo 25-A, §§ 3º a 6º do Decreto nº 70.235/72 — a compensação de prejuízos fiscais
Outra novidade é a possibilidade de compensação de prejuízos de controladas ou controladoras diretas ou indiretas, bem como sociedades sob controle comum, com efeito extintivo sujeito a condição resolutória da sua ulterior homologação (§5º), no prazo de cinco anos (§6º).

A medida gerará a criação de um mercado de empresas inativas com saldos acumulados de prejuízos fiscais, para compensar os débitos mantidos pelo VQ. Entretanto, esse procedimento poderá esbarrar numa dificuldade prática: a comprovação documental da existência do prejuízo fiscal.

O Carf possui jurisprudência no sentido de que o Fisco pode analisar fatos, operações e documentos relativos a períodos já atingidos pela decadência, para fins de verificar a repercussão deles no futuro, como na composição do saldo de prejuízos fiscais (e.g. acórdão nº 1402-003.350 e 1402-006.385), ficando apenas vedado lançar créditos tributários referentes a esses períodos.

Parece-nos razoável esperar que essas compensações passem pelo escrutínio criterioso da Receita, que exigirá a comprovação da formação do saldo de prejuízos para homologar a compensação, demandando documentação de um amplo período, relativo a uma empresa inativa. Na hipótese de não homologação da compensação, parece-nos ser o caso de aplicação do §8º, com a inscrição dos valores já constituídos em dívida ativa da União, para cobrança judicial.

3) Artigo 44 da Lei nº 9.430/96  as alterações no regime das multas qualificadas
a) Multas qualificadas e agravadas
No âmbito federal, as multas poderiam ser majoradas em 50% pela presença de situações agravantes, como não atendimento à fiscalização, reincidência etc., mas eram aumentadas para 150% na hipótese de situações qualificadoras mais graves (sonegação, fraude ou conluio). O PL original, pretendia revogar as hipóteses agravantes e reduzir a multa qualificada para 100% do tributo, mantendo-se na lei apenas a segunda alteração.

Essa situação gerou uma situação esdrúxula, ofensiva à proporcionalidade das penas, que orienta inclusive a aplicação de sanções administrativas, pois situações qualificadoras, mais graves, estarão sujeitas a uma multa de 100%, ao passo que as agravantes, menos graves, serão penalizadas em 112,5%.

Parece-nos, à luz da proporcionalidade que as penalidades devem guardar com relação à gravidade das condutas, que a Administração deverá observar o artigo 2º, parágrafo único, VI, c/c artigo 65, ambos da Lei nº 9.874/99, para promover uma revisão das sanções e adequá-las ao patamar das multas qualificadas. Ademais, parece-nos que não se trata aqui de um afastamento da regra da multa agravada por inconstitucionalidade, mas sim um controle de adequação “in concreto” das sanções aplicadas, considerando a nova moldura normativa punitiva estabelecida, com vistas a manter uma coerência na atuação sancionadora do Estado.

b) A reincidência nas situações qualificadoras
A lei prevê que a multa qualificada será alçada a 150% nas hipóteses de reincidência do sujeito passivo, que, nos termos do artigo 44, §1º-A, se dará quando no prazo de dois anos, contado do ato de lançamento em que tiver sido imputada a ação ou omissão tipificada nos artigos 71, 72 e 73 da Lei nº 4.502/64 e ficar comprovado que o sujeito passivo incorreu novamente em qualquer uma dessas condutas.

Essa condição nova, em nosso entender (com o endosso de outra colunista [4]), fulmina retroativamente todas as multas qualificadas aplicadas, obrigando a sua redução ao patamar de 100%, com fulcro no artigo 106, II, “c” do CTN, incluídas aquelas no âmbito judicial. Não nos parece haver espaço para eventuais diligências por parte dos órgãos de julgamento para verificar a existência de reincidência, sob pena de ostensiva e ilegal inovação dos fundamentos do auto.

O dispositivo traz algumas dificuldades de ordem semântica, pois não deixa claro se basta a repetição de qualquer das circunstâncias dos artigos 71, 72 ou 73, ou se deveria haver uma repetição específica da situação qualificadora, para que se possa aplicar a multa de 150%. Por força do artigo 112, II, do CTN, parece-nos que essa dúvida deve ser resolvida da forma mais favorável ao acusado, com a exigência da reincidência específica.

c) A confusão entre lançamento e processo administrativo
A exigência da reincidência, por descuido do legislador, é passível de ser burlada pela fiscalização de duas maneiras.

A primeira se baseia no fato de que a reincidência se conecta ao “ato de lançamento” que imputou sonegação ou fraude. O dispositivo foi mal redigido e confunde as coisas, pois conforme o artigo 9º e seu §1º do Decreto nº 70.235/72, cada tributo ou penalidade isolada será objeto de lançamentos distintos, que poderão ser formalizados por meio de um único processo administrativo.

