Por Carlos Augusto Daniel Neto
A apuração do PIS/Cofins, cumulativo ou não, traz consigo uma questão fundamental, que se replica sob diversos contextos distintos, mas que pode ser resumida pela seguinte indagação: qual é a extensão da receita tributável da pessoa jurídica?
Essa fórmula permite endereçar diversos pontos controversos, tais como perdão de dívida, exclusão de tributos da base de cálculo, reembolso de despesas etc., entretanto, na coluna de hoje, analisaremos especificamente as operações de intermediação, onde uma empresa é contratada para intermediar o fornecimento de serviços, utilizando como exemplo os casos envolvendo agências de viagem e turismo, as quais têm suas receitas de serviço submetidas necessariamente ao regime cumulativo da Lei nº 9.718/98 (por força do artigo 10, XXIV, da Lei nº 10.833/03).
Originalmente, essa lei estabelecia em seu artigo 3º, §2º, III, a exclusão, da receita bruta, “[d]os valores que, computados como receita, tenham sido transferidos para outra pessoa jurídica, observadas normas regulamentadoras”, disposição essa revogada pela MP nº 2.158-35/01. Parece-nos, entretanto, que tal revogação não afetou a discussão, que decorre do próprio conceito de receita. O STF teve oportunidade de ratificar a natureza conceitual do tema na RE 574.706, ao afirmar que ela “é o ingresso financeiro que se integra no patrimônio na condição de elemento novo e positivo, sem reservas ou condições”, contrastando-a com os ingressos que correspondem, por exemplo., a receitas de terceiros.
Nos termos do artigo 2º da Lei nº 9.718/98 c/c artigo 12, II, do Decreto-lei nº 1.598/77, o faturamento das agências corresponderá ao “preço da prestação do serviço”. Esse dispositivo deve ser integrado com o artigo 27 da Lei nº 11.771/08, que estabelece a Política Nacional de Turismo, e estabelece que a “agência de turismo [é] a pessoa jurídica que exerce a atividade econômica de intermediação remunerada entre fornecedores e consumidores de serviços turísticos ou os fornece diretamente”. O mesmo artigo, em seus §§1º, 2º e 3º estabelece:
“§1º São considerados serviços de operação de viagens, excursões e passeios turísticos, a organização, contratação e execução de programas, roteiros, itinerários, bem como recepção, transferência e a assistência ao turista.
§2º O preço do serviço de intermediação é a comissão recebida dos fornecedores ou o valor que agregar ao preço de custo desses fornecedores, facultando-se à agência de turismo cobrar taxa de serviço do consumidor pelos serviços prestados.
§3º As atividades de intermediação de agências de turismo compreendem a oferta, a reserva e a venda a consumidores de um ou mais dos seguintes serviços turísticos fornecidos por terceiros: (…).”
A interpretação mais adequada para esses dispositivos é dada pela própria Receita Federal, na SC SRRF10/Disit nº 17/2013, ao apontar que as agências de turismo podem atuar como fornecedora direta dos serviços (§2º — operação) ou como intermediadora (§3º — intermediação), deixando claro que, apenas na última hipótese, a receita tributável estará limitada à comissão de intermediação, não compreendendo os valores que serão repassados aos fornecedores que prestarão serviços como hospedagem e transporte. Por outro lado, se o serviço for prestado pela própria agência, ou em seu nome, a totalidade do preço será sua receita tributável.
Aparentemente, o artigo 27, §2º da Lei nº 11.771/08 e o conceito de receita prevalente no STF deveriam deixar pouca margem para dúvidas no tocante à tributação das agências de turismo. Não obstante, o que se verifica é uma relevante quantidade de autuações, nas quais a divergência não se dá sobre as premissas jurídicas, mas sobre os elementos fático-probatórios que indicariam a ocorrência de intermediação ou venda direta.
Ao analisar a jurisprudência do Caf nos últimos anos, localizamos diversas decisões sobre o tema. Apesar disso, merecem destaque os Ac. 3401-006.207 [1] e 3201-003.727 [2] por três razões: 1) dentre todas, eles são as decisões que avaliam a maior quantidade de elementos probatórios distintos, englobando os fundamentos das demais e 2) são casos com exatamente os mesmos aspectos fáticos da discussão, valorados em sentidos antagônicos pelos respectivos colegiados.
Deve-se fazer dois esclarecimentos, antes de passar à análise dos referidos julgados e dos critérios que vem sendo utilizados pela jurisprudência do Carf:
O primeiro, de ordem metodológica, é que a análise das questões fáticas será realizada exclusivamente com base nas informações constantes nos relatórios e votos disponíveis.
O segundo, de caráter técnico, se baseia no fato de que, nos casos acima, há duas ordens de operações distintas: 1) uma relativa propriamente à intermediação da prestação de serviços turísticos em geral, e 2) outra relativa ao fretamento de aeronaves ou aquisição de bilhetes, em condições especiais, para revenda a clientes. Em relação à segunda operação, ambos os acórdãos mencionados entenderam não haver intermediação propriamente, apesar de um deles afastar a autuação por erro material na apuração, que deveria ter sido pelo PIS/Cofins não cumulativo.
