Subfaturamento e subvaloração em matéria aduaneira e o Carf

Por Diego Diniz Ribeiro

Por Antonio Carlos Atulim

Na coluna desta semana abordaremos dois tópicos muito debatidos no âmbito da 3ª Seção do Carf: os institutos do subfaturamento e da subvaloração aduaneira.

Importante desde já registrar que, embora possam acarretar efeitos práticos semelhantes em relação à arrecadação de tributos, os institutos em análise são figuras distintas e inconfundíveis.

No Carf é pacífico o entendimento no sentido de que o “subfaturamento ocorre quando o importador registra a declaração de importação (DI) tendo por base uma fatura comercial que não reflete o preço realmente pago pelo produto importado; e que a subvaloração ocorre quando há a aplicação indevida de um dos métodos de valoração aduaneira do AVA/Gatt, sem a ocorrência de fraude” (Opinião Consultiva nº 10.1, do Comitê Técnico de Valoração Aduaneira) [1].

Percebe-se que o elemento que diferencia essas duas figuras reside no dolo do importador. Enquanto o subfaturamento reclama a concretização de uma conduta dolosa do importador, no sentido de intencionalmente declarar um valor aduaneiro inferior àquele que foi praticado, visando à redução dos tributos devidos na importação, na subvaloração a informação de valor aduaneiro inferior ao real decorre de mero erro na aplicação dos métodos de valoração aduaneira previstos no artigo 1º do AVA/Gatt.

Em razão dessa diferenciação, são distintas as consequências previstas no ordenamento jurídico para cada uma dessas figuras.

A subvaloração aduaneira acarreta apenas a recomposição do valor aduaneiro, segundo as regras estabelecidas no AVA/Gatt, com a exigência das diferenças dos tributos aduaneiros, acrescidos dos encargos da mora ou dos encargos do lançamento de ofício, conforme o caso. A exigência sofrerá apenas os acréscimos moratórios se for efetuada durante a conferência aduaneira e o contribuinte retificar a DI e efetuar o recolhimento. Por outro lado, a exigência será formalizada com os consectários do lançamento de ofício, caso decorra de revisão aduaneira, ou se o importador, notificado durante a conferência aduaneira, decidir impugná-la [2].

Essa distinção entre os institutos pode trazer um efeito prático muito relevante quando, v.g., a autoridade aduaneira trata um caso de subvaloração como se subfaturamento fosse. Esse equívoco em relação a motivação do lançamento pode ensejar a nulidade da autuação por vício material. É exatamente esse, v.g., o caso retratado no Acórdão nº 3802-004.098 [3], no qual a fiscalização efetuou o lançamento de ofício sustentando a existência de subfaturamento mediante falsidade material das faturas e interposição fraudulenta de terceiros. Especificamente em relação ao subfaturamento, a turma julgadora entendeu inexistir prova da falsidade material das faturas e que, portanto, o caso seria de subvaloração e não de subfaturamento, o que motivou o cancelamento da exigência por reconhecimento de vício material da autuação

Outra questão interessante enfrentada pelo Carf em relação aos institutos aqui analisados diz respeito às consequências jurídicas aplicáveis na hipótese de enquadramento da conduta fiscalizada na específica figura do subfaturamento. Até 24/8/2001, quando entrou em vigor o artigo 88 da Medida Provisória nº 2.158-35 de 2001, o subfaturamento era punido com a pena de perdimento da mercadoria ou, conforme o caso, com a respectiva multa substitutiva, previstas no artigo 23, IV, §1º e 3º do Decreto-Lei nº 1.455, de 1976, combinado com o artigo 105, VI, do Decreto-Lei nº 37, de 1966.

Entretanto, com advento do artigo 88 da Medida Provisória nº 2.158-35, de 2001, surgiu um conflito aparente de normas, pois a falsidade material ou ideológica da fatura comercial, tanto pode ser enquadrada na hipótese de dano ao erário por falsidade (artigo 23, IV, do DL nº 1.455, de 1976, combinado com o artigo 105, VI, do DL nº 37, de 1966), quanto na hipótese de subfaturamento mediante fraude (artigo 88 da MP nº 2.158-35, de 2001).

Com o objetivo de sanar esse conflito normativo e evitar o bis in idem, o Poder Executivo efetuou algumas alterações no Regulamento Aduaneiro (RA/2009), entre elas a que resultou no §1º-A do artigo 703 do RA/2009, com o objetivo de explicitar que o subfaturamento cometido mediante falsidade material ou ideológica rende ensejo apenas à aplicação da pena de perdimento.

Abordando essa questão, o Acórdão nº 3301-004.640 [4] tratou de um caso em que teria restado comprovado o subfaturamento mediante falsidade das faturas, ensejando a aplicação concomitante das duas multas. Diante desse quadro, o Carf manteve a multa substitutiva do perdimento e cancelou a multa do subfaturamento. No mesmo sentido é o teor do Acórdão nº 3402-005.545 [5].

Ocorre que, em casos análogos (constatação de subfaturamento mediante falsidade das faturas) nos quais a fiscalização aplicara apenas a multa do artigo 88 da MP nº 2.158-35, de 2001, a referida sanção foi mantida pelo colegiado sem que houvesse qualquer discussão a respeito da sua inaplicabilidade, haja vista que seria hipótese de pena de perdimento. É o caso, v.g., dos Acórdãos nº 3301-007.618 [6] e 3302-006.092 [7].

