Por Carlos Augusto Daniel Neto
Conforme a Portaria Carf/ME nº 7.974/2021, no dia 06/08/2021 ocorrerá a reunião do pleno do Carf, para: i) julgar recursos extraordinários e ii) analisar e votar as proposições de edição, revisão e cancelamento de súmulas. Entretanto, tais funções podem causar algum estranhamento a quem leia o art. 25, II, do Decreto nº 70.235/72, que estabelece caber ao Carf “julgar recursos de ofício e voluntários de decisão de primeira instância, bem como recursos de natureza especial.”.
Em primeiro lugar, deve-se esclarecer que o pleno é o órgão formado pela reunião das três turmas da CSRF e que ele possui competência para a edição de resoluções e súmulas, além de uma competência julgadora “residual”. Explico: a competência para julgamento de recurso extraordinário é uma reminiscência do antigo regimento interno da CSRF (Portaria MF nº 147/2007), sendo interposto no prazo de 15 dias e dirigido ao pleno em caso de divergência de entendimentos entre turmas da CSRF ou entre elas e o próprio pleno. Esse recurso, todavia, foi extinto no regimento interno atual, cabendo agora apenas julgar aqueles interpostos no passado.
Mais interessante para nós é a segunda função que será exercida na reunião vindoura, qual seja, a votação de proposições de edição, revisão e cancelamento de súmulas.
O contraste surge em razão do art. 25, II, do Decreto nº 70.235/72 estabelecer ser função típica do Carf “julgar”, i.e., proferir decisões sobre questões litigiosas a ele submetidas por meio dos recursos próprios, manifestando-se pela legalidade ou não dos autos de infração (e outros atos administrativos). Ao editar, revisar ou cancelar súmulas, o Carf não está julgando, mas deliberando a sua posição institucional, a partir da jurisprudência consolidada que pode ser indexada por meio de enunciados sumulares. Uma vez aprovada uma eventual súmula pelo Carf, seu sentido passar a ser dotado de um caráter vinculante para todos os julgadores daquele órgão e, eventualmente, se estendendo a toda a Receita Federal (a depender de ato do Ministro da Economia).
Essa atuação do pleno (e das CSRF) é absolutamente relevante não apenas sob uma perspectiva institucional, na medida em vincula a todos os conselheiros (inclusive sendo hipótese de perda de mandato o seu descumprimento deliberado e não fundamentado), racionaliza a atividade de julgamento e garante previsibilidade quanto ao resultado, mas também sob uma perspectiva externa, ao consolidar standards de origem jurisprudencial que serão tomados como orientação pelos contribuintes.
Por outro lado, essa função do Carf encontra balizas no próprio regimento interno, em seu art. 72, ao estabelecer que as súmulas deverão consubstanciar decisões reiteradas e uniformes do Carf. Essa singela dicção é interessantíssima, pois permite concluir que a súmula não é ato de vontade do órgão julgador – o que reforça a sua distinção de uma lei em sentido estrito – mas é desdobramento de um conjunto de precedentes reiterados e uniformes em determinada matéria.
Dito de outro modo, a súmula não existe per si, como criação voluntarista de um Tribunal[1], estando invariavelmente associada aos precedentes que lhe originaram.
Esclareça-se que ao pleno cabe votar súmulas cuja matéria seja submetida a duas ou mais turmas da CSRF (caso contrário, a votação será no âmbito da turma da CSRF competente), e demandam um quórum qualificado de 3/5 dos conselheiros para aprovação. A própria redação regimental evidencia a diferença entre as funções do Carf: por um lado, aprovar súmulas, por outro, julgar recursos.
Por trás de cada função exercida, há uma pergunta a ser respondida pelo órgão.
Ao julgar um recurso, a pergunta que se faz ao colegiado é: “Você concorda com os fundamentos dos autos?”. E ela implica, para sua resposta, o exame das circunstâncias fáticas de cada caso, das provas nos autos, do ato administrativo atacado e das regras jurídicas aplicáveis para, a partir de raciocínios dogmáticos, estruturar a solução.
Essa é a pergunta padrão (poderíamos dizer, a pergunta típica) a ser respondida pelo Carf e seus conselheiros, que o fazem reiteradamente, julgando inúmeros casos e construindo e reconstruindo argumentos jurídico-dogmáticos.
Por outro lado, no exercício da função enunciadora de súmulas, as perguntas mudam drasticamente. A questão a ser respondida passa a ser “A súmula proposta reflete decisões reiteradas e uniformes do Carf?”. Aqui, longe do raciocínio lógico e dogmático empregado para julgar os recursos, a análise será eminentemente analógico-problemática, i.e., comparativa. A resposta a essa pergunta atípica posta pode ser dividida em duas subperguntas.
Na primeira, os julgadores analisarão as diversas decisões proferidas pelo Carf sobre o tema, para verificar se há similitude fática entre os casos concretos julgados e a ratio decidendi empregada nos julgados, como condição de se verificar a uniformidade entre eles e a reiteração desse entendimento, para verificar a consolidação de um entendimento do órgão como um todo. Essa diretriz também está estampada no CPC/2015, em seu art. 926, §2º, ao determinar que “ao editar enunciados de súmula, os tribunais devem ater-se às circunstâncias fáticas dos precedentes que motivaram sua criação”, de modo a fomentar a estabilidade, a integridade e a coerência das suas decisões.