Esse esclarecimento é relevante para cotejar os casos com os Ac. 3302-004.810 [3] e 9303-009.955 [4] (do mesmo contribuinte, diga-se), nos quais se analisou apenas contratos dessa operação de fretamento/aquisição de bilhetes (a segunda operação mencionada), o que permite, por um lado, inferir que a consideração desses fatos foi uniforme nos quatro acórdãos citados, e por outro lado, que essas decisões não chegaram a analisar a parte fática relativa aos demais contratos (relativos à primeira operação), cuja avaliação é tratada nesse artigo.
Inicialmente, um aspecto relevante, presente na maioria dos casos, diz respeito às condições e termos contratuais, essenciais para a compreensão da natureza da operação realizada.
Algumas decisões rechaçam a possibilidade de haver operação própria da agência na hipótese em que os contratos não evidenciem a prestação direta, pela agência, de serviços como alimentação, locação de veículos, hospedagem etc. (Ac. 9303-006.315 [5]), ou intermedeie a reserva e venda de passagens aéreas de terceiros, via sistema próprio, sendo remunerado com uma comissão do fornecedor (Ac. 1102-001.306 [6]).
Em sentido oposto, o Ac. 3201-003.727 exige que, mesmo quando a agência não preste o serviço diretamente, o fornecedor do serviço deveria constar no contrato firmado, subscrevendo-o e obrigando-se perante o cliente. Além disso, aponta outras cláusulas gerais que indicariam se tratar de uma operação, e não intermediação, como a previsão de responsabilidade civil da agência.
Nesse aspecto, o Ac. 3401-006.207 traz, talvez, a sua maior contribuição a esse debate, ao esclarecer que no contrato de agência, nos termos do artigo 710 do CC/02, há atribuição de poderes ao agente para que este realize negócios em nome próprio, mas à conta e em favor do seu mandante — o que dispensa a exigência de todos os fornecedores subscreverem o mesmo instrumento. O voto também esclarece que a atividade de ligar um fornecedor ao cliente, para que contratem diretamente, corresponde a corretagem, uma forma específica, e não única, de intermediação, e que a venda de passagens e hospedagens pela agência estaria dentro da própria definição da atividade, por força do artigo 27, §3º, da Lei nº 11.771/2008.
No tocante à responsabilidade civil, não parece ter lógica a sua consideração, pois ela independe de qualquer previsão contratual, já que decorre de lei, mais precisamente do que prevê o Código de Defesa do Consumidor, assumindo toda a cadeia de fornecedores e intermediador o risco da atividade, sem influenciar a caracterização do negócio.
Aqui, é crucial verificar se há intermediação de serviços turísticos de terceiros, que serão reservados ou adquiridos sucessivamente pela agência na condição de mandatária do cliente, ou se houve uma aquisição prévia e formação de um “estoque” de hospedagens, passagens etc., a serem revendidas. Naquele caso haverá intermediação, neste, operação.
Outro ponto relevante diz respeito à forma de contabilização da operação.
Com sutis variações, o que se verifica é que apenas parte dos ingressos decorrentes dos contratos das agências de turismo era incluído no resultado da empresa, normalmente apenas os valores correspondentes às comissões percebidas.
Em alguns casos, os valores recebidos pelos clientes são registrados diretamente em contas patrimoniais, sendo reconhecida a comissão apenas após a fruição dos serviços. Em outros casos, ela é reconhecida imediatamente como receita, mas a parcela correspondente aos fornecedores é controlada em contas patrimoniais, sem afetar o resultado. De todo modo, há uma segregação entre as receitas próprias e de terceiros.
Por outro lado, em dois casos (Ac. 3401-004.422 [7] e Ac. 3101-001.747 [8]) a autuação foi mantida exatamente pela ausência de segregação das receitas de terceiros, com o trânsito de todos os valores em resultado, e correspondente abatimento no momento de apurar a base de cálculo das contribuições.
É preciso lembrar, todavia, que a contabilidade deve ser um reflexo das atividades do contribuinte, e não uma realidade em si. Ela deve mais corroborar os termos dos contratos e a prática, do que ser prova autônoma e suficiente da ocorrência de intermediação ou operação. Mais relevante é a identificação do fluxo financeiro da operação, para se verificar quando os fornecedores foram pagos.
Sobre isso, o Ac. 3201-003.727, pôs em xeque a possibilidade de a agência realizar o parcelamento dos preços, pagando os fornecedores antes do recebimento da totalidade do valor do cliente, e que isso seria uma “antecipação”. Por outro lado, no Ac. 3401-006.207, a questão é apresentada como uma prática comercial comum, não havendo qualquer empecilho em, concretizada a negociação, oferecer a condição de parcelamento — tratar-se-ia de uma questão de disponibilidade financeira da agência, que não afeta a natureza do negócio. Inclusive, a decisão ressalta a possibilidade do crédito parcelado poder ser cedido a instituições financeiras, mediante desconto, para gerar a disponibilidade financeira para o pagamento dos fornecedores.