Também foi constatada situação na qual o mesmo colegiado, em processos distintos de subfaturamento mediante falsidade das faturas, um versando sobre multa substitutiva do perdimento e o outro sobre a multa do subfaturamento, manteve as sanções originalmente aplicadas nos respectivos processos, sem discutir, todavia, os reflexos do disposto no §1º-A do artigo 703 do RA/2009 e a estrita hipótese de pena de perdimento na hipótese fática acima narrada (subfaturamento mediante falsidade das faturas). É o que se observa da comparação dos Acórdãos nº 3401-005.081 [8] e 3401-005.164 [9].

Muito embora o Superior Tribunal de Justiça [10] tenha solucionado esse conflito aparente de normas — pelo menos desde 2011 — sedimentando entendimento segundo o qual a falsidade material das faturas rende ensejo ao perdimento (ou à respectiva multa substitutiva) e a falsidade ideológica à multa sobre o subfaturamento, a jurisprudência do Carf continua vacilante em relação à aplicabilidade dessas penalidades, o que demanda uma especial atenção desse tribunal, de modo a evitar tratamentos díspares para situações análogas e, com isso, fomentar uma sensação de insegurança jurídica.


[1] Ac. 3802-004.098, de 25/02/2015. As mesmas definições foram adotadas como premissa no Ac. 9303-007.337.

[2] Nos termos do artigo 42 da IN SRF nº 680, de 01/10/2006.

[3] Da lavra do Conselheiro Solon Sehn e assim ementado:
(…) BASE DE CÁLCULO. LANÇAMENTO. ARBITRAMENTO. artigo 88 DA MEDIDA PROVISÓRIA Nº 2.158/2001. REGRAS DE VALORAÇÃO ADUANEIRA DO AVA/Gatt. VÍCIO MATERIAL. NULIDADE.
Se a prova dos autos indica de se tratar de hipótese de subvaloração, e não de subfaturamento, a autoridade aduaneira, diante de inaceitabilidade do valor declarado, ao invés de arbitrar a base de cálculo na forma do artigo 88 da Medida Provisória nº 2.158/2001, deveria ter constituído o crédito tributário mediante aplicação de um dos métodos substitutivos do Artigo VII do Acordo Geral de Tarifas e Comércio Gatt (Anexo 1A), afastando o método do valor da transação e exigindo a diferença do crédito tributário (IPI, II, PIS/Pasep e Cofins), acrescido apenas de juros e da multa de ofício de 75%. Vício material. Nulidade do lançamento (…)”.

[4] Que teve como Relatora o Conselheira Semíramis de Oliveira Duro e restou assim ementado:
(…) MULTA ADMINISTRATIVA EM DECORRÊNCIA DE SUBFATURAMENTO. INTERPOSIÇÃO FRAUDULENTA. PENA DE PERDIMENTO. CUMULATIVIDADE DE MULTAS. IMPOSSIBILIDADE.
Nos casos de dano ao Erário, a penalidade a ser aplicada deve ser a pena de perdimento ou, como consequência, sua multa pecuniária substitutiva, não sendo esta cumulada com a multa prevista pelo parágrafo único do artigo 88 da MP nº 2.15835/2001, nem tampouco substituídas pela referida penalidade. O artigo 634, parágrafo único, do Decreto n° 4.543/2002 e o posterior artigo 703, §1° do Decreto nº 6.759/2009 vedam a aplicação concomitante das penalidades de conversão de pena de perdimento e multa administrativa em decorrência de subfaturamento (…)”.

[5] Voto da lavra do Conselheiro Rodrigo Mineiro, cuja ementa segue abaixo:
(…) SUBFATURAMENTO. FALSIDADE MATERIAL DA FATURA. PENA DE PERDIMENTO. APLICAÇÃO DA MULTA EQUIVALENTE AO VALOR ADUANEIRO. POSSIBILIDADE.
Na hipótese de prática de subfaturamento mediante falsidade documental material, deve-se aplicar a penalidade prevista no artigo 23, IV, e § 3o, Decreto-Lei nº 1.455/1976, combinado com o artigo 105, VI, do Decreto-Lei nº 37/1966 (a pena de perdimento ou, na impossibilidade de aplicação, a multa que a substitui)”.

[6] Conselheira Relatora Liziane Angelotti Meira.

[7] Conselheiro Relator José Renato Pereira de Deus.

[8] “SUBFATURAMENTO. EXIGÊNCIA DAS DIFERENÇAS DE TRIBUTOS DEVIDOS NA IMPORTAÇÃO E DE MULTA. PROVA DOCUMENTAL SUFICIENTE PARA CONSTATAR O PREÇO EFETIVAMENTE PRATICADO EM APENAS PARTE DAS DECLARAÇÕES DE IMPORTAÇÃO AUTUADAS.
Sendo suficientes as provas coletadas pela fiscalização para configurar subfaturamento e constatar o preço efetivamente praticado em parte das declarações de importação autuadas (40 DI), deve ser mantida a autuação em relação a tais DI, e em relação a mercadorias idênticas àquelas nelas declaradas, e constantes em outras declarações autuadas”.

[9] “IMPORTAÇÃO. SUBFATURAMENTO. FRAUDE DOCUMENTAL. PERDIMENTO. CONVERSÃO DA MULTA.
A constatação por parte da fiscalização das práticas de subfaturamento e fraude documental na importação, tipifica hipótese de dano ao Erário, sujeitando a mercadoria à Pena de Perdimento, nos termos do artigo 105, VI e XI do Decreto-lei n° 37/66″.

[10] STJ, REsp 1.217.708/PR, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, DJe de 08/02/2011. No mesmo sentido: RESP 1.455.663/SC e AgRg no AGRESP 570.647.

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