Na segunda, identificadas as circunstâncias fáticas e a ratio decidendi reiteradas e uniformes, cabe ao colegiado avaliar se o enunciado da súmula proposto reflete com precisão o conteúdo dos precedentes analisados, i.e., se sintetiza de forma competente as circunstâncias fáticas consideradas e a solução jurídica uniforme e reiterada.
Aqui surge o primeiro ponto problemático: o risco do colegiado, ao responder à pergunta atípica, lhe dar a resposta que seria adequada à pergunta típica. Isto é, ao ser perguntado se há decisões reiteradas e uniformes, responder quanto à concordância ou não em relação ao conteúdo do tema a ser sumulado.
Já alertamos para esse risco ao tratarmos sobre os julgamentos envolvendo “JCP Retroativo”[2], tema absolutamente pacífico na jurisprudência do Carf, não obstante, houve empate na votação pela formação de súmula da matéria, rejeitando-a. Independente da concordância ou não com a tese, os pressupostos para formação de súmula eram evidentes naquele caso.
Entretanto, uma nova proposta de súmula sobre esta matéria hoje seria impertinente, mas por outra razão: os precedentes sobre a matéria, em especial aqueles proferidos pela 1ª CSRF, se tornaram anacrônicos com o advento do art. 19-E da Lei nº 10.522/02[3], pois foram formados à luz de outra regra de desempate.
Esse é um segundo risco que deve ser considerado, pois diversas propostas de súmulas apresentadas têm como precedentes apontados casos resolvidos por voto de qualidade, mas que se julgados atualmente teriam desfecho diferente, por força do novo critério de desempate. Sumular essas matérias, nesse momento, seria obstar definitivamente que a discussão fosse travada nos colegiados à luz da nova sistemática, e.g. a trava de 30% no aproveitamento de prejuízos fiscais na extinção das empresas.
Nesse sentido, considerando ainda a Portaria ME nº 260/2020 (de legalidade duvidosa[4]), todos os precedentes sugeridos para súmula, que envolvam autos de infração de créditos tributários federais que foram resolvidos pelo voto de qualidade, se tornam inaptos a fundar a edição de súmula, tornando-se ultrapassados para tanto – pelo menos enquanto estiver vigente e eficaz o art. 19-E da Lei nº 10.522/02, atualmente sob discussão no âmbito do STF.
Ainda sobre as duas subperguntas que o colegiado deve responder para a aprovação da súmula, nos parece que cada uma delas, se respondida equivocadamente, pode dar ensejo ao manejo de instrumentos previstos pelo próprio RICarf, para correção.
Caso o colegiado erre na análise da reiteração e uniformidade dos precedentes (1ª subpergunta), desconsiderando circunstâncias fáticas ou de ratio decidendi distintas, cabe a propositura do cancelamento da súmula. Esse ano, há apenas uma proposta de cancelamento da súmula, referente à Súmula nº 119, que trata da cobrança de multas pela falta de declaração em GFIP.
Parece-nos, inclusive, que a hipótese por excelência de cancelamento da súmula é a de erro na resposta à pergunta relativa à uniformidade e reiteração dos precedentes. Nas hipóteses em que há mudanças posteriores que afetam a adequação da súmula, é o caso de overruling dos precedentes que originam o enunciado e, logo, da súmula, mas não o seu cancelamento[5] propriamente dito. Além disso, na hipótese de decisões judiciais vinculantes (p.ex. ADI, recurso repetitivo etc.), sequer seria necessário esse procedimento para o cancelamento, conforme art. 72, §4º do RICarf.
Respondida corretamente a primeira pergunta, é preciso verificar se as circunstâncias fáticas e a ratio dos precedentes reiterados e uniformes estão compatíveis com a redação proposta para o enunciado sumular (2ª subpergunta).
Quando se verifica que a redação da súmula abrangeu hipóteses que fogem à uniformidade e reiteração dos precedentes analisados, seja por envolver circunstâncias fáticas distintas, seja por incompatibilidade ou inaplicabilidade da ratio decidendi, é cabível a proposta de revisão de súmula, cabível nas hipóteses em que se verifica essa sobreinclusão ou subinclusão da sua redação.
O Carf também possui experiência com esse tipo de análise, a exemplo da Súmula nº 29, que foi objeto de revisão, após diversos acórdãos propondo o distinguishing na sua aplicação, em razão da sua redação indevidamente alcançar casos distintos daqueles utilizados como precedentes para a sua formação (sobreinclusão). A revisão seria cabível também nas hipóteses em que a redação da súmula deixa de fora casos que estavam abrangidos pelos acórdãos precedentes (a exemplo do que ocorre com a Súmula nº 66, v. Acórdão nº 9202-006.580), demandando uma interpretação do enunciado à luz dos precedentes que a formaram (subinclusão).