Aqui, novamente, o escopo da análise do fluxo financeiro é idêntico ao dos termos contratuais: verificar se os serviços foram adquiridos para o cliente, após a contratação, ou se foram adquiridos previamente, para revenda. Em outras palavras, busca-se verificar se o pagamento dos fornecedores, pela aquisição dos serviços (que não se confunde com reserva), foi anterior ou posterior à contratação. A possibilidade de concessão de parcelamentos ou da cessão desse crédito parcelado a terceiros não nos parecem ter qualquer relação com a natureza da operação, sendo irrelevantes à sua determinação.
Um último elemento, que se conecta com a própria natureza do contrato de agência, diz respeito à documentação fiscal ou, mais especificamente, quem consta nas notas fiscais emitidas pelos fornecedores como tomador do serviço.
Esse ponto foi invocado como fundamento no Ac. 3201-003.727, aduzindo que os fornecedores emitiam as NFS para a agência, e não para os clientes. Esse argumento, por si, já vai de encontro à natureza do contrato de agência, e aos poderes atribuídos ao mandatário. Isso não teria, portanto, o condão de descaracterizar a natureza de intermediação da atividade, mas decorreria dela!
Não obstante, os Ac. 3401-006.207 e 3402-001.434 [9] trouxeram um argumento adicional, insofismável, no sentido que a IN RFB nº 1.234/2012, ao disciplinar a retenção de tributos nos pagamentos efetuados pela administração pública a outras pessoas jurídicas pelo fornecimento de bens e serviços, prevê em seu artigo 12 a intermediação para compra de passagens e hospedagens. Nesse regramento se estabelece que a agência irá apresentar apenas documento de cobrança à unidade pagadora, o que imediatamente afasta a ideia de que NFS, faturas, boletos etc. deveriam ser emitidos em nome da beneficiária do serviço, e não no nome da agência.
Essa regra parece ter um dúplice efeito: a um, evidencia a inexistência de qualquer relação direta entre a administração pública e o fornecedor do serviço, que será pago pela agência intermediadora; a dois, que isso não tem o condão de descaracterizar uma relação de intermediação prestada por agência de viagens ou turismo. Não vemos por que exigir o contrário em intermediações entre privados.
Em nossa análise, optamos pelo confronto direto dos acórdãos mencionados no início, por tratarem exatamente as mesmas questões fáticas, sem prejuízo da avaliação e menção aos demais casos, dentro dos quais destacamos como pontos centrais do debate os termos contratuais, a contabilização da operação, o fluxo financeiro de recursos e a documentação fiscal.
O que se verifica, em todos os casos, é que o cerne da discussão se há intermediação ou operação é justamente identificar se a contratação dos fornecedores, pela agência, se dá em função do atendimento da demanda dos clientes, ou se ela se deu independente disso, para a criação de um estoque de serviços a serem revendidos, na forma de pacotes (o que não se confunde, repita-se, com uma simples reserva prévia, para garantir uma demanda futura esperada). Entretanto, na verificação dessa circunstância, determinante para análise dos casos, pode haver algumas confusões.
Nesse contexto, identificamos duas ordens de confusão: uma decorrente do recurso a elementos fáticos irrelevantes para distorcer a operação realizada, como questões de responsabilidade civil (no Brasil, regidas pelo CDC), de parcelamento de pagamentos, cessão de direitos creditórios etc.; a outra decorrente da atribuição de significado jurídico distorcido a elementos fáticos típicos do contrato de agência, como a outorga de mandato ao intermediador (e a sua diferença em relação à corretagem), ou a exigência de que a NFS em nome do cliente (dispensada pela própria IN RFB nº 1.234/2012).
A construção da solução jurídica correta parte de uma adequada compreensão do problema e, principalmente, de qual o ponto central a ser avaliado no caso concreto. Os Ac. 3401-006.207 e 3201-003.727 se prestam, nesse tema, a demonstrar como um mesmo contexto fático pode ser valorado de forma diametralmente oposta por turmas de julgamento do Carf, por serem desconsiderados aspectos técnicos centrais da problemática ou serem adotados critérios que não resistem a uma crítica mais rigorosa, feita pelo próprio órgão em seus precedentes.
[1] Relator conselheiro Lázaro Soares, j. 22/05/2019, unânime.
[2] Relator conselheiro Paulo Roberto Duarte, j. 24/04/2018, por maioria.
[3] Relator conselheiro Paulo Déroulède, j. 24/10/2017, por maioria.
[4] Redator designado conselheiro Andrada Natal, j. 21/01/2020, por qualidade.
[5] Relator conselheiro Demes Brito, j. 20/02/2018, unânime.
[6] Relator conselheiro Francisco Linhares, j. 04/03/2015, por maioria.
[7] Relator conselheiro Robson Bayerl, j. 20/03/2018, por maioria.
[8] Redator designado Rodrigo Mineiro, j. 14/10/2014, por qualidade.
[9] Relator conselheiro João Carlos Cassuli, j. 19/08/2014, unânime.