Em suma, pela literal redação do dispositivo, poder-se-ia, em um mesmo processo administrativo, realizar vários lançamentos, imputando fraude ou sonegação a todos, e fazê-los em uma sucessão temporal, para justificar a aplicação de multa de 100% apenas para o primeiro, e 150% aos demais, pois seriam — rigorosamente — lançamentos distintos, e não há regra que condicione a reincidência ao lançamento de um mesmo tributo.

d) Ausência de regra antifragmentação das autuações fiscais
A segunda falha se baseia na possibilidade de se burlar a exigência do interregno de dois anos por meio da realização de autos de infração fracionados no menor período de apuração possível.

Por exemplo, ao invés de lavrar o auto de infração de IRPJ relativo a vários exercícios, o auditor realizaria vários lançamentos baseados no menor período possível para configurar a multa qualificada no primeiro e lançar a multa de 150% nos demais.

Esse possível ardil poderia ser barrado pelo estabelecimento de uma regra específica que vedasse uma fragmentação artificial de autos de infração em períodos menores, ou estabelecimento de períodos mínimos de autuação. A própria Portaria RFB nº 48/2021, que dispõe a respeito da formalização de processos relativos a tributos administrados, nada dispõe a esse respeito.

e) Reflexos do processo penal tributário sobre a multa
O artigo 44, §1º-C, II, traz uma previsão bastante interessante: nas hipóteses em que haja sentença penal de absolvição com apreciação de mérito em processo do qual decorra imputação criminal do sujeito passivo, deve ser afastada a qualificação da multa. A lógica do dispositivo é a de que a multa qualificada e os crimes tributários possuem condições comuns de incidência [5].

Esse dispositivo, por uma questão de lógica, destina-se aos casos em que a multa qualificada é objeto de inscrição em dívida ativa e eventual ajuizamento de execução fiscal, tendo em vista que não há tipificação de crime material contra a ordem tributária antes do lançamento definitivo do crédito, inclusive com o encerramento do processo administrativo, nos termos da Súmula Vinculante nº 24 do STF.

Entretanto, a redação do dispositivo levanta questões importantes.

A primeira delas é saber se bastaria a mera prolação de sentença penal de absolvição, sem a necessidade de trânsito em julgado, para que gere seus reflexos sobre a execução fiscal, na forma como dispõe literalmente a lei. Poderia ocorrer, por exemplo, da sentença ser reformada em apelação, e já ter sido afastada a multa qualificada na execução.

A segunda consiste em saber se, a partir da edição da Lei nº 14.689/23, o encerramento do processo penal passa a ser causa de prejudicialidade externa do processo de execução fiscal, impondo a sua suspensão, nos termos do artigo 313, V, “a” do CPC/2015, considerando que o seu desfecho impactará na extensão da relação jurídica discutida.

A terceira é saber se o dispositivo seria aplicável na hipótese de eventual desclassificação do crime contra a ordem tributária para crime comum, que sequer tenha sido imputado pela Receita ou pelo Ministério Público (MP), como falsificação de documentos ou falsidade ideológica, com a subsequente condenação do agente. Nessa situação, pela lógica do dispositivo, parece-nos que a desclassificação do delito teria como efeito secundário afastar então a multa qualificada em execução.

A quarta, na esteira da anterior, é saber se os efeitos do referido dispositivo seriam aplicáveis na hipótese em que o MP, tendo acesso ao lançamento e à representação fiscal para fins penais, entender que não há materialidade delitiva e, na condição de titular da ação penal, deixar de denunciar os contribuintes autuados. Ora, se na hipótese em que houve denúncia e absolvição, a multa deveria cair, parece-nos que, a fortiori, a ausência de denúncia deveria gerar os mesmos efeitos.

Conclusões
Como defendemos em nosso outro artigo, discordamos substancialmente da forma como a nova lei afetou a estruturação do contencioso administrativo e as multas federais.

Deixando de lado nossas vênias e indo além, parece-nos que os problemas redacionais são ainda mais graves. Essa má redação gerará intensas controvérsias a respeito da aplicação de seus dispositivos, estimulando um metacontencioso que prorrogará indefinidamente litígios tributários. Nesse artigo, tentamos antecipar apenas algumas delas.


[1] https://www.conjur.com.br/2023-set-06/direto-carf-pl-carf-analise-critica-alteracoes-paf

[2] DINAMARCO, Candido Rangel. Capítulos de Sentença, p. 42-43.

[3] O §9º do artigo 25 é que apresenta essa característica.

[4] https://www.conjur.com.br/2023-set-27/direto-carf-lei-1468923-voto-qualidade-multas-retroatividade

[5] Premissa essa que não nos parece inteiramente correta, como já falamos em outro artigo: https://revista.ibdt.org.br/index.php/RDTA/article/view/1102

Carlos Augusto Daniel Neto é sócio do escritório Daniel & Diniz Advocacia Tributária, doutor em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em Direito Tributário pela PUC-SP, com estágio pós-doutoral em Direito Tributário na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), ex-conselheiro titular da 1ª e 3ª Seções do Carf, pesquisador do NEF/FGV e do Nupem/IBDT e professor permanente do mestrado profissional do Cedes e da pós-graduação do IBDT.

Revista Consultor Jurídico, 11 de outubro de 2023, 8h00

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