Na sessão desse ano, apenas a Súmula nº 11, que trata sobre a prescrição intercorrente, será objeto de proposta de revisão, para restringir a sua aplicação aos processos que envolvam créditos tributários, considerando que os acórdãos precedentes analisaram a aplicação do prazo de prescrição do art. 174 do CTN, e não os prazos da Lei nº 9.873/99, aplicáveis a multas administrativas não tributárias[6].
Curiosamente, há uma convergência de sentido nas propostas a respeito do reconhecimento do regime jurídico material próprio para infrações aduaneiras: por um lado, a revisão da súmula nº 11 propõe reconhecer que as regras de prescrição (e a ausência de uma regra de prescrição intercorrente) no CTN não afetam essa discussão no âmbito das multas de infrações aduaneiras, por outro lado, a proposta de súmula nº 42 reconhece que o prazo decadencial para aplicação de penalidade por infração aduaneira é de cinco anos contados da data da infração, nos termos dos artigos 138 e 139, ambos do Decreto-Lei n.º 37/66, afastando a aplicação do CTN a esses casos. Trata-se de uma salutar convergência que evidencia uma compreensão adequada dos distintos regimes materiais sob julgamento pelo Carf.
Sobre a revisão de súmulas, há que se ponderar também que a alteração do enunciado, para excluir do seu alcance determinadas situações não albergadas pelos precedentes que a formaram, não implica o reconhecimento ou a aprovação relativos ao mérito da discussão, mas tão somente afasta o ônus do conselheiro de justificar o distinguishing em relação ao enunciado sumular, abrindo espaço para que os colegiados discutam com maior liberdade o tema, para lhe dar direcionamento distinto ou análogo àquele da súmula, mas considerando propriamente as circunstâncias fáticas e o regramento jurídico próprio dos casos.
Outro ponto de atenção nos parece ser as propostas de súmulas que simplesmente repetem texto legal, a exemplo da Proposta nº 9, que aduz: “A comprovação da prática dolosa de atos simulados com o objetivo de impedir ou retardar o conhecimento da ocorrência do fato gerador ou de aspectos deste impõe a aplicação da multa de ofício qualificada”. Ora, esse é exatamente o teor do art. 44, I e §1º da Lei nº 9.430/96 c/c art. 71 da Lei nº 4.502/76. O ponto que gera controvérsia nos casos concretos não é a premissa jurídica acima, claríssima na lei, mas sim a verificação fática da ocorrência de “atos dolosos” e da sonegação em si.
Também há propostas com redação vaga ou imprecisa, a exemplo da Proposta nº 8, a respeito da apresentação reiterada de Declaração de DCTF com valores inferiores aos apurados em ação fiscal, para imposição de multa de ofício qualificada. Ora, o que seria “reiterado”? Ademais, qualquer importe inferior estaria albergado, mesmo valores mínimos diante da declaração[7]?
Tratam-se, portanto, de propostas de súmula que nada colaboram para dar eficiência e racionalidade aos julgamentos do Carf, por simplesmente reproduzir disposição legal, ou por trazer mais complexidades aos casos.
Concluindo, as súmulas, como medidas de otimização e eficiência do processo administrativo, são sempre bem-vindas, trazendo segurança e previsibilidade nos julgamentos, além de igualdade na aplicação das regras a todos os contribuintes. Todavia, o contexto atual, com uma nova regra de desempate (ainda por cima sob contestação judicial) traz uma camada adicional de complexidade ao processo de deliberação sumular, além dos demais aspectos problemáticos que deverão ser considerados pelos conselheiros, alguns deles pontuados neste artigo.
É preciso ponderação, técnica e atenção, não só para saber as perguntas certas a serem feitas para o exercício dessa função, mas também as respostas corretas que deverão ser dadas, visando o fortalecimento e aprimoramento de um metodologicamente adequado sistema de precedentes no âmbito do Carf.
[1] Até porque os julgadores de um Tribunal, seja ele administrativo ou judicial, não possuem legitimidade democrática para veicularem disposições de caráter legal.
[2] https://www.conjur.com.br/2019-set-11/rejeicao-dedutibilidade-juros-capital-proprio-retroativo
[3] Isso não implica a nossa concordância com a constitucionalidade dessa regra, mas apenas reconhece que se trata de norma válida, vigente e eficaz.
[4] Sobre nossa opinião a respeito do alcance do art. 19-E, v. https://www.conjur.com.br/2020-mai-27/direto-carf-reflexoes-alcance-direto-indireto-artigo-19-lei-1052202
[5] Nessa situação de overruling o cancelamento da súmula pode ser justificado quanto a mudança legal tenha efeitos retrospectivos, ou como forma de gerar eficiência nos julgamentos, evitando que os conselheiros tenham sempre o ônus argumentativo de demonstrar a superação da súmula.
[6] Sobre esse tema, já tivemos a oportunidade de expor nosso entendimento: https://www.conjur.com.br/2021-fev-17/direto-carf-hora-refletir-sumula-11-carf .
[7] Lembrando que nestes casos, a extensão do valor omitido sempre foi levada em conta como indício de dolo.